domingo, 29 de junho de 2008

Fractura e Divagação Rilkeana

«E sou eu que tenho que dar a verdadeira explicação das Elegias? Elas ultrapassam-me infinitamente». (Rainer Maria Rilke)
«Os meus poemas têm o sentido que se lhes dê». (Paul Valéry)
«A obra literária faz apelo, de um modo essencial, à leitura». (Hans-Georg Gadamer)
O conceito predominante destas divagações nocturnas é fractura: a fractura originária, a "dor originária" (Rilke), que aqui "identifico" com o Vale do Rift: a fractura da crosta terrestre que deu origem ao homem, esse ser fracturante nascido de uma fractura da Terra, que o obrigou a pôr-se de pé e a caminhar em frente. Como escreveu Yves Coppens: «A "espuma da Terra" é que teria propiciado o "Homem neuronal" (Jean-Pierre Changeux), esse Homem que apareceu porque a Terra se fracturou, porque o clima secou».
O poema de Rilke que desencadeou estas divagações nocturnas diz:
"Oh como tudo está longe
e há tanto tempo passado.
Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar.
E uma, de entre todas as estrelas,
havia de existir ainda na verdade.
Creio bem que saberia
qual delas foi que durou
sozinha,
qual, como cidade branca,
está no extremo do raio nos céus..."
A Oitava Elegia de Duíno de Rainer Maria Rilke compara o modo de ser do homem que sai do ventre materno para viver de frente até à morte, e o modo de ser do animal que vive na eternidade, porque não saiu do seio. A Elegia termina com este verso: "Assim vivemos nós, sempre a despedir-nos" ("So leben wir und nehmen immer Abschied").
O nosso "destino" humano é estar em frente e sempre em frente. Somos seres conscientes e, por isso, ocorre a fractura entre sujeito e objecto. Esta fractura obriga-nos a estar sempre em frente do mundo, embora nascidos do ventre materno, e, não como sucede com os animais, no seio do mundo. Temos consciência de sermos mortais. A morte pertence-nos: a nossa própria morte. Estamos de tal modo familiarizados com esta atitude de estar em frente que tememos deixar estar em frente: tememos a nossa perda no seio do mundo. Como mortal, eu temo-a e muito, mas sou ser lançado em frente, sempre em frente, e erguido: observo o que me rodeia, com os olhos voltados para o futuro, ao mesmo tempo que algo atrás nos retém no passado, mas num passado despedido, constantemente despedido.
Heidegger não apreciava essa atitude humana de estar em frente: viu nela o espírito da ciência e da técnica, o domínio da natureza. Porém, a leitura de Heidegger é simplesmente uma leitura de Rilke. Talvez a leitura de Heidegger seja a mais adequada para dar sentido ao mundo dos povos selvagens, embora Rilke pareça não fazer uma distinção entre dois modos de ser humano. Como ser em risco, o homem não tem abrigo e, se o deseja ter, tem de o criar. Criar um abrigo, mesmo que passageiro, implica estar de frente e agir. O abrigo conquista-se nessa luta em que o homem se arrisca, consciente de poder perder a vida a qualquer momento. A consciência da nossa mortalidade é consciência do Tempo. O Tempo é o Grande Risco e, no "pedaço" que nos pertence, "nesta triste duração" (Rilke), estamos sempre a arriscar, arriscando a nossa própria vida. De certo modo, o Aberto de Rilke não significa somente poder viver a plenitude do presente, que é a plenitude da eternidade em que vive o animal. O Aberto menciona negativamente, no plano do homem, a "ausência" de "destino" ou, pelo menos, a impossibilidade de viver, num eterno presente, dentro do mundo e em fusão com o mundo. Uma vez saídos do ventre materno, tudo nos pode acontecer e estamos sempre em risco: a nossa acção e os seus efeitos escapam-nos ao controle. Devemos estar erguidos, de pé, com olhar circunspecto, vigilante e voltado para o futuro, porque a morte é sempre certa: somos seres "efémeros" (Rilke).
Se a dor é fenda, fractura, dilaceramento, então o homem é ser dorido/sofrido/fracturado: os homens são "os perdulários de dores" (Rilke). Esta é a nossa condição de mortais. Estar de frente é ser ao modo de ser da fractura originária e esta não é somente a fractura interior/exterior, sujeito/objecto, mas também a fractura que atravessa a nossa própria espessura interior. Corremos o risco de fractura total em diversas frentes. Somos seres fracturantes: a vida efémera é a luta em que o homem se arrisca sem garantia fundamental a não ser a da morte certa. O seio em que o animal vive mergulhado na "imediatez" do presente é vivido fugazmente pelos homens durante os momentos de paixão, mas estes momentos são milésimos de segundo numa vida consagrada à fractura e, portanto, em risco permanente e sempre condenada à morte.
Donde vem a Relação ao homem? O universo poético de Rilke começa a estremecer: a fissão é apenas uma modalidade de ser fracturado. Há outra modalidade de ser fracturado: a fusão, mas ambas se banham e se fundam na fractura originária, a que funda o humano mortal. Nessa fractura que somos, podemos tomar uma decisão/resolução: adiar constantemente a morte em atitude circunspectiva e ex(s)pectante ou antecipar a morte que nos acompanha: fugimos do "destino certo" ou ansiamos por ele, sabendo que a vida não tem sentido e que é absurda (Rilke). Nessa pequena mas dolorosa decisão/resolução reside toda a nossa liberdade. Somos seres que adiam a morte autêntica: aquela morte "heróica" (Rilke) que resulta da nossa própria decisão. Somos mortos adiados: "os infinitamente mortos" (Rilke). Por isso, como mortal, fora, completamente fora... de mim, eu estou. Afinal, sou um ser fracturante! O poema de Rilke diz:
"Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar."
O poema revela no seu último verso donde vem a Relação: "Gostava de rezar" "debaixo do céu imenso". Como os poetas são seres tão simples! Também Guerra Junqueiro o sabia. Anoitece a carne, amanhece o espírito! O espírito azul... E, com este anoitecer azul do espírito, despeço-me dos laços virtuais fracturantes. Visto-me de noite e noite profunda eu sou, o fundo da meia-noite onde o azul aparece na sua azulidade, aquela que anseia pelo ainda não-nascido. Aliás, abriga o não-nascido. Isso mesmo: a-briga o não-nascido. Nada está destinado ao ser fracturante, de resto o ser "solitário" (Rilke) que passa pela vida "em despedida sempre". Como diz o poeta:
"Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou".
Ou o poema de Georg Trakl:
«Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
«Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
«Somos os viandantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las».
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Happy BirthDay to my Blog


Hoje este blogue festeja o seu primeiro aniversário, juntamente com o seu irmão gémeo "CyberCultura e Democracia Online": Feliz aniversário "CyberCultura e Democracia Online" e "CyberPhilosophy"! E obrigado a todos os ciberamigos/as que os frequentam e que os enriquecem com os seus comentários. Os meus blogues têm sido ao longo deste último ano a minha casa virtual, cujos quartos "CyberBiologia e CyberMedicina" e "NeuroFilosofia" partilho com todos aqueles que a visitam. Sobre a casa Gaston Bachelard escreveu:
«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa.»
A minha casa virtual tornou-se, com o decorrer do tempo, um espaço de ligação e de diálogo, onde emergem pensamentos, lembranças e sonhos diurnos, por vezes numa blogosfera adversa e pouco preparada para os sonhos de um mundo melhor. Tal como as casas literárias de George Spyridaki e de René Cazelles, a minha casa virtual é de tal modo dinâmica que permite a todos os que a frequentam habitar o universo: as paredes foram abolidas e nela é possível curar a claustrofobia.
A minha querida amiga Denise dedicou este post ao primeiro aniversário dos cybergémeos: Parabéns Gémeos. E agradeço ao blogue "Aniversário de Blogues" por me ter recordado deste acontecimento.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Internet, Humanidade e Cidadania Mundial

«Que cada homem diga o que considera verdade, e deixe ao cuidado de Deus a verdade em si!» (Lessing)

A Internet «alenta a esperança de que, após muitas revoluções transformadoras, virá por fim a realizar-se o que a Natureza apresenta como propósito supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do género humano». (I. Kant)

O nosso planeta Terra é uma esfera, na superfície da qual permanecemos e nos movemos. Não temos outro lugar para ir e, por isso, enquanto seres mortais na/da Terra, estamos destinados a viver para sempre na vizinhança e na companhia dos outros. Em 1784, Kant observou que o nosso movimento em torno da superfície terrestre acabará por reduzir a distância que nos separa uns dos outros. Isto significa que a perfeita unificação da espécie humana por meio de uma cidadania comum é o destino que a Natureza nos reservou ao colocar-nos na superfície esférica do nosso planeta azul. A unidade da humanidade constitui o derradeiro horizonte da nossa história universal, um horizonte que devemos tentar alcançar plenamente e que, graças às novas tecnologias da comunicação, podemos realizar, levando em conta que a Natureza nos obriga a uma visão da hospitalidade.

Em tempos sombrios, como o tempo do Terceiro Reich ou mesmo o nosso tempo metabolicamente reduzido, a emigração interior é um fenómeno muito frequente, porque as pessoas, perante uma realidade intolerável e inumana, tendem a trocar o mundo e o seu espaço público por uma vida interior. Quando a emigração interior toma a forma radical de uma existência que ignora o mundo real em proveito de um mundo imaginário "como deveria ser" ou como "tinha sido" em tempos remotos perde necessariamente relevância política, isto é, autolimita-se em termos de capacidade de levar a cabo a tarefa política de transformar qualitativamente o mundo. As pessoas que fogem deste modo ao mundo em tempos sombrios tornam-se impotentes e incapazes de confrontar o poder estabelecido, fazendo-se "exiladas interiores". Deste modo, não se libertam do cativeiro do consumismo que reduz o mundo da vida a uma província da economia capitalista especulativa.

Porém, a emigração interior é potencialmente um fenómeno ambíguo: significa, por um lado, que as pessoas se comportam como se já não pertencessem a um país, onde se sentem como emigrantes ou estranhas, e, por outro lado, que essas pessoas, sem emigrar realmente, se refugiam num domínio interior, na invisibilidade do pensamento e do sentimento. Em qualquer um dos sentidos, a emigração interior constitui uma forma de exílio ou de existência à margem da ordem estabelecida, que, no caso em que ignora o mundo real, se converte numa
fuga ao mundo, portanto, em alheamento do mundo. Contudo, graças às novas tecnologias da comunicação, em especial à Internet, esta fuga ao mundo estabelecido pode deixar de ser privada e tornar-se pública: o mundo público dominante pode ser questionado e discutido neste novo mundo virtual, no qual germina possivelmente a verdadeira cidadania mundial num processo dinâmico, interactivo e participado de conversação constante e interminável. De certo modo, com a Internet emerge uma nova prática da filosofia: a Filosofia Mundial ou CyberFilosofia.

Esta reavaliação do fenómeno da emigração interior pode ser clarificada mediante a análise política da
blogosfera. Com efeito, a Internet, em especial a blogosfera, pode ser vista como a tecnologia que possibilita realizar plenamente a cidadania mundial exigida por Kant, dado ser potencialmente uma comunidade global, uma comunidade inclusiva, mas não exclusiva, que se ajusta à visão kantiana da perfeita unificação da humanidade. Com a Internet, e ao contrário do que sucede com os mass media tradicionais, torna-se possível tirar os actuais refugiados ou emigrantes interiores do vácuo sociopolítico a que foram relegados pelo poder estabelecido e pelo seu pensamento único, o economicismo. A Internet é, portanto, potencialmente uma tecnologia da libertação que convida todos os mortais a dialogar acerca do mundo que os oprime e os exclui. Com a criação de blogues, os emigrantes interiores transformam-se automaticamente em críticos do status quo e, num só e mesmo movimento, criam uma nova esfera pública liberta da tutela dos mass media tradicionais e dos poderes estabelecidos.

