«O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia» (Horkheimer & Adorno) 1. A filosofia social clássica legou-nos a ideia de que o desenvolvimento das sociedades modernas implicou necessariamente a perda de importância da tradição na vida quotidiana. Se a tradição é «coisa do passado», então as sociedades modernas contrastam com as «sociedades tradicionais». Esta ideia foi incorporada pelas teorias da modernização vista como um processo de desenraizamento das tradições, e assenta em dois pressupostos fundamentais:
1. A teoria social clássica foi herdeira do Iluminismo, que encarava a tradição uma fonte de mistificação e, como tal, uma inimiga da Razão e um obstáculo ao Progresso Humano.
2. A teoria social clássica via, portanto, a emergência e o desenvolvimento das sociedades modernas como um processo dinâmico intrinsecamente destruidor da tradição. Como herança do passado, a tradição devia ser criticada e dissipada em nome da Razão e, mesmo que isso não fosse possível, a própria dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia da sua destruição.
Karl Marx. A convergência destas duas considerações é evidente tanto na obra de Marx como na obra de Max Weber. Sob a influência do Iluminismo, Karl Marx via a tradição como a principal fonte de mistificação que encobria e ocultava a verdadeira natureza das relações sociais. A dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia, ela própria, de quebrar e dissolver as relações sociais e as tradições das sociedades pré-modernas. Pelo menos, é assim que a modernização é apresentada no "Manifesto do Partido Comunista". Isto significa que a desmistificação das relações sociais é um processo latente ao desenvolvimento e à expansão do modo de produção capitalista: «O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cortejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurbalidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas» (Marx & Engels). Quando as forças de produção atingirem um determinado nível de desenvolvimento, entrarão em contradição com a manutenção das relações de produção estabelecidas, levando o proletariado a vê-las como relações de exploração do homem pelo homem e a lutar pela sua transformação revolucionária, em direcção a uma sociedade mais livre e justa, portanto, mais transparente: «Antes de tudo, a burguesia produz os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (Marx & Engels).
Max Weber. Embora não fosse optimista como Marx, Max Weber acreditava que o desenvolvimento do capitalismo industrial seria acompanhado pelo desaparecimento das cosmovisões tradicionais. É certo que a ética protestante desempenhou um papel fundamental na emergência do capitalismo ocidental, mas, uma vez estabelecido como forma predominante de actividade económica, o capitalismo adquiriu uma tal força que acabou por dispensar as ideias e as práticas religiosas que tinham sido necessárias ao seu surgimento. Além de ter promovido o aparecimento do Estado burocrático nacional, o desenvolvimento do capitalismo racionalizou progressivamente a acção social e adaptou-a aos critérios da eficiência técnica. O puramente pessoal e individual, o elemento espontâneo e emotivo da acção tradicional, foi esmagado pelas exigências de objectivos racionalmente calculados. Este processo de racionalização e, portanto, de desencantamento do mundo, foi o preço pago pela racionalização ocidental, de resto vista como «a fatalidade dos tempos modernos» (Weber).
As teorias da modernização elaboradas posteriormente aceitaram a existência da oposição entre sociedades tradicionais e sociedades modernas e encararam a passagem das primeiras para as segundas como um processo irreversível e de sentido único. Estas teorias podem ser enquadradas sob uma mesma designação: a grande narrativa da transformação cultural, para retomar um conceito de Lyotard, que Horkheimer & Adorno apresentaram numa perspectiva filosófica na sua obra "Dialéctica do Esclarecimento", onde, associando as ideias de Marx e de Weber, com recurso a Nietzsche e a Freud, conceberam a dialéctica do progresso como regressão. Esta grande narrativa da modernização pode ser reconduzida a três elementos-chave:
1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e noutros lugares do mundo foi acompanhado pelo declínio das crenças e das práticas religiosas e mágicas que prevaleciam nas sociedade pré-industriais. Isto significa que o desenvolvimento económico capitalista foi seguido, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e das práticas religiosas e pela racionalização progressiva da vida social. Peter Berger definiu a secularização como um processo de «progressiva "perda de realidade" por parte das interpretações religiosas tradicionais do mundo». Ao racionalizar sectores cada vez mais amplos da vida social, a modernização privou o indivíduo da segurança que lhe proporcionavam as instituições tradicionais. Esta insegurança implicou «a ameaça constante de isolamento e de falta de sentido».
2. O declínio da religião e da magia prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou ideologias, que servem para mobilizar a acção política, sem referência a valores ou a seres de outro mundo (seres sobrenaturais). A consciência religiosa e mística da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas colectividades sociais e animadas pelos sistemas seculares de crenças.
3. Estes desenvolvimentos deram lugar à "Era da Ideologia" que culminou em movimentos revolucionários radicais no final do século XIX e inícios do século XX. Estes movimentos foram as últimas manifestações da era da ideologia. Actualmente, a política é cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodação pragmática de interesses em conflito. A acção social e política é cada vez menos animada por sistemas seculares de crenças que exigem a mudança social radical. Por isso, estamos a assistir não só ao fim da era das ideologias, mas também ao fim da ideologia como tal, como defenderam Daniel Bell, Raymond Aron, Jean-François Lyotard e Vattimo.
Lyotard vai mais longe quando afirma que o projecto moderno da realização da universalidade não foi abandonado ou esquecido, mas destruído e liquidado, e, em seu lugar, surge aquilo a que chamou pós-modernidade. Porém, A. Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash reagiram contra a esta teoria do fim da modernidade, opondo-lhe uma nova teoria da modernidade, a modernização reflexiva, já previamente desenvolvida por Giddens. Esta nova teoria defende que, nas primeiras fases da modernização, muitas instituições dependiam das tradições das sociedades pré-industriais. Contudo, à medida que a modernização entra na sua fase mais avançada (a modernização reflexiva de Beck), as tradições começaram a perder a sua força, de modo que as sociedades modernas se tornaram "destradicionalizadas". Embora não tenham ainda desaparecido completamente, as tradições gozam de um estatuto que mudou significativamente. As práticas tradicionais perderam o monopólio da verdade e tornaram-se menos seguras quando são expostas ao escrutínio e à discussão públicos. Ao serem chamadas a defender-se, estas práticas perdem o status de verdades inquestionáveis. Um modo de sobrevivência é a sua transformação num tipo de fundamentalismo, como o islâmico, que rejeita o apelo da justificação discursiva e procura, num clima de dúvida generalizada, reafirmar o seu carácter inviolável.
Podemos alegar dois argumentos contra a tese do declínio da tradição que teria acompanhado o desenvolvimento das sociedades modernas:
1. Determinadas tradições e sistemas de crenças tradicionais continuam a estar presentes nas sociedades dos séculos XX e XXI, tais como as igrejas católicas ou protestantes, às quais vieram associar-se os novos movimentos religiosos ou mágicos, tomados geralmente como o regresso do sagrado.
2. A tese do declínio da tradição não leva em conta o papel dos mass media.
J. Thompson foi dos poucos teóricos sociais que compreendeu a verdadeiro impacto dos mass media na transformação das sociedades modernas. A sua teoria da modernização assenta na ideia crucial de que a mediatização da tradição a dotou de nova vida, liberando-a das limitações da interacção face a face e revestindo-a de novas características. A tradição desritualizou-se e perdeu parcialmente a sua fundação nos contextos práticos da vida quotidiana. Os mass media electrónicos tanto os da primeira geração como os da segunda geração são actualmente a nova fundação da tradição.
«Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso». (Walter Benjamin)
2. Mas afinal o que é a tradição? No seu sentido mais geral, a tradição é, como diz Thompsom, «um traditum, isto é, qualquer coisa que é transmitida e trazida do passado». Thompson distingue quatro aspectos diferentes da tradição, frequentemente confundidos, mas interligados entre si: o hermenêutico, o normativo, o legitimador e o identificador.