A magia desta nova tecnologia da comunicação electrónica consiste em dar visibilidade àquilo que era invisível, o pensamento independente, o "Selbstdenken" de Lessing, que, ao formar-se num diálogo contínuo com os outros acerca do mundo off-line, isto é, do espaço-entre os homens, tende a tornar-se um pensamento global sempre em marcha. E o que é ainda mais promissor é o facto da Internet possibilitar aproximar pessoas perdidas para o mundo, os animais metabolicamente reduzidos, e levá-las em conjunto e organizadas em "associações civis moralizadas" (comunidades virtuais do protesto político) a exorcizar e a lutar contra o alheamento do mundo imposto pela dinâmica irracional da economia capitalista desregulada. Como nova esfera pública virtual, a Internet pode contribuir para a formação de um pensamento colectivo que comprometa as pessoas em relação ao destino do mundo raptado, colonizado e refeudalizado pelos mass media e pelos poderes económicos estabelecidos.
A Internet, como vimos no post anterior, «alenta a esperança de que, após muitas revoluções transformadoras, virá por fim a realizar-se o que a Natureza apresenta como propósito supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do género humano» (I. Kant). Com base neste conceito kantiano, o objectivo deste novo desenvolvimento teórico é recuperar a noção grega de amizade e, tal como fez Lessing, fazer dela uma nova base política para a libertação, opondo-a à noção de fraternidade. Esta recuperação exige a ênfase que damos ao diálogo sobre o mundo e à humanidade da amizade, cujos membros activos estão envolvidos num constante diálogo virtual plural que visa, em última análise, eliminar o mundo inumano.
Trata-se, portanto, de uma proposta política que visa livrar-nos do metabolismo reduzido. Na sua ambiguidade essencial, a emigração interior que mais parece uma fuga ao mundo pode transformar num diálogo sobre o mundo: uma fuga para a frente fundada na hospitalidade e no pluralismo de opiniões, tendo como objectivo descobrir novas alternativas sociais.
A liberdade começa por ser liberdade de movimento e é esta liberdade que conduz à acção transformadora e humanizadora do mundo, na qual experimentamos verdadeiramente a liberdade no mundo. Se o estoicismo representa eventualmente uma fuga do mundo para o eu capaz de se sustentar a si próprio numa independência soberana em relação ao mundo exterior, Lessing abre-nos o mundo do pensamento independente. O Selbstdenken de Lessing que requer inteligência, profundidade e muita coragem não nasce do indivíduo e não é a manifestação do eu: o pensamento não é visto aqui como o diálogo platónico silencioso entre mim comigo próprio, mas como um diálogo antecipado com os outros. Este pensamento que espalha fermenta cognitionis pelo mundo virtual descobre no acto de pensar uma outra forma de se mover livremente no mundo e, em vez de pretender comunicar conclusões, procura incitar os outros ao pensamento independente, com o propósito de suscitar um debate entre cyberpensadores. Deste modo, no mundo virtual da Internet, pensamento e acção manifestam-se no movimento e, por isso, a liberdade é comum a ambos.
A comunidade virtual realiza assim a essência da amizade ("philia") dos gregos, que, segundo Aristóteles, consistia no diálogo: só o intercâmbio constante da conversação podia unir os cidadãos numa "polis". A Internet é precisamente uma longa conversação sobre o mundo e, nas redes mundiais da cidadania, revela-se a "philia", a cyberamizade que une os cidadãos do mundo que sonham um mesmo sonho: o sonho diurno de um mundo melhor.
Segundo Lessing, a essência da "poesia" é a acção, no decurso da qual se pode formar um grupo de fusão ou de militância política capaz de improvisar novas lutas contra a ordem estabelecida. Talvez a tarefa inicial dessas primeiras células seja começar por libertar os outros do seu self metabolicamente reduzido e reintroduzi-los no mundo comum, após se terem convertido e mudado de paradigmas. A concepção da emigração interior possibilita ver os emigrantes interiores ou os desencantados solitários como pessoas excluídas da sociedade metabolicamente reduzida ou, pelo menos, insatisfeitas com o mundo exterior: sentem-se estrangeiras na sua própria pátria. Ora, a Internet, em especial a blogosfera, pode aglutinar essa insatisfação em torno de uma conversação acerca do mundo. Nisso reside a potencialidade negativa da Internet: recusar o status quo e funcionar como palco virtual da cidadania mundial que exige a mudança social qualitativa.
A Internet é potencialmente uma tecnologia libertadora, porque foi criada como um meio para a liberdade, nos primeiros anos da sua existência global, pelos seus criadores/produtores, embora tenham surgido, após a sua comercialização, tecnologias de controlo ("cookies", "passwords" e processos de autenticação), tecnologias de vigilância e tecnologias de investigação, as quais usam encriptação, e com as quais lidamos constantemente. Porém, estas tecnologias de controle estão a ser contrariadas por novas tecnologias da liberdade que garantem a vitalidade do potencial negativo da Internet: o ciberespaço continua a ser uma ágora electrónica global onde a diversidade do descontentamento humano explode numa cacofonia de pronúncias, de idiomas e de estilos. Embora muitos utilizadores metabolicamente reduzidos e conformados com o seu miserável destino usem a Internet para fugir ao mundo ou mesmo para conquistar alguma visibilidade social efémera, sempre sujeita ao desligamento, a maioria dos seus utentes acaba por ser contactada e tocada pelas interpelações dos outros cibernautas, porque a rede é, na sua essência, um espaço social diferencial.
A "philia" como conversação que une os cidadãos da "polis", neste caso os cibernautas pertencentes a uma comunidade virtual, é o oposto da conversa íntima. Segundo Rousseau, a amizade era apenas um fenómeno da esfera da intimidade, em que os amigos abrem o coração uns aos outros, alheados do mundo e das suas exigências práticas. Ora, a Internet é conversação que, por muito impregnada que possa estar do prazer na presença do amigo, diz respeito ao mundo comum, que, se não for objecto constante do diálogo de seres humanos, se torna inumano. O mundo comum só é humano quando se torna objecto de diálogo. A conversação on-line ajuda a humanizar tudo aquilo que se passa no mundo e em nós próprios e, ao conversarmos sobre o mundo, aprendemos a ser humanos. Deste modo, a "cyberphilia" conduz à "philanthropia" que se manifesta na vontade de partilhar o mundo com os outros homens. A "cyberphilanthropia" opõe-se à misantropia dos homens metabolicamente reduzidos, nomeadamente dos membros das novas classes dirigentes, que, com o seu economicismo visto como uma fatalidade neoliberal, excluem os outros da partilha hospitaleira e alegre do mundo. Os misantropos metabolicamente reduzidos não encontram ninguém com quem desejem partilhar o mundo ou, o que é ainda pior, não consideram ninguém digno de gozar com eles o mundo, a natureza e o cosmos.
É evidente que esta concepção libertadora da Internet, em especial da blogosfera, é um projecto político de sedução on-line. Nem todos os utilizadores da Internet desejam ou são capazes de se libertar da condição metabolicamente reduzida: os utentes deambuladores, vagabundos, turistas e jogadores da Internet comportam-se como seres alienados em relação ao mundo. Os seus blogues são refúgios de um self perdido para o mundo e neles predomina algum tipo de conversa íntima, no decurso da qual revelam publicamente a sua intimidade e privacidade, numa atitude de completo alheamento do mundo e das suas exigências políticas. Estes bloguistas metabolicamente reduzidos esquecem que a nossa vida está cada vez mais ligada à Internet, porque já vivemos numa sociedade em rede, onde a economia, os negócios, as empresas, o trabalho, o lazer e a aprendizagem dependem cada vez mais desta nova tecnologia. A própria cultura começa a depender da Internet: a cyberfilosofia visa precisamente clarificar este novo fenómeno e combater as suas possíveis evasões ou alienações. A Internet traz uma mais-valia identitária (e não só) às nossas interacções face to face quotidianas.
Como vimos, Rousseau defendeu a concepção moderna de amizade como conversa íntima com os "amigos". Esta é uma prática frequente entre animais metabolicamente reduzidos, alheados do mundo comum, com a diferença de que agora se partilham mais facilmente infelicidades e desgraças em monólogos opostos uns aos outros, ditos em registo de gritaria, do que as alegrias. A falsa intimidade assim revelada está ligada à misantropia: o homem metabolicamente reduzido não partilha alegremente o mundo com os outros; fala de si mesmo como se fosse o centro de alguma coisa. Já não sabe conversar sobre o mundo: alheio ao mundo e à humanidade, o seu individualismo é falso, porque não há nele um self emancipado mas apenas um animal pegajosamente "devorador".
Quem diz que "o meu blog é a pura negação de quem já não espera nada do mundo e que já não tem força para condensá-la num grito", está, sem disso se aperceber, a dar um grito, até porque nas redes da cidadania estamos sempre a conversar uns com os outros. Quem não espera nada do mundo, refugia-se nalgum nicho ecológico da Internet e acaba por ser descoberto por outro fugitivo. Trava-se um diálogo entre fugitivos e esse diálogo exprime invariavelmente insatisfação com o mundo tal como o conhecemos: é protesto contra a ordem estabelecida e, acima de tudo, é sonhar acordado para a frente com um mundo melhor. A Internet favorece a política de oposição e, ao tomar consciência da sua negatividade, os Estados procuraram e continuam a procurar regulamentá-la.
O jornalismo manipulador e as notícias por ele produzidas são pura misantropia, porque fazem da infelicidade e do infortúnio dos outros o único tema de notícia. O mundo que criam é inumano e inóspito. Ora, aqui na blogosfera liberta, somos potencialmente criadores: não precisamos estar submetidos às práticas de agenda-setting dos mass media tradicionais; criamos a nossa própria agenda e conversamos sobre o mundo com os outros homens. Esta conversa humaniza o mundo e ajuda-nos a aprender a ser humanos. Com efeito, ao contrário dos mass media tradicionais, a Internet possibilita e galvaniza a "abertura aos outros", que é, como sabemos, a condição prévia da humanidade no sentido da "humanitas" romana, porque, no seu seio, qualquer indivíduo, independentemente da sua origem e da sua ascendência étnica, pode ser um cidadão respeitado, participar livremente no diálogo público e discutir com os outros o mundo e a vida. Na blogosfera, o diálogo afina-se pelo diapasão da alegria.
Lessing afirmou a pluralidade de opiniões em vez da busca compulsiva da Verdade que, tomada em si, deixa ao cuidado de Deus. A existência de um "anel verdadeiro" implicaria, como bem viu Lessing, o fim do diálogo, o fim da amizade e o fim da humanidade. Ora, a conversação que somos enquanto cibernautas e bloguistas não visa a Verdade e o discurso único e, por isso, evita utilizar a coerção lógica: mais importante do que a questão da verdade é humanizar o mundo através de um contínuo e incessante diálogo acerca dos seus assuntos e das coisas que o constituem. Enquanto "deuses limitados", navegando nas redes da cidadania mundial, estamos condenados a conversar livremente sobre o mundo. A crítica dirigida contra o sistema estabelecido consiste em tomar partido pelo ponto de vista do mundo, entendendo e julgando tudo em termos da necessidade de mudar qualitativamente o mundo capturado e colonizado pelo capitalismo neoliberal autodestrutivo. Os cyberamigos com os quais conversamos on-line são aqueles que conversam sobre o mundo e que evitam fazer meras revelações "psi". Aliás, um amigo é aquele com quem podemos partilhar as nossas alegrias e esperanças e não apenas as nossas desgraças e ambições pessoais, sabendo que ele não nos inveja.
Este blogue faz o seu primeiro aniversário no dia 27 de Junho, juntamente com o seu irmão gémeo "CyberCultura e Democracia Online
": Veja AQUI.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Teoria Social da Internet