1º. Aspecto hermenêutico. A hermenêutica de Heidegger a Gadamer encara a tradição como um conjunto de pré-compreensões ou de preconceitos de fundo que são aceites pelos indivíduos quando se orientam na vida quotidiana e que são transmitidos de geração em geração. Para a hermenêutica, a tradição não constitui um guia normativo usado para orientar a acção, mas um esquema interpretativo, uma estrutura mental prévia, usada para ajudar os indivíduos a entender e a compreender o mundo em que foram e estão lançados. Toda a compreensão funda-se em pré-compreensões ou, como prefere dizer Gadamer, em preconceitos, portanto, num conjunto de conceitos que tomamos como certos e evidentes e que fazem parte integrante da tradição a que pertencemos. Nenhuma compreensão pode ser completa e inteiramente isenta destes preconceitos fácticos ou contrafácticos.
Como já vimos noutro post, Gadamer leva a cabo a requalificação da crítica iluminista da tradição. Ao opor as noções de razão, de conhecimento científico e de emancipação às noções de tradição, de autoridade e de mito, o Iluminismo não descartou a tradição como tal, mas articulou um conjunto de novos preconceitos e de novos métodos que formavam o núcleo duro de outra tradição: a tradição do próprio Iluminismo. Por conseguinte, o Iluminismo não constitui a antítese da tradição, mas é, ele próprio, uma tradição entre outras tradições: um conjunto de suposições ou preconceitos aceites como verdadeiros, sem exame prévio, que articulam uma estrutura cognitiva que ilumina o conhecimento do mundo. Quando Habermas lhe lembra que a tradição pode ser criticada, Gadamer responde que esta é sempre uma tradição aberta e em constante mudança.
2º. Aspecto normativo. As tradições também são conjuntos de suposições, crenças e padrões de comportamento, trazidos do passado, que servem como princípios orientadores para as acções e as crenças do presente. Este aspecto normativo da tradição manifesta-se de duas maneiras: a) as tradições do passado podem funcionar como princípio normativo no sentido de rotinizarem determinadas práticas (práticas rotineiras), desse modo realizadas com pouca reflexão, dado que sempre foram realizadas da mesma maneira ao longo dos tempos. A vida quotidiana desenrola-se normalmente sob o signo da rotina. b) As tradições do passado também podem funcionar como princípio normativo no sentido de fundamentarem tradicionalmente determinadas práticas (práticas tradicionalmente fundamentadas), isto é, de justificá-las pela referência à tradição.
3º. Aspecto Legitimador. A tradição pode, em determinadas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Max Weber distinguiu três modos de estabelecer a legitimidade de um sistema de dominação: a) a autoridade legal, cujas reivindicações de legitimidade se fundam em fundamentos racionais que envolvem a crença na legalidade das normas promulgadas; b) a autoridade carismática, cuja legitimidade se baseia em fundamentos carismáticos que implicam a devoção à santidade ou ao carácter excepcional de um indivíduo; e c) a autoridade tradicional, cuja legitimidade fundada na tradição envolve a crença no carácter sagrado de tradições imemoriais.
No caso da autoridade legal, os indivíduos obedecem a um sistema impessoal de normas, porque a burocracia é o regime de ninguém e onde ninguém pode ser responsabilizado, excepto os chamados "criminosos" criados pelas próprias leis. No caso da autoridade tradicional, as pessoas obedecem à pessoa que ocupa a posição de autoridade tradicionalmente sancionada: as suas acções tornam-se obrigatórias por tradição. Nalgumas circunstâncias, a tradição pode ter um carácter político, funcionando não só como princípio normativo de acção, mas também como base para o exercício do poder exercido sobre outros, de modo a garantir a sua obediência. Neste sentido, as tradições tornam-se ideológicas, sendo usadas para sustentar relações desiguais e assimétricas de poder.
4º. Aspecto Identificador. Este aspecto da tradição diz respeito ao papel desempenhado pela tradição na formação da identidade: identidade pessoal e identidade colectiva. A auto-identidade refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo, como sendo um indivíduo dotado de determinadas características ou traços pessoais e situado numa determinada trajectória de vida. A identidade colectiva refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo como sendo membro de um grupo social ou colectividade mais vasta. Trata-se, portanto, do sentido de pertença: a noção de fazer parte integrante de um grupo social que tem uma história própria e um destino colectivo comum.
O processo de formação de identidade não começa do nada; pelo contrário, como já vimos noutro post, constrói-se sempre a partir de um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. Ora, as tradições são precisamente reservatórios de suposições, preconceitos, crenças e padrões de comportamento que, trazidos do passado, fornecem os materiais simbólicos necessários para a auto-formação da identidade individual e colectiva. Assim, o sentido que cada um tem de si mesmo e de pertencer a um grupo social é moldado e condicionado pela tradição a que pertence. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa
2. A teoria social clássica via, portanto, a emergência e o desenvolvimento das sociedades modernas como um processo dinâmico intrinsecamente destruidor da tradição. Como herança do passado, a tradição devia ser criticada e dissipada em nome da Razão e, mesmo que isso não fosse possível, a própria dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia da sua destruição.
Karl Marx. A convergência destas duas considerações é evidente tanto na obra de Marx como na obra de Max Weber. Sob a influência do Iluminismo, Karl Marx via a tradição como a principal fonte de mistificação que encobria e ocultava a verdadeira natureza das relações sociais. A dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia, ela própria, de quebrar e dissolver as relações sociais e as tradições das sociedades pré-modernas. Pelo menos, é assim que a modernização é apresentada no "Manifesto do Partido Comunista". Isto significa que a desmistificação das relações sociais é um processo latente ao desenvolvimento e à expansão do modo de produção capitalista: «O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cortejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurbalidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas» (Marx & Engels). Quando as forças de produção atingirem um determinado nível de desenvolvimento, entrarão em contradição com a manutenção das relações de produção estabelecidas, levando o proletariado a vê-las como relações de exploração do homem pelo homem e a lutar pela sua transformação revolucionária, em direcção a uma sociedade mais livre e justa, portanto, mais transparente: «Antes de tudo, a burguesia produz os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (Marx & Engels).
Max Weber. Embora não fosse optimista como Marx, Max Weber acreditava que o desenvolvimento do capitalismo industrial seria acompanhado pelo desaparecimento das cosmovisões tradicionais. É certo que a ética protestante desempenhou um papel fundamental na emergência do capitalismo ocidental, mas, uma vez estabelecido como forma predominante de actividade económica, o capitalismo adquiriu uma tal força que acabou por dispensar as ideias e as práticas religiosas que tinham sido necessárias ao seu surgimento. Além de ter promovido o aparecimento do Estado burocrático nacional, o desenvolvimento do capitalismo racionalizou progressivamente a acção social e adaptou-a aos critérios da eficiência técnica. O puramente pessoal e individual, o elemento espontâneo e emotivo da acção tradicional, foi esmagado pelas exigências de objectivos racionalmente calculados. Este processo de racionalização e, portanto, de desencantamento do mundo, foi o preço pago pela racionalização ocidental, de resto vista como «a fatalidade dos tempos modernos» (Weber).
As teorias da modernização elaboradas posteriormente aceitaram a existência da oposição entre sociedades tradicionais e sociedades modernas e encararam a passagem das primeiras para as segundas como um processo irreversível e de sentido único. Estas teorias podem ser enquadradas sob uma mesma designação: a grande narrativa da transformação cultural, para retomar um conceito de Lyotard, que Horkheimer & Adorno apresentaram numa perspectiva filosófica na sua obra "Dialéctica do Esclarecimento", onde, associando as ideias de Marx e de Weber, com recurso a Nietzsche e a Freud, conceberam a dialéctica do progresso como regressão. Esta grande narrativa da modernização pode ser reconduzida a três elementos-chave:
1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e noutros lugares do mundo foi acompanhado pelo declínio das crenças e das práticas religiosas e mágicas que prevaleciam nas sociedade pré-industriais. Isto significa que o desenvolvimento económico capitalista foi seguido, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e das práticas religiosas e pela racionalização progressiva da vida social. Peter Berger definiu a secularização como um processo de «progressiva "perda de realidade" por parte das interpretações religiosas tradicionais do mundo». Ao racionalizar sectores cada vez mais amplos da vida social, a modernização privou o indivíduo da segurança que lhe proporcionavam as instituições tradicionais. Esta insegurança implicou «a ameaça constante de isolamento e de falta de sentido».