A Internet é frequentemente descrita em termos que implicam um espaço virtual ou ciberespaço (Adams, 1997). A Internet é uma rede de computadores interconectados de modo a criar uma matriz de troca de informação, através de Web sites (páginas estáticas ou interactivas), e-mail (mail electrónico) e IRCs (Internet relay chat room), produzindo um meio virtual. Este espaço é usado pelas pessoas como um lugar para congregação, comunicação e formação de comunidades virtuais (Reymers, 2002). Isto significa que o mundo virtual da Internet é um mundo social e, como tal, é um mundo histórico, perfeitamente inserido e integrado no mundo off-line.
Zygmunt Bauman identificou quatro tipos de «identidade pós-moderna» — o deambulador (flâneur), o vagabundo, o turista e o jogador, que se desenvolvem sobre o pano de fundo do tipo moderno de personalidade, o peregrino.
1. IDENTIDADES PÓS-MODERNAS. Bauman (2007) foi lacónico na elaboração da sua tese sobre o problema da identidade, por oposição à ambivalência da formulação de Kellner (1992):
«A minha posição é que, embora seja verdade que a identidade «continua a ser um problema», não é «o problema que foi ao longo da modernidade». Com efeito, se o «problema da identidade» moderno era o de como construir uma identidade, mantendo-a sólida e estável, o «problema da identidade» pós-moderno é em primeiro lugar o de como evitar a fixação e manter as opções em aberto. No caso da identidade, como noutros casos, a divisa da modernidade era a «criação», e a da pós-modernidade é a «reciclagem». Ou podemos também dizer que se «o media que era a mensagem» da modernidade foi o papel fotográfico, o supremo medium pós-moderno é a cassete de vídeo. A principal ansiedade ligada à identidade dos tempos modernos nascia da preocupação com a durabilidade, e é hoje a preocupação de evitar o compromisso. A modernidade construía em aço e betão; a pós-modernidade, em plástico biodegradável».
1.1. Peregrino. Bauman (2007) descreve o peregrino como «a alegoria mais adequada da estratégia de vida moderna, empenhado que estava na assustadora tarefa da construção da identidade». Contudo, «o mundo já não é hospitaleiro para os peregrinos», que «perderam a batalha ao vencê-la». «A pedra de toque da estratégia de vida pós-moderna não é a construção da identidade, mas a prevenção da fixação». Bauman sustenta que, «do mesmo modo que o peregrino foi a alegoria mais adequada da estratégia da vida moderna, empenhado como estava na assustadora tarefa da construção da identidade, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador desenham um conjunto que é a metáfora da estratégia pós-moderna, animada pelo horror à ligação e à fixação».
1.2. Deambulador. A experiência do deambulante é a de quem vai «sair para deambular como se sai para o teatro, descobrir-se a si próprio entre estranhos e estranho a eles, focar os estranhos como «superfícies» — para que «aquilo que se vê» esgote «o que eles são», e sobretudo vê-los e conhecê-los não mais do episodicamente».
1.3. Vagabundo. «Onde quer que vá, o vagabundo é sempre um estranho; nunca será «o natural», o «estabelecido», alguém «com raízes na terra» — e não porque não o tente: faça o que fizer para ganhar as boas graças dos naturais, permanece demasiado recente a memória da sua chegada — quer dizer do facto de antes estar alhures; traz ainda consigo o cheiro de outros lugares, qualquer coisa contra a qual a casa dos naturais foi construída».
1.4. Turista. «O turista é um caçador consciente e sistemático de experiências, de uma experiência nova e diferente, da experiência da diferença e da novidade — uma vez que as alegrias do familiar murcham depressa e perdem o seu atractivo. Os turistas querem mergulhar-se num elemento estranho e bizarro — na condição, todavia, de esse elemento não perdurar para além dos dispositivos que o transformam numa prestação de prazer e de se poder pô-lo de lado quando bem se entenda».
1.5. Jogador. «O mundo do jogador é o mundo do risco, da intuição, das precauções a tomar. Cada jogo tem o seu começo e o seu fim. Quem não se satisfaça com o desfecho, deve «deixar para trás das costas» o que perdeu e começar tudo de novo, demonstrando que é capaz de o fazer. O jogo é como a guerra, embora a guerra que o jogo é não deixe cicatrizes mentais nem alimente rancores».
Reconhecendo a dificuldade em combinar estes quatro tipos «num mesmo estilo de vida consistente», Bauman (2007) afirma que há «uma componente considerável de esquizofrenia na personalidade pós-moderna — o que em certa medida poderá dar conta da inquietação, inconstância e indecisão manifestas das estratégias de vida adoptadas. (...) As quatro estratégias de vida pós-moderna, que se interpenetram e sobrepõem, têm em comum o facto de tenderem a tornar as relações humanas fragmentárias e descontínuas: combatem, todas elas, as relações que implicam consequências associadas e a longo prazo, e militam contra a construção de redes duradouras de obrigações e deveres mútuos. Todas elas promovem e favorecem uma distância entre o indivíduo e o Outro e apreendem o Outro fundamentalmente como objecto de uma apreciação estética, e não moral — uma questão de gosto e não de responsabilidade». A esta incapacidade moral está associada a invalidez política dos homens e mulheres pós-modernos, isto é, metabolicamente reduzidos. Tanto o deambulante como o vagabundo, o turista e o jogador são personalidades cuja participação no mundo comum é sobretudo constituída através da rejeição defensiva de empenhamentos sociais mais positivos e abertos e, nessa medida, todos estes tipos tendem para a direcção de âmbitos pessoais mais estritamente definidos e cépticos. Nesta perspectiva, a Internet parece favorecer qualquer um destes tipos de personalidades pós-modernas.
2. ESTRATÉGIAS DE VIDA E A INTERNET. Slevin (2002) adaptou esta tipologia das personalidades pós-modernas e transformou-a numa tipologia dos tipos de utentes da Internet ou net-utentes. Seremos mais criativos na terminologia do que foi Slevin e mais cuidadosos a transpor os tipos de Bauman para o mundo da Internet.
2.1. O Peregrino e a Internet. Os utentes peregrinos ou netperegrinos são aquelas pessoas que ficam desconcertadas com as possibilidades da Internet. Para eles, a Internet é um mundo sem lugares e cheio de obstáculos sem um objectivo claro, um mundo onde não tem cabimento caminhar e o caminhante é constantemente tentado a desviar-se do caminho escolhido, eternamente adiando ou mesmo esquecendo o seu destino. É um mundo desconcertante em que os websites surgem do nada e desaparecem de novo sem aviso prévio e raramente existem o tempo suficiente para que o peregrino dos tempos modernos encontre o seu caminho por entre eles. Do seu ponto de vista, a Internet dificilmente poderá facilitar e apoiar uma narrativa coerente do eu, porquanto, segundo crê, a Internet cria um mundo irreal habitado por pessoas falsificadas e em quem não se pode confiar, que podem adoptar qualquer identidade que queiram e até fazer experiências com elas.
A visão peregrina da Internet é a mesma defendida por todos aqueles investigadores que destacam o lado escuro da Internet: a sua cyberciência é ainda a dos peregrinos da modernidade. Contudo, nem todos os peregrinos têm esta visão negativa da Internet e suspeito mesmo que todos aqueles que contribuíram para a sua construção eram peregrinos. Este simples dado mostra que reduzir a identidade moderna à peregrinação não resiste à sua confrontação com a realidade empírica. Se existem tipos de personalidade, eles não surgiram de modo sucessivo, como se fossem meras construções sociais, caídas não se sabe donde e condenadas a sucederem-se umas às outras, em função das configurações sociais e históricas. Além disso, os estudos neurobiológicos mostraram claramente que determinados indivíduos portadores de alguma deficiência cerebral não conseguem auto-controlar-se e muito menos fazer opções. O conceito de liberdade originária não se coaduna bem com o conceito de determinações ou construções sociais. Um homicida não tem como escapar ao seu destino, a menos que seja preso antes de cometer o seu primeiro crime, e o mesmo poderia ser dito do pedófilo, do abusador ou do violador. Mesmo aceitando o conceito de peregrino como uma estratégia de vida, seríamos obrigados a diferenciá-lo para dar conta da realidade empírica.
Tal como elaborado por Bauman, o peregrino mais não é do que uma narrativa que, quanto mais séria for tida, mais distante da realidade se revela. Com efeito, a Internet é uma criação de peregrinos que tudo fizeram e continuam a fazer para a conservar como um espaço da liberdade. Com base na tipologia das orientações de carácter de Erich Fromm, podemos afirmar que o peregrino tem uma orientação produtiva de carácter, aquela que está por detrás da construção da nossa civilização ocidental e que representa a estrutura de carácter em que o crescimento e o florescimento de todas as potencialidades humanas constituem o fim a que se subordinam todas as outras actividades, incluindo o estilo de surfar. De certo modo, os cibernautas peregrinos constrõem aquilo que os restantes utentes se limitam a utilizar em função dos seus interesses e preferências. Isto implica que o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador sejam mais utilizadores dos serviços prestados pela Internet do que criadores de novas tecnologias, os quais tendem a ser peregrinos.
2.2. O Deambulador e a Internet. Os netdeambuladores são aquelas pessoas que navegam descomprometidamente de webpage para webpage, de canal de IRC para canal de IRC, de newsgroup para newsgroup, optando por aceitar ou declinar os pedidos de troca de mensagens que chegam pelo ICQ. Ao proceder deste modo, mergulham na liberdade final de estar presente mas fora de alcance. Para eles, a Internet é simultaneamente um retiro ideal e um meio para elevar o seu estilo de comunicação a um nível superior de perfeição.
2.3. O Vagabundo e a Internet. Os netvagabundos são aquelas pessoas que têm uma série de endereços de e-mail inactivos ou em desuso. Registam-se como utilizadores de websites para os quais há muito esqueceram as palavras de acesso. Começam a elaborar homepages e depois abandonam-nas. Erram pela Internet, agarrando ofertas de contas grátis, não tardando a ser excluídos ou expulsos por não as terem usado.
2.4. O Turista e a Internet. Os neturistas são aquelas pessoas que usam a Internet para participar em experiências estranhas e bizarras que acabam com um clique no rato. Podem escapar ao seu mundo familiar e entrar em diálogo com quem olhar para a vida de uma maneira muito diferente. Podem analisar webpages que assustam, chocam e põem em causa as suas expectativas. No entanto, esta estratégia aumenta a sua confusão quando se trata de decidir qual o local a que poderão chamar o seu lar e qual o local aonde apenas vão de visita. O seu pesadelo consiste em ser apanhado entre o medo das saudades do lar e o medo de ficar preso no lar. Para eles, a Internet oferece um espaço a explorar.
2.5. O Jogador e a Internet. Os netjogadores abordam a Internet como um jogo de computador alargado, ou seja, como uma experiência mediatizada inserida por opção e que pode ser concluída a qualquer momento, deixando os participantes intocados, a não ser pela perda de tempo decorrido durante o jogo. O objectivo do jogador é ganhar a todo o preço, ao mesmo tempo que se protege o melhor possível do perigo. Depois de atrair outros para uma conversa no IRC e conquistar a sua confiança, o jogador limita-se muitas vezes a sair do jogo. A única razão a apresentar seria que «todas as coisas boas têm de acabar a certa altura». Para consternação dos outros que não são jogadores, os jogadores só raramente estão dispostos a suspender a descrença e a jogar o mesmo jogo outra vez.
Esta tipologia dos utilizadores da Internet não foi elaborada com base num cyberestudo empírico, mas limita-se a aplicar as classificações das estratégias de vida moderna e pós-moderna de Bauman ao estudo das utilizações/concepções da Internet. Para todos os efeitos, pressupõe o conceito implícito de que o tipo de personalidade do utente off-line dita o tipo de uso que faz on-line da Internet. A cada tipo de personalidade corresponde um determinado estilo de surfar na WWW ou na enterprise-wide web e uma determinada concepção da Internet.
De certo modo, seria possível estabelecer uma ligação orgânica entre estes cinco tipos de identidades e as cinco orientações de carácter de Erich Fromm: Se o peregrino corresponde à orientação produtiva, o deambulador corresponderia à orientação receptiva (masoquista), o vagabundo, à orientação explorativa (sádico), o turista, à orientação acumulativa (destrutiva), e o jogador, à orientação mercantil (indiferente). A correspondência não é perfeita, porque, na actual sociedade metabolicamente reduzida, a abertura ao mundo é feita à custa da fragilização e liquidificação do self: o indivíduo metabolicamente reduzido é confinado à sua vida metabólica e à satisfacção das suas necessidades, não em termos humanos, porque carece de self sólido e autónomo, nem sequer em termos animais, porque os seus instintos regrediram e são manipulados pelas indústrias do consumo e do lazer programado. A liquidificação do self significa passividade, receptividade, resignação, numa palavra, efeminamento.
Esta tipologia não leva em conta as diferenças etárias, sexuais e de género que possam existir entre os utilizadores da Internet e o modo como essas diferenças se reflectem nos estilos de surfar. Pelos estudos disponíveis, podemos dizer da Internet aquilo que foi dito da indústria pornográfica: Apesar da vasta presença feminina, a Internet continua a ser uma "indústria" produzida por homens e para homens, conceito bem patente nos websites sexuais e pornográficos. Os próprios estudos incidem muito sobre os usos sexuais e aditivos que os homens fazem da Internet.
3. TIPOS DE UTENTES. Diversas tipologias de diferentes tipos de utentes da Internet em relação à actividade sexual e/ou de relação on-line foram propostas (Cooper, 1998; Griffiths, 1999; Young, 1999). Com base num inquérito de 9177 utentes da Internet, Cooper, Putnam, Planchon & Bóies (1999) descobriram que 8% gasta 11 ou mais horas por semana envolvidos em propósitos sexuais on-line e elaboraram um modelo contínuo das pessoas que usam a Internet para propósitos sexuais. Este modelo destaca três tipos de utentes:
3.1. Os utentes recreativos (recreational users) são aqueles que acedem a material sexual on-line mais para propósitos de curiosidade ou de entretenimento e que são tipicamente vistos como não tendo quaisquer problemas associados com os seus comportamentos sexuais on-line.
3.2. Os utentes em risco (at-risk users) são aqueles que, se não fosse a acessibilidade da Internet, nunca desenvolveriam qualquer problema associado com os seus comportamentos sexuais on-line.
3.3. Os utentes compulsivos sexuais (sexual compulsive users) são aqueles que usam a Internet como um fórum para as suas actividades sexuais, dada a sua inclinação para a expressão sexual patológica.
A tipologia dos utilizadores da Internet apresentada está completamente centrada nos seus usos sexuais e/ou amorosos. Convém dizer que, no
meu estudo, os indivíduos homossexuais examinados já eram tendencialmente viciados em sexo na vida real e, graças ao advento da Internet, viram nela uma oportunidade para alargar o seu oásis erótico gay, usando-a exclusivamente para conquistar novos parceiros sexuais e recolher material pornográfico diverso. Porém, apesar da maioria deles procurar concretizar um encontro ocasional off-line, alguns acabam por ficar iludidos com as personagens construídas on-line e apaixonam-se por elas, perdendo a capacidade de discriminar produtivamente entre realidade e fantasia amorosas. Quando arriscam um encontro real, tendem a sentir uma enorme frustração: o parceiro on-line idealizado não corresponde ao indivíduo real que têm diante dos olhos. A arena erótica virtual pode aprisioná-los e condená-los a uma vida solitária e ilusória. Pelo menos, o cibersexo, o sexphone e o sexo via web-cam protege-os das doenças sexualmente transmissíveis: são formas de sexo seguro e livres de envolvimentos ou de compromissos.
Os frequentadores da Internet são de diversos tipos e géneros: temos os que são gays, os que dizem ser bissexuais, muitos dos quais casados ou com namoradas, diversos tipos de parafilias, os prostitutos e os bandidos ou assaltantes. A existência destes dois últimos tipos, sobretudo os últimos, cria uma certa insegurança e perigosidade nos encontros sexuais reais: assaltos, violência e facadas são frequentes. Contudo, muitos dos frequentadores tornam-se amigos, após algum tipo de envolvimento sexual off-line, e usam a Internet para trocar informações entre si: formam-se assim comunidades gay virtuais que se actualizam diversas vezes em encontros reais e festas entre amigos que vivem em locais distantes ou mesmo próximos.
A natureza anónima da Internet atrai provavelmente um número significativo de pessoas cujas preferências sexuais se desviam da norma, bem como daquelas que desejam ocultar a sua actividade sexual, mesmo que seja mais normativa, como sucede com muitos homens heterossexuais casados que procuram relações extraconjugais on-line. Todas estas pessoas voltam-se para a Internet como meio de exploração dos seus auto-aspectos importantes e relevantes. Contudo, até mesmo na Internet, pode ser difícil para estas pessoas descobrir outras pessoas com interesses semelhantes e complementares, sobretudo quando estes são muito invulgares, como ainda é o caso do sadomasoquismo (versão dura) ou da pedopornografia.
A Internet atrai frequentemente aquelas pessoas que podem ser estigmatizadas, excluídas ou punidas (incluindo a aplicação de sanções criminais, como sucede com os pedófilos), se os seus interesses sexuais forem conhecidos (McKenna, Green & Smith, 2001). A habilidade da Internet para transferir ficheiros (files) electrónicos de material erótico ou imagens Web-cam pode simplesmente aumentar a sua atracção. Contudo, esta aparente protecção da legal oversight pode ser ilusória, dada a perícia electrónica da polícia ou de outras autoridades reguladoras. Mas, nos casos que não envolvam criminalidade, o Triple A Engine constitui um superfactor que leva as minorias eróticas a usar a Internet para expressar as suas sexualidades: a Internet possibilita-lhes revelar aspectos relevantes dos seus eus sem sofrerem punições e, muitas vezes, esses aspectos assumidos on-line tendem a ser incorporados nas suas vidas reais off-line e nas suas interacções sociais quotidianas. O anonimato relativo da Internet encoraja a auto-expressão e a ausência dos efeitos da interacção física e não-verbal facilita a formação de relações assentes na partilha de valores e de crenças.
4. RELAÇÕES ONLINE. Griffiths (1999) distinguiu três tipos básicos de relações on-line em função do comportamento on-line actual:
4.1. As relações online virtuais (virtual online relationships) envolvem pessoas que nunca se encontraram na vida real. Elas empenham-se geralmente em trocas de texto sexualmente explícito (sexually explicit text exchanges), mais propriamente em cybersexo, e podem trocar os papéis de género (swap gender roles). Embora possam ter parceiros na vida real, não se sentem como sendo infiéis. A relação é geralmente de curta duração. A troca de papéis de género é muito frequente, em especial entre os indivíduos homossexuais que podem assim conviver intimamente com indivíduos heterossexuais, com os quais desenvolvem relações íntimas muito intensas e duradouras, algumas podendo levar à prática regular de cibersexo ou mesmo de sexo real.
4.2. As relações online de desenvolvimento (developmental online relationships) envolvem pessoas que se conhecem on-line mas que desejam eventualmente deslocar a relação do nível on-line para o nível off-line, após se tornarem emocionalmente íntimas. A partilha de compromisso e de intimidade emocionais leva frequentemente ao cibersexo e/ou a um forte desejo de comunicar constantemente na Internet. A relação é geralmente duradoira e resistente.
4.3. As relações online de manutenção (maintaining online relationships) envolvem pessoas que se conheceram primeiramente na vida real (off-line), mas que prosseguem e conservam on-line a sua relação na maior parte do tempo, devido geralmente ao facto de estarem geograficamente distantes. A relação pode ou não ser de longa duração, dependendo do nível de compromisso e de intimidade emocional.
A Internet tornou-se nos últimos tempos o primeiro e o mais rápido meio natural da vida diária, sendo utilizada nos lugares de trabalho, na manutenção de relações pessoais fechadas, na formação de grupos, no fornecimento de apoio social e no envolvimento comunitário, para além dos seus usos sexuais. Ao contrário do que se pensa, a Internet não faz necessariamente dos seus utentes pessoas deprimidas ou solitárias; pelo contrário, a Internet facilita a comunicação e aproxima a família e os amigos, especialmente quando as pessoas envolvidas não podem fazer visitas regulares umas às outras. A Internet constitui um território fértil para a formação de novas relações, favorecendo mais as relações baseadas na partilha de valores e de interesses do que as relações baseadas na atractividade e na aparência física das pessoas, como se verifica no mundo off-line. Porém, a teoria social da Internet está consciente da fragilização ou liquidação do social.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 15 de junho de 2008

BlogScience: Teoria Crítica da Blogosfera

Este é aparentemente um trabalho teórico mais de recolha de informação do que de fina elaboração teórica, cuja finalidade é sensibilizar os cyberleitores para a tarefa de pensar a blogosfera no âmbito da cyberfilosofia. As fontes documentais deste texto são a Wikipédia, a enciclopédia livre online, e SapoBlogs, sem excluir uma leitura diagonal de alguns blogues nacionais e estrangeiros que tratam deste assunto.
Quando um filósofo faz uma afirmação como a que acabei de proferir, ele encobre um projecto: o de lançar os fundamentos de uma nova ciência — a ciência dos blogues ou blogscience. A razão deste encobrimento prende-se com o facto da filosofia ser um «campo de batalha», onde todas as posições estão tomadas e claramente definidas. Se quisermos conquistar território, temos de definir a nossa posição por oposição a outras posições e, de preferência, desalojá-las, redefinindo um novo espaço de intervenção, quer no plano da ciência, quer no plano da política. A nossa tarefa será reanalisar as concepções implícitas nesses documentos, de modo a criticá-las e a substituí-las por outros conceitos. Começaremos por formular algumas teses:
Tese 1. A ciência dos blogues não é uma recolha acrítica daquilo que os bloguistas dizem da sua própria actividade e da blogosfera. Chamaremos ao conjunto dessas afirmações filosofia espontânea dos bloguistas, a qual constitui matéria-prima teórica que deve ser transformada em conhecimento científico, mediante a elaboração de uma teoria dos blogues e o uso de métodos e instrumentos de trabalho adequados.Com esta tese, acabámos de tomar uma posição forte: a ciência dos blogues é distinta das concepções que os próprios bloguistas tecem sobre a sua actividade e a blogosfera. A segunda tese deve ser mais positiva, procurando delimitar o campo de estudo da blogscience e fixar novas metodologias de estudo desta nova área do conhecimento científico.
Tese 2. Trata-se de uma nova ciência que tem por objecto o estudo das determinações de um fenómeno recente da Internet: a blogosfera. Ao ramo da cyberfilosofia que estuda a blogosfera chamaremos blogscience ou ciência dos blogues e ao conjunto dos blogues, blogosfera. Esta nova ciência afirma-se simultaneamente no plano cognitivo e no plano político. Isto significa que a blogosfera pode ser vista como uma arena de intervenção política (ágora virtual), que alarga necessariamente o âmbito da esfera pública, e, ao mesmo tempo, como uma área de estudo.
1. Concepção Emic da Blogosfera. Costuma-se dizer que a filosofia coloca mais questões do que as resolve, mas, tal como Karl Popper, um adversário dessa concepção vulgar, prefiro colocar questões e resolvê-las ou, pelo menos, apontar para vias de resolução. A nossa posição será formulada por oposição a duas perspectivas: a do SapoBlogs e a da Wikipédia.
1.1. A Concepção do SAPOBLOGS. A concepção da blogosfera apresentada neste portal português é mais objectiva, ou melhor, mais informativa do que a da Wikipédia, muito mais especulativa. Das cinco questões colocadas, retemos apenas as respostas das três primeiras: O que é a Blogosfera?, O que é um Blog?, e Qual é a diferença entre um Blog e uma Página pessoal (Homepage)?
1.1.1. Blogosfera. Chama-se blogosfera a "toda a comunidade e conteúdos que constituem os Blogs. O conjunto de quem faz, de quem disponibiliza e de quem lê Blogs é a Blogosfera". A blogosfera é definida ora como comunidade ora como o conjunto dos conteúdos dos blogues, seguida de um modelo tripartido: autores de blogues (quem faz), os programas e/ou empresas que disponibilizam esse serviço, no nosso caso a Google (quem disponibiliza), e os leitores (quem lê) dos blogues, que podem ser outros bloguistas ou meros cybernautas. De forma simplicada, este modelo subjacente a esta concepção pode ser reduzido a um modelo de comunicação: emissor, meio e receptor ou leitor que, no caso dos blogues abertos, pode reagir à mensagem, com a edição de comentários. Esta concepção da blogosfera esquece que o modelo de comunicação que tende a predominar no seu seio é o diálogo: a comunicação mediada por computador é dialógica.
1.1.2. Blogue. "A definição de Blog não é consensual. Um Blog é um registo cronológico e, frequentemente, actualizado de opiniões, emoções, factos, imagens ou qualquer outro tipo de conteúdo que o autor ou autores queiram disponibilizar. Existem muitos tipos de Blogs, ouve-se muitas vezes a expressão "Diário virtual" para descrever o Blog, o SAPO pensa que um Blog pode ser muito mais do que isso. Depende apenas e só do que o autor ou autores queiram que o seu Blog seja". Assim, por exemplo,
Carlos Serra distingue seis tipos de blogues: 1) blogue tipo "gosto de comer amendoins", 2) blogue de "distracção descerebralizadora", 3) blogue de "exegese erótica", 4) blogue "científico", 5) blogue "político" e 6) blogue "comercial directo ou disfarçado", e, na sua perspectiva política, o bloguismo constitui «arma política de grande eficácia». (Leia a entrevista AQUI ou AQUI.) Apesar de partilharmos algumas afinidades em termos da visão política do bloguismo, traçamos claramente uma linha de demarcação entre a blogosfera e a mediasfera, cuja presença na blogosfera é vista como uma tentativa de abolir a comunicação livre entre cidadãos livres e autónomos, tentado refeudalizá-la (Habermas). De facto, os blogues estão a modificar a nossa relação com a informação (Bruce Sterling). Nos mass media tradicionais, um escreve, alguém lê e assim se publica: tudo aquilo que é publicado tem eco. Na blogosfera, primeiro publica-se, depois os leitores lêem, corrigem, ampliam, desenvolvem e, colectivamente, decidem o destino desse texto, oferecendo-lhe uma das infinitas opções possíveis entre eco e indiferença.
1.1.3. Página Pessoal. A diferença entre blogue e página pessoal assenta não só numa questão técnica mas também numa questão filosófica: "Tecnicamente, um Blog dispõe de uma ferramenta de edição que permite a qualquer leigo colocar de imediato os seus conteúdos on-line, e actualizá-los sempre sem precisar de saber absolutamente nada de html. Filosoficamente, o Blog difere de uma Página Pessoal na medida em que as actualizações são muitíssimo mais frequentes do que as que são habitualmente feitas a uma página pessoal, e porque tem um conceito cronológico associado". SapoBlogs lembra que existem outras questões de ética de Blogs que imprimem uma diferença, como por exemplo, a teoria de que não se pode apagar artigos (posts), mas esta última é apenas um detalhe. Em suma: "Uma página pessoal pode não ser actualizada com frequência, mantendo o seu espírito intacto, um Blog que não é actualizado com frequência, deixa de ser um Blog. Uma página pessoal pode ser estática (ou não), um Blog não pode ser estático, caso contrário deixa de ser um Blog".
Esta distinção entre blogue e homepage é bastante consensual, embora a noção de blogue como «diário virtual» se preste a usos menos interessantes em termos do universo e da tecnologia dos blogues. Sem uma tipologia empírica dos blogues e do perfil dos bloguistas, e dada a natureza filosófica deste empreendimento, consideramos que os blogues comerciais, biográficos, sexuais, íntimos ou muito pessoais e outros do género possuem menor qualidade e relevância política e científica do que os restantes tipos de blogues. Com excepção do bloguista-peregrino, os bloguistas deambulador, vagabundo, turista e jogador (Bauman, Slevin), tendem a não criar laços on-line, preferindo navegar sem rumo e sem compromissos com o mundo e, portanto, com a humanidade.
Nós, filósofos profissionais, somos terríveis quando traçamos estas linhas de demarcação. Mas esta prática filosófica justifica-se pelo laço estreito que a filosofia estabeleceu desde as origens com a esfera política (Platão/Aristóteles) e, como aqui defendemos uma concepção política da blogosfera, somos forçados a privilegiar todos os blogues que são usados como meios de participação na nova esfera pública virtual, a propósito das coisas públicas e não privadas ou mesmo íntimas, cujo alcance é de menor relevo, dado fomentarem o voyeurismo on-line, o exibicionismo on-line e a criação de comunidades emocionais e sexuais virtuais metabolicamente reduzidas, sem interesse para os destinos dos mortais, num mundo cada vez mais global e ameaçado. Isto não quer dizer que esses blogues de menor relevância não devam ser estudados e penso que a cybersociologia lhes deve dar atenção, porque eles podem ser lidos como sintoma de algo que aflige os seus autores, devido a problemas de sociedade. Aliás, o universo das páginas pessoais tem sido mais estudado do que o universo dos blogues.
1.2. A Concepção da Wikipédia. Optámos por iniciar pelo portal Sapoblogs, porque os conceitos e distinções conceptuais que fornece são relativamente objectivos e muito pouco especulativos. Segundo a Wikipédia, o termo blogosfera foi cunhado, em 10 de Setembro de 1999, por Brad L. Graham como uma «piada» e foi redescoberto, em 2002, por William Quick. Depois foi rapidamente adoptado e divulgado pela comunidade de blogs sobre guerras, os chamados warblogs ou blogues de guerra. Muitos continuaram a tratar o termo como uma «piada». Contudo, segundo a Wikipédia, os meios de comunicação social dos USA, nomeadamente através do programa Morning Edition da National Public Radio, Day To Day, All Things Considered e outros, começaram a usar frequentemente o termo, até que entrou no domínio do uso público e na esfera da opinião pública.
1.2.1. Blogosfera. A Wikipédia descobre, acidentalmente ou não, uma similaridade da palavra blogosfera com a palavra mais antiga «logosfera», que traduz como «o mundo das palavras» ou «o universo do discurso», e uma aproximação, na pronúncia e no significado, deste outro termo «noosfera» ou «o mundo do pensamento».
A Wikipédia observa que a blogosfera é designada ironicamente, pelo menos algumas vezes, como «blogóbulo», por aqueles que desconsideram, tal como os mass media da primeira geração, o seu impacto fora de si mesma ou que a consideram insular. Aqueles com blog e que, por isso, participam da blogosfera, já foram tratados como «bloguesia» na edição de 4 de Setembro de 2006 do jornal Libération, para os opor aos info-excluídos. Esta concepção forjada pelos mass media tradicionais visa neutralizar a blogosfera e colonizá-la, repondo o seu modelo unidireccional de comunicação. A Wikipédia fornece mais três entradas associadas à blogosfera, a saber: a noosfera, a ideosfera e a infosfera. Só mediante o recurso a estes outros termos é que começamos a entender o que a Wikipédia entende por blogosfera.
1.2.2. Noosfera. A noosfera refere a "esfera do pensamento humano", e o termo deriva da palavra grega νους (nous, "mente") num sentido semelhante à atmosfera e à biosfera. Na teoria original de Vernadsky, a noosfera seria a terceira etapa no desenvolvimento da Terra, depois da geosfera (matéria inanimada) e da biosfera (vida biológica). Assim como o surgimento da vida transformou significativamente a geosfera, o surgimento do conhecimento humano e os consequentes efeitos das ciências aplicadas sobre a natureza alterou igualmente a biosfera. O conceito da noosfera é atribuído ao Teilhard de Chardin. Segundo Chardin, assim como existem a atmosfera, a geosfera e a biosfera, há também o mundo ou esfera das ideias, formado por produtos culturais, pelo espírito, linguagens, teorias e conhecimentos. Segundo Chardin, alimentamos a noosfera quando pensamos e comunicamos uns com os outros. A partir de então, o conceito de noosfera foi revisto e atribuído ao próximo degrau evolutivo do nosso mundo, após a sua passagem pelas posteriores transformações de geosfera, biosfera, "tecnosfera" (temporária e em andamento) e, então, a noosfera.