2. O declínio da religião e da magia prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou ideologias, que servem para mobilizar a acção política, sem referência a valores ou a seres de outro mundo (seres sobrenaturais). A consciência religiosa e mística da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas colectividades sociais e animadas pelos sistemas seculares de crenças.
3. Estes desenvolvimentos deram lugar à "Era da Ideologia" que culminou em movimentos revolucionários radicais no final do século XIX e inícios do século XX. Estes movimentos foram as últimas manifestações da era da ideologia. Actualmente, a política é cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodação pragmática de interesses em conflito. A acção social e política é cada vez menos animada por sistemas seculares de crenças que exigem a mudança social radical. Por isso, estamos a assistir não só ao fim da era das ideologias, mas também ao fim da ideologia como tal, como defenderam Daniel Bell, Raymond Aron, Jean-François Lyotard e Vattimo.
Lyotard vai mais longe quando afirma que o projecto moderno da realização da universalidade não foi abandonado ou esquecido, mas destruído e liquidado, e, em seu lugar, surge aquilo a que chamou pós-modernidade. Porém, A. Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash reagiram contra a esta teoria do fim da modernidade, opondo-lhe uma nova teoria da modernidade, a modernização reflexiva, já previamente desenvolvida por Giddens. Esta nova teoria defende que, nas primeiras fases da modernização, muitas instituições dependiam das tradições das sociedades pré-industriais. Contudo, à medida que a modernização entra na sua fase mais avançada (a modernização reflexiva de Beck), as tradições começaram a perder a sua força, de modo que as sociedades modernas se tornaram "destradicionalizadas". Embora não tenham ainda desaparecido completamente, as tradições gozam de um estatuto que mudou significativamente. As práticas tradicionais perderam o monopólio da verdade e tornaram-se menos seguras quando são expostas ao escrutínio e à discussão públicos. Ao serem chamadas a defender-se, estas práticas perdem o status de verdades inquestionáveis. Um modo de sobrevivência é a sua transformação num tipo de fundamentalismo, como o islâmico, que rejeita o apelo da justificação discursiva e procura, num clima de dúvida generalizada, reafirmar o seu carácter inviolável.
Podemos alegar dois argumentos contra a tese do declínio da tradição que teria acompanhado o desenvolvimento das sociedades modernas:
1. Determinadas tradições e sistemas de crenças tradicionais continuam a estar presentes nas sociedades dos séculos XX e XXI, tais como as igrejas católicas ou protestantes, às quais vieram associar-se os novos movimentos religiosos ou mágicos, tomados geralmente como o regresso do sagrado.
2. A tese do declínio da tradição não leva em conta o papel dos mass media.
J. Thompson foi dos poucos teóricos sociais que compreendeu a verdadeiro impacto dos mass media na transformação das sociedades modernas. A sua teoria da modernização assenta na ideia crucial de que a mediatização da tradição a dotou de nova vida, liberando-a das limitações da interacção face a face e revestindo-a de novas características. A tradição desritualizou-se e perdeu parcialmente a sua fundação nos contextos práticos da vida quotidiana. Os mass media electrónicos tanto os da primeira geração como os da segunda geração são actualmente a nova fundação da tradição.
«Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso». (Walter Benjamin)
2. Mas afinal o que é a tradição? No seu sentido mais geral, a tradição é, como diz Thompsom, «um traditum, isto é, qualquer coisa que é transmitida e trazida do passado». Thompson distingue quatro aspectos diferentes da tradição, frequentemente confundidos, mas interligados entre si: o hermenêutico, o normativo, o legitimador e o identificador.
1º. Aspecto hermenêutico. A hermenêutica de Heidegger a Gadamer encara a tradição como um conjunto de pré-compreensões ou de preconceitos de fundo que são aceites pelos indivíduos quando se orientam na vida quotidiana e que são transmitidos de geração em geração. Para a hermenêutica, a tradição não constitui um guia normativo usado para orientar a acção, mas um esquema interpretativo, uma estrutura mental prévia, usada para ajudar os indivíduos a entender e a compreender o mundo em que foram e estão lançados. Toda a compreensão funda-se em pré-compreensões ou, como prefere dizer Gadamer, em preconceitos, portanto, num conjunto de conceitos que tomamos como certos e evidentes e que fazem parte integrante da tradição a que pertencemos. Nenhuma compreensão pode ser completa e inteiramente isenta destes preconceitos fácticos ou contrafácticos.