1.2.3. Ideosfera. A ideosfera é um neologismo criado por Aaron Lynch e Douglas Hofstadter na década de 80. De forma semelhante à biosfera, onde se processa a evolução biológica, na ideosfera ocorreria a evolução mimética, com a criação, a evolução e a seleção natural de pensamentos, teorias e ideias. A ideosfera não é considerada como um espaço físico, porque se encontra “no interior das mentes” de todos os seres humanos: a Internet, os livros e outros mass media podem ser incluídos no seio da ideosfera.
Segundo Yasuhiko Kimura, no momento actual, a ideosfera forma uma "ideosfera concêntrica", com as ideias sendo geradas por algumas poucas pessoas e as demais unicamente recebendo e aceitando-as por serem provenientes daquelas “autoridades externas”. Talvez fosse melhor referir a dependência dos blogues das práticas de agenda-setting da mediasfera. Contra um tal colonialismo ideosférico, Kimura defende a criação de uma "ideosfera omnicêntrica" ("omnicentric ideosphere"), na qual todos os indivíduos participem como cidadãos de forma efectiva, criando novas ideias e interagindo entre si na condição de "auto-autoridades" ("self-authorities"), libertos das agendas externas da mediasfera.
1.2.4. Infosfera. A infosfera é um neologismo criado por Luciano Floridi e que faz referência a um complexo ambiente informacional constituído por todas as entidades informacionais, as suas propriedades, as suas interacções, os seus processos e demais relações.
Segundo Richard Dawkins (1976), um meme está para a memória como o gene está para a genética. Considerado como a sua unidade mínima, o meme é uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento (como cérebros). Funcionalmente, o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode, de alguma forma, autopropagar-se. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma. O estudo dos modelos evolutivos da transferência de informação cultural é conhecido como memética.
Quando usado num contexto coloquial e não especializado, o termo meme pode significar apenas a transmissão de informação de uma mente para outra. Este uso aproxima o termo da analogia da "linguagem como vírus", afastando-o do propósito original de Dawkins, que procurava definir os memes como replicadores de comportamentos.
2. Concepçãp Etic de Blogosfera. A Wikipédia aborda a blogosfera numa perspectiva demasiado «evolucionista» e, neste âmbito, apesar de socorrer-se da biologia da evolução, usa um evolucionismo repleto de finalismo e perfeccionismo, como se a evolução biológica tivesse qualquer finalidade: a blogosfera é assim vista como a fase derradeira dessa evolução biológica substituída pela evolução cultural. Esta concepção esquece o fundamental: a blogosfera não é um mero "mundo (estático) de ideias", mas o lugar da conversa sobre o mundo. Nela existem pessoas que trocam opiniões sobre a realidade e contribuem para enriquecer a percepção que cada um tem do meio social, político e cultural em que todos vivemos nesta "aldeia global" (Marshall McLuhan). Assim, como diz Jay Rosen, na blogosfera os indivíduos participam livremente, sem tutelas, no grande jogo de influências chamado opinião pública. Na Grande Conversação (Giuseppe Granieri) que é a blogosfera a única lei é o respeito recíproco, e a punição é uma redução de atenção. A experiência histórica devia ter ensinado a estas mentes de inteligência reduzida que todo o pensamento que procura colonizar o futuro, como se este tivesse já pré-figurado, destrói mais do que liberta o futuro.
Tese 3. A teoria da informação é fundamentalmente uma teoria matemática que coloca problemas filosóficos interessantes, pelo menos ao nível epistemológico e lógico, mas insuficiente para dar conta da complexidade da comunicação mediada por computador e dos seus diversos usos. A blogosfera não deve ser vista como um mundo irreal ou como mera fuga ao mundo diário, onde os bloguistas procuram escapar às rotinas da vida quotidiana e viverem vidas artificiais e alienadas. A cyberfilosofia não é uma mera teoria da informação e da comunicação e, até mesmo quando se debruça sobre esses conceitos, visa a sua ultrapassagem teórica. Com efeito, o mundo da Internet é um mundo social e, como tal, é um mundo histórico, perfeitamente inserido e integrado no mundo off-line. Esta lição de Hegel/Marx deve ser integrada na cyberfilosofia, de modo a que esta possa pensar radicalmente a revolução tecnológica do nosso mundo moderno, cada vez mais global e mediado.
As mentes apáticas e conformistas tendem a reduzir a democracia electrónica ao voto electrónico e a outros procedimentos técnicos, como se a democracia electrónica fosse um conjunto de processos tecnológicos usados ao serviço da democracia representativa tal como a conhecemos. Uma tal concepção de democracia electrónica é extremamente redutora, muito pouco política e revela a satisfação dessas mentes com a sociedade estabelecida: as mentes que a defendem são, portanto, metabolicamente reduzidas, isto é, mentes mais interessadas em defender os seus interesses privados do que em melhorar a qualidade da democracia real.
A
democracia electrónica pode ser vista como uma longa e extensa conversa on-line sobre o mundo, na qual todos os cidadãos podem participar livre e racionalmente, sem coacções (Howard Rheingold). Usar as funcionalidades da Internet como esferas públicas ou fóruns de debates públicos é fazer um uso libertador e responsável das novas tecnologias da comunicação, em face do qual os outros usos denunciam a ideologia que os move: a apologia da ordem estabelecida. Nesta perspectiva, a democracia electrónica possibilita a participação política de todos aqueles cidadãos que, de outro modo, o predominante, não têm direito à palavra, a não ser em dias de eleições. A democracia electrónica reanima o espírito da democracia ateniense num novo espaço público virtual: a rede. Como forma de democracia participativa, a democracia electrónica pode potencialmente reanimar a política, a formação da consciência política, o exercício de uma cidadania mundial responsável e empenhada no debate crítico dos assuntos públicos e, deste modo, contribuir para melhorar a qualidade da democracia representativa.
Os teóricos da democracia electrónica nunca a apresentaram como uma forma de democracia directa e, portanto, como alternativa política credível à democracia representativa. Esta ideia absurda é uma mentira inventada por aqueles que temem, e com razão, que a participação na esfera pública dos cidadãos lhes roube visibilidade. De facto, esta pode ser uma tarefa da democracia electrónica: criticar severamente aqueles que usam e abusam do poder para benefício próprio e que, por isso, fazem tudo para reduzir os cidadãos à condição de «metecos», isto é, de excluídos políticos. Contudo, embora a tecnologia ofereça essa possibilidade de alargar virtualmente a esfera pública, devemos ajudar todos aqueles que desejam sinceramente participar e contribuir para a politização da sua consciência: dotá-los de espírito crítico, de resto um bem muito escasso na sociedade metabolicamente reduzida. De facto, apesar do lado negro da Internet, perfilho o optimismo militante de Ernst Bloch e, por isso, sou um adepto prudente da democracia electrónica: acredito que as comunidades virtuais podem ajudar os cidadãos a revitalizar a democracia, mediante a participação responsável na esfera pública alargada a todos e liberta da comunicação manipuladora e distorcida.
No entanto, sou herdeiro de uma constelação teórica que tem sido e ainda continua a ser muito crítica em relação aos efeitos da comunicação mediada por computador, mas sobretudo em relação aos media electrónicos da primeira e da segunda gerações: refiro-me evidentemente à teoria crítica e à Escola de Frankfurt. Por isso, e dado que não negligencio os seus receios legítimos, pretendo estudar melhor estes três grupos de cépticos e analisar os seus argumentos, de modo a clarificar o próprio conceito de democracia electrónica.
Acredito no potencial democratizador das telecomunicações e dos computadores e, escutando as vozes que se fazem ouvir num vasto conjunto de blogues, defendo a ideia básica de que a comunicação mediada por computador restitui aos cidadãos responsáveis alguns poderes dos mass media, detidos pelos mandarins da política e da economia, reabilitando democraticamente a esfera pública. A comunicação mediada por computador é potencialmente uma tecnologia democratizante/libertadora e, por isso, estou empenhado na luta contra todas as tentativas de refeudalizá-la ou colonizá-la abusivamente, contra os interesses reais dos cidadãos, que o jornalismo manipulador tenta converter em leitores-consumidores. O blogging não é uma forma de jornalismo, mas uma nova forma de circulação das informações, de preferência produzidas por cidadãos do mundo libertos da tutela jornalística manipuladora.
As criticas sociais às novas tecnologias podem ser agrupadas em três frentes teóricas, intimamente relacionadas umas com as outras ou, pelo menos, complementares:
1) a teoria da indústria cultural e a sua reformulação por Habermas, que teme que as redes interactivas de banda larga possam ser utilizadas em conjunto com outras tecnologias como meio de vigilância, controle e desinformação, para além de canal de transmissão de informação útil;
2) a teoria panóptica do poder de Michel Foucault, de resto inspirada em Jeremy Bentham e no seu projecto prisional, que considera que as tecnologias de informação permitem aos governos e aos interesses privados (empresas) saber coisas sobre cada um de nós, através de uma espécie de invasão electrónica da nossa vida privada;
3) e a teoria hiper-realista nas suas diversas versões, a de Guy Debord ou a de Jean Braudillard, que acredita que as tecnologias de informação já transformaram aquilo que passava por ser "a realidade" numa simulação electrónica.
Estas críticas são pertinentes e merecem ser escutadas e pensadas. Como já as meditei, ao longo de inúmeros seminários de «teorias da comunicação social», posso dizer que a comunicação mediada por computador pode ser o veículo privilegiado para a realização dos «ideais» que norteiam a crítica da sociedade. Mas, como num mundo global, nada está estabelecido definitivamente, é necessário reflectir nas ameaças sugeridas pelos cybercépticos e estar preparado para fazer face a elas sempre que surjam no horizonte. Apesar disso, o meu optimismo militante (Ernst Bloch) tem sido reforçado pelo conhecimento de bloguistas extremamente competentes e inteligentes, alguns dos quais estão desempregados, talvez devido à luso-mediocridade instalada no poder que bloqueia sistematicamente o desabrochar de novas capacidades e de novas possibilidades históricas.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 7 de junho de 2008

Habermas e Pragmática Universal


«Todo o projecto de Habermas, desde a crítica do cientificismo contemporâneo até à reconstrução do materialismo histórico, repousa na possibilidade de proporcionar uma explicação da comunicação, que seja simultaneamente teórica e normativa [e] que vá mais para além da pura hermenêutica sem ser redutível a uma ciência empírico-analítica estrita». (Thomas McCarthy)
A teoria da competência comunicativa surge como uma nova forma de articular e fundamentar uma concepção mais ampla da racionalidade, de modo a repensar os fundamentos normativos da teoria crítica da sociedade. Habermas elabora a sua teoria da competência comunicativa, começando por delimitar a pragmática universal em relação à teoria da gramática de Chomsky, de resto a única que se orienta pelo «padrão de uma análise generativa da linguagem, colocado numa perspectiva universalista». Chomsky distingue entre competência linguística e desempenho linguístico, distinção esta que está relacionada com a distinção que Saussure faz entre língua e fala, sem no entanto assumir o conceito saussureano de língua. A competência linguística é «o conhecimento ideal que o falante tem da sua língua», enquanto o conceito de desempenho linguístico se refere «ao uso efectivo da linguagem em situações concretas». Ora, segundo Chomsky, o conhecimento tácito que o falante/ouvinte tem da sua língua, além de lhe permitir usá-la e compreendê-la no que respeita aos seus componentes fonéticos, sintácticos e semânticos, pode ser reconstruído numa teoria dos universais linguísticos (formais e substantivos): «A tarefa da teoria da gramática consiste na reconstrução racional de um sistema de regras praticamente dominado e, neste sentido, também conhecido, mas ainda não sabido como tal, e que é susceptível de ser descrito teoricamente».
Na concepção chomskyana da linguagem, conhecer uma língua significa não só conhecer o sistema que associa sons e significados, mas sobretudo sermos capazes de produzir frases nunca anteriormente ditas e compreender frases nunca ouvidas, assim como saber quais as frases adequadas às diferentes situações. Chomsky refere-se a esta capacidade que os falantes e ouvintes competentes têm de gerar ou entender cadeias de expressões linguísticas com o auxílio de um sistema de regras como o «aspecto criativo» da prática linguística, no sentido em que todos os que sabem competentemente uma língua podem (e fazem-no frequentemente) «criar» frases novas todas as vezes que falam, assim como são capazes de compreender frases novas «criadas» pelos outros. Deste modo, a língua mais não é que o complexo de todos os sons, palavras e frases possíveis. Definida como a capacidade de um falante ideal de dominar um sistema abstracto de regras generativas de linguagem mediante o qual combina palavras e contrói frases, a competência linguística, «em concordância com a competência geral de regra» elaborada por Wittgenstein e retomada posteriormente por Peter Winch, permite caracterizar o falante como sendo capaz de «gerar espontaneamente um conjunto, em princípio, ilimitado de expressões sintácticas, semântica e foneticamente permissíveis, numa dada língua e de julgar se (e chegado o caso em que grau) uma expressão pode ser considerada bem formada [gramaticalmente falando] nas três dimensões mencionadas».
Habermas destaca dois aspectos do programa teórico da gramática generativa de Chomsky que julga serem necessários para a clarificação do plano em que se move a pragmática universal:
1. «O desenvolvimento da gramática generativa segue uma estratégia universalista de investigação: as reconstruções dos sistemas de regras de cada língua particular podem realizar-se cada vez a um nível mais elevado de generalização até que se logre expor os universais gramaticais que subjazem a todas as línguas particulares».
2. A gramática generativa está «colocada como gramática transformacional. As cadeias de expressões linguísticas são consideradas estruturas superficiais que podem formar-se com a ajuda de um conjunto de regras de formação a partir de estruturas subjacentes. A cada estrutura profunda pode fazer-se corresponder depois uma classe de estruturas superficiais que são como que paráfrases dela».
Ao introduzir a competência linguística como objecto de estudo privilegiado da linguística, Chomsky procede a uma idealização, uma vez que o conceito de falante ideal pode ser justificado como implicação do conceito de validez das regras gramaticais, bem como do conceito complementar de competência da regra, retomado do segundo Wittgenstein, de acordo com o qual a pragmática de um jogo de linguagem consta de regras para um uso correcto de expressões simbólicas, que, enquanto constitutivas, possibilitam produzir as situações de uso possível de expressões simbólicas: «A própria forma comunicativa de vida depende da gramática dos jogos de linguagem». Contudo, no caso da linguagem, não é o falante quem idealiza, mas o próprio linguista que, na reconstrução que faz do sistema linguístico de regras, prescinde de todas as condições empíricas em que as regras podem não ser realizadas de modo adequado. O falante real actualiza esta competência — desenvolvida segundo Chomsky sobre uma base genética mediante a cooperação de processos de maturação condicionados organicamente e de afluxos de estímulos provenientes do meio em termos específicos para cada fase da aquisição inata da língua — sempre no seio de condicionamentos limitantes. Daqui resulta que o estudo da realização linguística só pode ser explicada a partir de dois constituintes fundamentais: a competência e as condições limitantes — extralinguísticas, empíricas e contingentes — da aplicação da competência. Ao levar em consideração apenas a linguagem, a teoria da gramática abstraí-se completamente dos processos de fala, ou seja, da pragmática dos jogos de linguagem compreendidos como formas de vida.
Levando em conta a crítica sociolinguística dirigida contra Chomsky no que respeita ao uso activo da linguagem, Habermas denuncia a insuficiência desta distinção de Chomsky, alegando que «não leva em consideração o facto de que as estruturas universais de possíveis situações de fala serem, elas mesmas, produzidas por meio de actos linguísticos». Por um lado, estas estruturas não pertencem às condições limitantes extralinguísticas sob as quais a competência linguística é, apenas, aplicada, uma vez que são dependentes da linguagem. Por outro lado, elas também não coincidem com as expressões linguísticas produzidas pela competência linguística, visto que servem para situar pragmaticamente estas expressões. Dado que a linguagem humana não é explicável pelo simples concurso de competência e condições concretas, torna-se necessário tematizar uma «terceira dimensão», que possibilite situar as outras duas. Para esse efeito, Habermas introduz a distinção entre sentenças e proferimentos, afim de distinguir as estruturas, linguisticamente dependentes, das situações de fala das expressões linguísticas usadas nessas situações. As sentenças são as unidades linguísticas que constam de expressões linguísticas. Os proferimentos são sentenças situadas, isto é, unidades pragmáticas de fala. Os contextos das situações determinadas de fala também constam de elementos extralinguísticos variáveis (por exemplo, a constituição psíquica do falante, os seus conhecimentos factuais e habilidades, etc.), que constituem o objecto da pragmática empírica. Contudo, em condições-padrão, regressam sempre, em cada situação linguística, alguns «componentes universais», produzidos, sempre de novo, pelo desempenho de uma determinada classe de expressões linguísticas. Para Habermas, estas estruturas universais das possíveis situações linguísticas constituem o objecto de uma pragmática universal, isto é, de uma teoria da competência comunicativa, cuja tarefa específica consiste na reconstrução do sistema de regras segundo o qual produzimos ou geramos, enquanto tal, situações de fala possível.
A pragmática universal e a pragmática generativa de Chomsky são ambas sistemas generativos, mas entre elas há uma diferença que Habermas explicita recorrendo à teoria dos actos de fala elaborada por J. L. Austin e John Searle. Searle formula a hipótese segundo a qual «falar uma língua é adoptar uma forma de comportamento regida por regras». Desta hipótese decorrem duas «consequências»: em primeiro lugar, «falar uma língua é executar actos de fala», tais como fazer afirmações, dar ordens, fazer perguntas, fazer promessas, etc., e, num domínio mais abstracto, referir e predicar; e, em segundo lugar, «estes actos são, em geral, possíveis graças a certas regras para o uso de elementos linguísticos e é em conformidade com elas que eles se realizam». De acordo com Searle, «uma teoria da linguagem é parte de uma teoria da acção, simplesmente porque falar é uma forma de comportamento regida por regras». Ou, como diz Austin de modo mais enfático: «dizer algo é fazer algo». Searle, tal como de resto Habermas, denomina actos de fala as unidades elementares da fala, na medida em que o falante, por meio da expressão, realiza exactamente a acção que a expressão performativa, usada no proferimento, apresenta. Quando digo: «Prometo vir amanhã», este proferimento é a promessa que apresenta ou representa. As declarações performativas têm simultaneamente um sentido linguístico e um sentido institucional, na medida em que possibilitam o situar de expressões linguísticas, fixando o seu próprio sentido pragmático de uso. Assim, com o auxílio de actos de fala, geramos condições universais do situar de sentenças. Estas estruturas da situação de fala ocorrem na própria fala e correspondem àquilo que Habermas denomina universais pragmáticos. Um acto de fala gera as condições para uma sentença poder ser transformada num proferimento, sem deixar de ter a forma de sentença.
A teoria da competência comunicativa tem como tarefa explicar «as operações que falante e ouvinte executam com o auxílio de universais pragmáticos quando usam orações (ou expressões extraverbais) em emissões ou manifestações [proferimentos]». Quando falante e ouvinte emitem proferimentos, usam sentenças para estabelecer um entendimento a respeito de estados de coisas. A própria estrutura das unidades elementares da sentença revela que um acto de fala é sempre composto por uma sentença performativa e por uma sentença subordinada de conteúdo proposicional. A sentença dominante contém um pronome pessoal na primeira pessoa como sujeito, um pronome pessoal na segunda pessoa como objecto e um predicado, que é formado com o auxílio de uma expressão performativa na forma do presente. Assim, por exemplo, ao dizer: “Eu prometo que virei amanhã”, não só expresso uma promessa, mas também e sobretudo faço uma promessa. Este proferimento é a promessa que ele se encarrega de apresentar. A sentença subordinada tem um nome ou uma designação como sujeito, que designa um objecto e um predicado, atribuído ou negado a um objecto. A sentença principal é usada, num proferimento, para estabelecer um modo de comunicação entre falante e ouvinte; a sentença subordinada é, por sua vez, usada para comunicar sobre objectos. Como escreve Habermas:
«Na conexão elementar da oração realizativa com uma oração de conteúdo proposicional revela-se a dupla estrutura da comunicação na linguagem ordinária: uma comunicação acerca de objectos (ou acerca de estados de coisas) só se produz na condição de uma simultânea metacomunicação acerca do sentido em que se usa a oração subordinada. Uma situação de entendimento possível exige que, pelo menos, dois falantes/ouvintes estabeleçam uma comunicação em ambos os planos: no plano da intersubjectividade, em que os sujeitos falam entre si, e no plano dos objectos (ou estados de coisas) sobre os quais se entendem. A pragmática universal serve para a reconstrução do sistema de regras que um falante competente tem de dominar para cumprir esse postulado (da simultaneidade de comunicação e metacomunicação)».
Nesta perspectiva, a sentença principal de uma declaração determina o modo da comunicação e, deste modo, estabelece o sentido pragmático de uso para a sentença subordinada. Contudo, nem todas as sentenças subordinadas, em proferimentos elementares, são proposições. De acordo com a lógica formal, as proposições são sentenças que reproduzem factos. Toda a proposição contém duas suposições: em primeiro lugar, que existe o objecto sobre o qual se faz a proposição e que ele pode ser identificado e, em segundo lugar, que o predicado atribuído ao objecto lhe pertence efectivamente. Por esta razão, só as proposições podem ser verdadeiras ou falsas. Em virtude desta qualidade, as proposições são sempre dependentes de declarações assertóricas, isto é, de uma classe de actos de fala, nos quais a sentença subordinada é usada no sentido de uma afirmação, de uma comunicação, de uma constatação ou de uma narração: «Só nos actos de fala constatativos adoptam as orações de conteúdo proposicional a forma de orações assertóricas ou de proposições. Nos actos de fala de outro tipo, nas perguntas, ordens, advertências, confissões, etc., as orações subordinadas não aparecem em forma assertórica. Não reflectem proposições, mas têm, sem dúvida, um conteúdo proposicional. Estas expressões nominalizadas «que p» podem em qualquer momento transformar-se em proposições. Isto explica por que o conteúdo proposicional dos actos de fala pode permanecer idêntico nas mudanças de modo, por exemplo quando se transformam orações em ordens, ordens em confissões ou confissões em constatações.» Contudo, em todos os outros casos de actos de fala, devemos atribuir às sentenças subordinadas um conteúdo proposicional, embora, nestes casos, não se trate de uma proposição, dado que não são usadas assertoricamente. Neste sentido, elas podem ser sempre transformadas em proposições. Transformando-se o modo da comunicação, o conteúdo proposicional pode permanecer o mesmo. A unidade elementar da fala tem essa estrutura duplo-dimensional, porque a comunicação, enquanto entendimento sobre objectos, só se realiza sob a condição de metacomunicação simultânea, isto é, de um entendimento ao nível da intersubjectividade sobre o sentido pragmático determinado da comunicação.