Como já vimos noutro post, Gadamer leva a cabo a requalificação da crítica iluminista da tradição. Ao opor as noções de razão, de conhecimento científico e de emancipação às noções de tradição, de autoridade e de mito, o Iluminismo não descartou a tradição como tal, mas articulou um conjunto de novos preconceitos e de novos métodos que formavam o núcleo duro de outra tradição: a tradição do próprio Iluminismo. Por conseguinte, o Iluminismo não constitui a antítese da tradição, mas é, ele próprio, uma tradição entre outras tradições: um conjunto de suposições ou preconceitos aceites como verdadeiros, sem exame prévio, que articulam uma estrutura cognitiva que ilumina o conhecimento do mundo. Quando Habermas lhe lembra que a tradição pode ser criticada, Gadamer responde que esta é sempre uma tradição aberta e em constante mudança.
2º. Aspecto normativo. As tradições também são conjuntos de suposições, crenças e padrões de comportamento, trazidos do passado, que servem como princípios orientadores para as acções e as crenças do presente. Este aspecto normativo da tradição manifesta-se de duas maneiras: a) as tradições do passado podem funcionar como princípio normativo no sentido de rotinizarem determinadas práticas (práticas rotineiras), desse modo realizadas com pouca reflexão, dado que sempre foram realizadas da mesma maneira ao longo dos tempos. A vida quotidiana desenrola-se normalmente sob o signo da rotina. b) As tradições do passado também podem funcionar como princípio normativo no sentido de fundamentarem tradicionalmente determinadas práticas (práticas tradicionalmente fundamentadas), isto é, de justificá-las pela referência à tradição.
3º. Aspecto Legitimador. A tradição pode, em determinadas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Max Weber distinguiu três modos de estabelecer a legitimidade de um sistema de dominação: a) a autoridade legal, cujas reivindicações de legitimidade se fundam em fundamentos racionais que envolvem a crença na legalidade das normas promulgadas; b) a autoridade carismática, cuja legitimidade se baseia em fundamentos carismáticos que implicam a devoção à santidade ou ao carácter excepcional de um indivíduo; e c) a autoridade tradicional, cuja legitimidade fundada na tradição envolve a crença no carácter sagrado de tradições imemoriais.
No caso da autoridade legal, os indivíduos obedecem a um sistema impessoal de normas, porque a burocracia é o regime de ninguém e onde ninguém pode ser responsabilizado, excepto os chamados "criminosos" criados pelas próprias leis. No caso da autoridade tradicional, as pessoas obedecem à pessoa que ocupa a posição de autoridade tradicionalmente sancionada: as suas acções tornam-se obrigatórias por tradição. Nalgumas circunstâncias, a tradição pode ter um carácter político, funcionando não só como princípio normativo de acção, mas também como base para o exercício do poder exercido sobre outros, de modo a garantir a sua obediência. Neste sentido, as tradições tornam-se ideológicas, sendo usadas para sustentar relações desiguais e assimétricas de poder.
4º. Aspecto Identificador. Este aspecto da tradição diz respeito ao papel desempenhado pela tradição na formação da identidade: identidade pessoal e identidade colectiva. A auto-identidade refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo, como sendo um indivíduo dotado de determinadas características ou traços pessoais e situado numa determinada trajectória de vida. A identidade colectiva refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo como sendo membro de um grupo social ou colectividade mais vasta. Trata-se, portanto, do sentido de pertença: a noção de fazer parte integrante de um grupo social que tem uma história própria e um destino colectivo comum.
O processo de formação de identidade não começa do nada; pelo contrário, como já vimos noutro post, constrói-se sempre a partir de um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. Ora, as tradições são precisamente reservatórios de suposições, preconceitos, crenças e padrões de comportamento que, trazidos do passado, fornecem os materiais simbólicos necessários para a auto-formação da identidade individual e colectiva. Assim, o sentido que cada um tem de si mesmo e de pertencer a um grupo social é moldado e condicionado pela tradição a que pertence. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa
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