Daí que Habermas explicite a distinção entre um uso cognitivo da linguagem e um uso comunicativo da linguagem: «Chamo cognitivo ao uso de actos de fala constatativos, nos quais aparecem sempre enunciados; aqui a relação interpessoal realizativamente estabelecida entre falante e ouvinte serve para o entendimento sobre objectos (ou estados de coisas). Chamo, por sua vez, comunicativo ao uso da linguagem em que, pelo contrário, o entendimento acerca de objectos (ou estados de coisas) serve para o estabelecimento de uma relação interpessoal. O plano da comunicação, que no segundo caso representa a meta, serve no primeiro como meio. No uso cognitivo da linguagem os conteúdos proposicionais constituem o tema; no uso comunicativo da linguagem os conteúdos proposicionais só se mencionam para produzir, em termos realizativos, uma determinada relação intersubjectiva entre falantes/ouvintes. A reflexividade das linguagens naturais produz-se porque ambos os modos de uso da linguagem remetem implicitamente um para o outro». A pragmática universal deve explicar a reflexividade das linguagens naturais, porque «nela repousa a capacidade do falante competente para parafrasear quaisquer expressões de uma língua nessa mesma língua».
A partir destas bases fundamentais, Habermas tenta distinguir a sua teoria da competência comunicativa da teoria da competência linguística de Chomsky mediante uma série de abstracções convincentes. Estas iniciam-se a partir dos proferimentos concretos. Um proferimento concreto é aquele que «está inserido num contexto que determina perfeitamente o seu significado». Quando abstraímos, num primeiro momento, de todas as condições marginais dos sistemas de regras linguísticos, que variam ao acaso e são específicas dos falantes/ouvintes individuais, restam apenas os proferimentos em contextos sociais generalizados. É a abstracção sociolinguística. A sociolinguística estuda os proferimentos em contextos sociais generalizados e, assumindo a forma de uma teoria das competências pragmáticas, tem como tarefa «a reconstrução dos códigos linguísticos de acordo com os quais os falantes competentes fazem um uso (ajustado à situação) de emissões ou manifestações, sujeitando-se às regras socioculturais». Se, num segundo momento, abstrairmos de todos os contextos espacio-temporais socialmente limitados, ficamos apenas com os proferimentos situados em geral e, por esta via, obtemos as unidades elementares da fala. É a abstracção praticada pela pragmática universal. A pragmática universal tem como objecto os proferimentos efectuados em «situações em geral», fazendo abstracção dos elementos contextuais específicos, e, sob a forma de uma teoria da competência comunicativa, a sua tarefa é «a reconstrução do sistema de regras de acordo com as quais os falantes competentes colocam ou situam orações e emissões». Se, num terceiro momento, abstrairmos da execução dos actos de fala, resta-nos apenas as expressões linguísticas ou orações usadas nessa execução. É a abstracção praticada pela linguística e, por esta via, obtemos as unidades elementares da linguagem. A linguística estuda as expressões linguísticas (ou cadeias de símbolos) e, sob a forma de uma teoria da competência gramatical, tem como tarefa «a reconstrução do sistema de regras de acordo com as quais os falantes competentes formam e transformam orações». Finalmente, se abstrairmos de todas as expressões linguísticas realizativamente relevantes, resta-nos apenas as orações assertóricas, inclusivamente com a sua forma nominalizada «que p» e, por esta via, obtemos as unidades elementares para a reprodução de estados de coisas. A lógica formal tem por objecto os enunciados e a sua tarefa é «a reconstrução do sistema de regras de acordo com as quais formamos enunciados e os transformamos mantendo constantes os seus valores de verdade». Dado que prescinde da inserção das orações assertóricas em actos de fala, a lógica trata simultaneamente mais e menos que a linguística. Menos, porque faz abstracção de todas as expressões linguísticas que se referem a situações de fala possível; mais, porque, com o valor de verdade das sentenças declarativas, a lógica leva em consideração o facto de essas sentenças serem sentenças que, nas declarações, são usadas para a reprodução dos factos (ou estados de coisas).
Habermas introduz os universais pragmáticos para poder analisar mais detalhadamente o papel que lhes compete tanto no uso cognitivo como no uso comunicativo da linguagem. Apoiando-se em Wünderlich, começa por enumerar as classes típicas de palavras, que se referem às estruturas gerais das situações de fala: 1) pronomes pessoais (com dupla função: performativa e referencial); 2) palavras e locuções usadas para iniciar a fala e dirigir-se ao outro; 3) expressões deícticas (de espaço e de tempo); demonstrativos, artigos, numerais e quantificadores; 4) verbos performativos; 5) verbos intencionais, não usáveis performativamente, advérbios modais. Estas classes de expressões linguísticas, denominadas universais pragmáticos, relacionam-se com as estruturas universais da situação de fala: as classes 1 e 2 com os falantes e ouvintes e com os potenciais participantes na comunicação; a classe 3 com elementos temporais e elementos objectivos da situação de fala; a classe 4 com a relação que o ouvinte tem com o seu proferimento, enquanto tal, na relação entre falantes e ouvintes; e, finalmente, a classe 5 com as intenções e vivências do falante.
Considerar os universais pragmáticos simplesmente como componentes de uma metalinguagem em que nos entendemos sobre os elementos das situações de fala pode dar a impressão errónea de que as estruturas universais de tais situações são dadas independentemente da fala, como condições marginais empíricas do processo de comunicação linguística. Ora, segundo Habermas, «só podemos usar sentenças em proferimentos se, com a ajuda dos universais pragmáticos, engendramos as condições de comunicação possível e, deste modo, a própria situação de fala». Sem referência a esses universais, não podemos definir as componentes invariantes nas situações de fala possível: em primeiro lugar, os próprios proferimentos, depois as relações interpessoais que, juntamente com os proferimentos, se geram entre falantes e ouvintes, e, por fim, os objectos ou estados de coisas sobre os quais os falantes e ouvintes comunicam entre si. Além disso, os universais pragmáticos servem também para apresentar a própria situação de fala.
Para Habermas, a parte mais importante do acto de fala é a sentença performativa. Até agora a linguística e a filosofia analítica da linguagem não foram bem sucedidas na apresentação de um sistema dos actos de fala. Na medida em que determinados aspectos dos actos de fala integram os universais pragmáticos, a realização da sua diversidade lexicográfica, em cada língua particular, pode ser reduzida a uma classificação geral. Recorrendo à regra essencial de Searle que especifica o modo de um acto de fala, Habermas distingue quatro tipos de actos de fala:
1. Os actos de fala comunicativos servem para exprimir o sentido da fala, isto é, explicitam o sentido dos proferimentos como tais. Qualquer diálogo pressupõe uma pré-compreensão fáctica do que significa comunicar numa linguagem, entender ou entender mal proferimentos, chegar a um consenso ou dirimir um desacordo. Exemplos: dizer, expressar-se, falar, perguntar, objectar, contradizer, etc.;
2. Os actos de fala constatativos expressam o sentido do uso cognitivo de sentenças, ou seja, explicitam o sentido das declarações enquanto sentenças declarativas. Exemplos: descrever, comunicar, narrar, explicar, interpretar, etc.;
3. Os actos de fala representativos servem para expressar o sentido pragmático da auto-apresentação de um falante a um ouvinte, ou seja, explicitam o sentido de expressões, intenções, atitudes do falante. Neste caso, as sentenças subordinadas de conteúdo proposicional são sentenças intencionais, tais como saber, pensar, querer, desejar, amar, odiar, manifestar, ocultar, etc.;
4. Os actos de fala regulativos exprimem a realização de acções reguladas institucionalmente. Ao contrário das três primeiras classes, nas quais os universais constituintes do diálogo geram as estruturas universais da situação de fala, os actos de fala regulativos não pertencem aos universais pragmáticos precisamente por pressuporem instituições. Exemplos: saudar, agradecer, dar os pêsames, casar, apostar, baptizar, nomear, etc..
Os actos de fala possibilitam realizar três distinções fundamentais que devemos dominar, a fim de podermos entrar geralmente num processo de comunicação: ser e aparência, essência e fenómeno, ser e dever-ser. O uso de actos de fala constatativos possibilita a distinção entre um mundo público de concepções intersubjectivamente reconhecidas e um mundo privado de puras opiniões (ser e aparência). O uso de actos de fala representativos possibilita a distinção entre o ser totalmente individualizado que os sujeitos, em cada acto de linguagem, são e pretendem ser reconhecidos como tal pelos demais, e os proferimentos linguísticos, actos expressivos e acções, nas quais se manifesta e que, por sua vez, podem ser objecto de sentenças declarativas (essência e fenómeno). O uso de actos de fala regulativos possibilita a distinção entre regularidades empíricas que podem ser observadas e normas vigentes que podem ser ou não seguidas intencionalmente (ser e dever-ser).
A consideração conjunta destas três distinções torna possível a «distinção central» entre um consenso verdadeiro e um consenso falso. Ora, esta distinção diz respeito ao sentido pragmático da fala, na medida em que «o sentido da fala em geral consiste manifestamente em que, pelo menos, dois falantes/ouvintes se entendam sobre algo», no pressuposto de que o entendimento atingido gere um consenso válido.
A acção comunicativa efectua-se normalmente em jogos de linguagem convertidos em hábito e normativamente assegurados. Nestes jogos de linguagem podem ocorrer três categorias de proferimentos: as orações (sentenças), as expressões corporais e as acções, que, nos contextos concretos de interacção, estão sempre associadas em função de regras de complementação e de substituição. Contudo, nos discursos só são permitidos tematicamente proferimentos linguísticos. Embora possam acompanhar o discurso, as acções e as expressões não-linguísticas dos participantes não fazem parte integrante do mesmo. Daí que Habermas distinga duas formas de comunicação: a acção comunicativa ordinária (interacção) e o discurso. Na acção comunicativa ordinária pressupõe-se ingenuamente a validade dos proferimentos para trocar informações, enquanto que no discurso a problematização das pretensões de validade se converte em tema, sem se trocarem informações. O discurso tenta restabelecer ou substituir o acordo dado na acção comunicativa e, ao tentar superar a sua problematização, conduz a um entendimento discursivo: «As argumentações têm por finalidade superar uma situação que surge por uma tenaz problematização de pretensões de validade ingenuamente supostas na acção comunicativa: este entendimento reflexivo conduz a um acordo produzido e fundado discursivamente (que pode, naturalmente, consolidar-se de novo num acordo convertido secundariamente em hábito)». No posfácio, datado de 1973, escrito para Conhecimento e Interesse, Habermas esclarece melhor esta distinção:
«Os discursos servem para a verificação das pretensões de validade problematizadas das opiniões (e das normas). O único constrangimento admitido nos discursos é aquele do melhor argumento; a única motivação admitida é a pesquisa cooperativa da verdade. Os discursos são, na base da sua estrutura de comunicação, libertados dos constrangimentos da acção; eles também não deixam o campo livre aos processos de obtenção de informações; os discursos são desembaraçados dos constrangimentos da acção e da experiência; dão-se informações no interior dos discursos e a emissão de discursos consiste em admitir (reconhecimento) ou desfazer (recusa) as pretensões de validade problemáticas. No processo discursivo não se produz senão argumentos».
O consenso que acompanha as acções refere-se tanto aos conteúdos proposicionais dos proferimentos (as opiniões) como às expectativas de comportamento válidas intersubjectivamente (as normas). Um jogo de linguagem normal é sempre acompanhado por um consenso de fundo, que repousa sobre o reconhecimento recíproco de, pelo menos, quatro pretensões de validade que os falantes competentes estabelecem uns aos outros com cada um dos seus actos de fala: «Pretende-se a inteligibilidade da emissão ou manifestação, a verdade do seu conteúdo proposicional, a rectidão da sua componente realizativa e a veracidade da intenção que o falante manifesta». Uma comunicação funciona normalmente sem perturbações quando os sujeitos, capazes de falar e de agir, se compreendem nos seus proferimentos, de tal modo que:
a) podem comunicar intencionalmente e, deste modo, compreender o sentido pragmático da relação interpessoal;
b) podem comunicar e compreender o sentido do conteúdo proposicional dos seus proferimentos;
c) não põem em questão a pretensão de validade das opiniões que comunicam; e
d) podem aceitar a pretensão de validade das normas de acção, que se seguem em cada caso.
Estas pretensões de validade só podem ser tematizadas quando o funcionamento do jogo de linguagem é perturbado e o consenso de fundo é posto em questão. Assim, no caso de perturbação de inteligibilidade de um proferimento, colocamos perguntas típicas do tipo: “Que queres dizer com isso?”, “Como devo entender isso?”, “Que significa isso?”. As respostas típicas dadas a estas perguntas são as interpretações. No caso de problematização da verdade de um enunciado, fazem-se perguntas do tipo: “Foi isso que aconteceu?”, “Por que ocorreu assim e não de outro modo?”. Estas perguntas obtêm como resposta as afirmações ou explicações. No caso da problematização da rectidão de um acto de fala ou do seu contexto normativo, perguntamos: “Por que agiste assim?”, “Não deverias ter agido de outro modo?”, “É lícito fazer o que fizeste?”. A estas perguntas respondemos com justificações. Quando, finalmente, num contexto de interacção, pomos em dúvida a veracidade (ou sinceridade) de quem fala connosco, colocamos perguntas do tipo: “Não me estás a enganar?”, “Não estarás a enganar-te a ti mesmo?” “Quem queres enganar?”. Geralmente não dirigimos estas perguntas à pessoa de quem desconfiamos, mas a uma terceira pessoa, nomeadamente ao psicanalista que mediante um diálogo terapêutico pode «trazer à razão» o falante de quem suspeitamos.
No contexto da interacção, as interpretações, as explicações ou afirmações e as justificações fornecem sempre informações, embora não sejam suficientes para responder a questões que problematizam as próprias validades pressupostas. Estas perguntas exigem a apresentação de razões, que só podem ser fornecidas em discursos que interrogam e problematizam as interacções. Neste sentido, o discurso tem por finalidade a fundamentação das pretensões de validade das opiniões e das normas. Tal como a redução fenomenológica husserliana, o discurso põe «fora de circuito» todas as coerções da acção, excepto a disponibilidade para o entendimento.
Na medida em que a validade normativa representa um conceito fundamental para uma teoria da sociedade colocada em termos de teoria da comunicação, Habermas preocupa-se com a clarificação do seu sentido, partindo da análise de um fenómeno presente intuitivamente a qualquer sujeito capaz de acção: quando temos diante de nós não um objecto, que podemos manipular, mas um sujeito, supomos inevitavelmente a sua capacidade de responder pelos seus actos (responsabilidade pessoal). Isto significa que só podemos realmente entrar em interacção com um sujeito quando supomos que seja capaz, se solicitado, de justificar a sua acção, dizendo por que, em determinada situação, se comporta assim e não de outro modo. Tal idealização também nos diz respeito, uma vez que olhamos o outro sujeito com os olhos com os quais nos olhamos a nós próprios.
Este saber intuitivo, que, na realização da acção, tem o status de uma pressuposição (ou antecipação), pode ser explicitado na forma de duas expectativas contrafactuais:
— Esperamos que os sujeitos da acção sigam intencionalmente todas as normas que seguem. Quando atribuímos ao outro eu (alterego), no exercício directo de uma interacção, motivos inconscientes ou determinações causais da sua acção, abandonamos o nível da intersubjectividade e tratamos o outro como um objecto, sobre o qual podemos comunicar com um terceiro. Esta expectativa de intencionalidade implica a pressuposição de que o sujeito seja capaz de transformar todos os seus proferimentos não-verbais em proferimentos verbais;
— Esperamos que os sujeitos capazes de acção só sigam normas que consideram justificadas. Até mesmo um sujeito que se submeta a um constrangimento fáctico deve ter princípios universais, segundo os quais possa justificar a sua acção. Esta expectativa de legitimação implica que, aos olhos do sujeito agente, só valem como justificadas as normas das quais eles estão convencidos de que seriam capazes de resistir a uma discussão ilimitada e sem coerções. Isto significa pressupor que sujeitos responsáveis possam sair de um contexto de acção problematizado e atingir o nível do discurso.
As duas expectativas contrafactuais referidas remetem, em princípio, para a possibilidade de chegar a um entendimento no discurso prático. O sentido das pretensões de validade de normas de acção consiste na promessa de que o comportamento fáctico dos sujeitos pode manifestar-se como uma acção responsável de sujeitos responsáveis. A validade de uma norma fundamenta-se, portanto, na pretensão de justificação discursiva: supomos que os sujeitos possam dizer que normas seguem e por que as aceitam como justificadas. Embora as acções institucionalizadas não sigam este modelo de acção comunicativa pura, é necessário agirmos como se estivesse realizado. Sem esta «ficção» não poderíamos lidar humanamente com os homens que, nas suas objectivações, ainda não se tornaram totalmente estranhos a si mesmos enquanto sujeitos.
Na vida quotidiana, o modelo de acção comunicativa pura é constantemente confrontado com situações sociais que o negam cabalmente. Tais desvios permitem, segundo Habermas, compreender o fenómeno da ideologia. Dado que a comunicação quotidiana se desvia sistematicamente deste modelo, cabe perguntar como podem ser estabilizadas as perspectivas contrafactuais. Ora, segundo Habermas, tais perspectivas só podem ser estabilizadas mediante os respectivos sistemas de normas vigentes e o enraizamento da convicção de legitimidade nos próprios bloqueios sistemáticos da comunicação formadora da vontade. Assim, a pretensão das normas à fundamentação é substituída por visões do mundo legitimadoras, cuja validade é estabelecida numa estrutura de comunicação que, excluindo a formação discursiva da vontade, impede tanto a transformação de proferimentos extralinguísticos em proferimentos linguísticos como a passagem flexível da acção comunicativa comum para o discurso. Tais perturbações de comunicação não só tornam a imputação recíproca de responsabilidade uma ficção como também apoiam a convicção de legitimidade, que garante e reforça permanentemente a invisibilidade dessa ficção. Ora, se as ideologias conseguem legitimar normas por meio de uma pseudojustificação, na medida em que não efectivam a sua pretensão de uma justificação discursiva, então torna-se necessário encontrar um critério universal e independente que nos permita detectar a sua presença e falar efectivamente com os outros sob as condições do discurso. Habermas distingue abstractamente cinco casos:
1) o discurso enquanto meio de acção comunicativa (a disputa organizada judicialmente);
2) a acção comunicativa que falsamente levanta a pretensão de ser discurso (todas as formas de justificação ideológica);
3) o discurso terapêutico que serve para a reconstrução das condições do discurso através do estímulo metódico da auto-reflexão (o diálogo psicanalítico);
4) o caso normal do discurso que serve para a fundamentação das pretensões de validade problematizadas (as discussões científicas);
5) o discurso intencionalmente renovador (o modelo humboldtiano de discussão livre em seminários).
Se a ideologia é a distorção sistemática da comunicação formadora de consenso, ainda não possuímos um critério seguro que nos possibilite distinguir claramente os casos 2) até 5), em que dependemos da nossa capacidade de discernir, na interacção, entre o consenso verdadeiro e o consenso falso. O consenso genuíno que procuramos alcançar ao nível do discurso deve ser explicitado em função dos meios linguísticos do próprio discurso. Ora, segundo Habermas, somos obrigados, em cada discurso, a pressupor uma situação ideal de fala. Isto significa que devemos antecipá-la contrafactualmente do mesmo modo que antecipamos a responsabilidade dos sujeitos agentes. Sem esta suposição careceríamos de um critério capaz de nos permitir distinguir entre um consenso falso e um consenso verdadeiro e, desse modo, superar a consciência ideológica que habita em nós. Os quatro tipos de acto de fala anteriormente apresentados são suficientes para a construção de um projecto de uma situação ideal de fala.
O entendimento é um conceito normativo que não só radica no próprio conceito de linguagem (Wittgenstein), como também se comprova na racionalidade de um consenso, sem o qual não se pode propriamente falar de comunicação real. Os falantes competentes sabem que qualquer consenso, facticamente atingido, pode enganar, mas, no conceito de consenso enganador, aceitam que este deveria ser substituído por um consenso verdadeiro; caso contrário, a comunicação seria interrompida sem que tivesse conduzido a um entendimento intersubjectivo.
Habermas chama uma proposição de verdadeira quando o predicado se aplica ao objecto indicado. Este objecto, representado pelo sujeito da frase, deve poder ser identificado, e o predicado que exprime uma significação universal deve poder ser atribuído ao objecto. Os actos de fala constatativos permitem-nos afirmar proposições e constatar a pretensão de verdade de proposições afirmadas e, portanto, distinguir entre ser e aparência:
«Verdade é uma pretensão de validade que vinculamos aos enunciados ao afirmá-los. As afirmações pertencem à classe de actos de fala constatativos. Ao afirmar algo, estabeleço a pretensão de que o enunciado que afirmo é verdadeiro. Esta pretensão posso estabelecê-la com razão ou sem razão. As afirmações não podem ser verdadeiras ou falsas, estão justificadas ou não estão justificadas. Na execução de actos de fala constatativos expressa-se o que queremos dizer com «verdade dos enunciados»; daí que esses actos de fala não possam eles próprios ser verdadeiros. Verdade significa aqui o sentido do uso de enunciados em afirmações».
As teorias da verdade como correspondência, quer na sua forma semântica (Tarski, Carnap), quer na sua forma ontológica (Aristóteles), consideram que as proposições só são verdadeiras quando se deixam guiar pela realidade, quando reproduzem ou mesmo copiam a realidade. Ora, segundo Habermas, estas teorias são insuficientes, porque, além da verdade não ser uma relação comparativa, como já tinham observado acertadamente Austin e Sellars, a correspondência entre proposição e realidade só pode, por sua vez, ser explicitada em proposições. Não podemos dar ao termo realidade nenhuma outra significação que aquela que temos, implicitamente, em proposições verdadeiras a respeito de estados de coisas existentes. Não podemos falar do conceito realidade independentemente do termo proposição verdadeira: «Realidade é a soma de todos os estados de coisas sobre os quais são possíveis proposições verdadeiras».
Como alternativa à teoria ontológica da verdade (teoria da correspondência), Habermas apresenta a teoria consensual da verdade, a qual é uma versão muito modificada da teoria consensual da verdade de Charles S. Peirce: «A opinião que será, afinal, sustentada por todos os que investigam é o que entendemos por verdade e o objecto que nesta opinião se representa é o real». A versão de Habermas diz que «só posso atribuir um predicado a um objecto quando alguém, ao entrar num diálogo comigo, atribuísse também o mesmo predicado ao mesmo objecto». Portanto, para distinguir entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos é necessária a referência ao juízo dos outros — ao julgamento de todos os outros com os quais eu pudesse dialogar «e, certamente, ao juízo de todos os outros com os quais pudesse iniciar alguma vez uma argumentação (incluindo contrafacticamente a todos os oponentes que pudesse encontrar se a minha vida fosse coextensiva com a história do mundo humano». A condição de verdade dos enunciados é o acordo potencial de todos os outros. Contudo, facticamente só podemos aceder a algumas pessoas para controlar a pretensão de validade das nossas afirmações. Estas pessoas devem ser competentes para fazer o ajuizamento. Habermas enuncia esta condição contrafáctica do seguinte modo: «Posso afirmar «p» se qualquer outro crítico competente estivesse de acordo comigo nisso». Ao contrário de Kamlah e Lorenzen, dois destacados membros da Escola de Erlangen, Habermas defende que a competência de juízo não depende da efectivação de uma comprovação adequada, isto é, de um conhecimento sobre a coisa, mas simplesmente da racionalidade do crítico competente.
No entanto, quando se trata de afirmações empíricas sobre estados de coisas singulares, podemos conseguir uma conclusão concludente e repetível sobre o método adequado à prova da sua verdade. Assim, por exemplo, na proposição: “O armazém está a arder”, são indicadas, na própria forma linguística da frase, as condições de verdade de que um crítico competente poderá sempre convencer-se. Podemos apelar ao crítico para nos certificar dessas condições de verdade, isto é, indicar-lhe as regras de identificação e de predicação, pedindo-lhe que observe o facto. Normalmente, confiamos na descrição de um único crítico (julgador). Portanto, no caso de uma afirmação empírica que só contém predicados observacionais, a observação é um método adequado de comprovação.
Mas, quando se trata de uma afirmação empírica formulada linguístico-intencionalmente, o método adequado de comprovação é a consulta. O carácter intersubjectivo da observação consiste no facto dela ser controlada, sobretudo no caso de problematização, por meio de uma experiência. Os predicados observacionais podem, em princípio, ser operacionalizados, assim como os objectos da observação podem ser identificados através de operações. Isto significa que as observações são metodicamente seguras, na medida em que se fundamentam em experiências de sucesso de operações repetíveis, as quais, por sua vez, podem ser reduzidas a operações realizadas de acordo com as regras do medir físico. Conforme demonstrou Lorenzen, na sua protofísica, o medir físico apresenta operações com as quais realizamos sistemas de exigências ideais sob condições empíricas. O jogo de linguagem elementar do medir físico consiste numa sequência de três operações: o medir espaços ideais, tempos ideais e causas ideais. Deste modo, mostra-se que o carácter intersubjectivo da observação depende de um fundamento normativo da observação, isto é, da idealização dos objectos de possível observação sob o ponto de vista do medir físico, e que os objectos são sempre concebidos como corpos mensuráveis. Em qualquer linguagem coisal, já está sempre presente o jogo de linguagem do medir físico. Só podemos aplicar as regras de identificação e de predicação em relação aos objectos de sentenças empíricas, porque realizamos sempre idealizações do campo objectual de acordo com as regras do medir físico. Executamos uma idealização análoga, quando fazemos afirmações empíricas a respeito de proferimentos de sujeitos capazes de acção linguística e, tentando consultar, provamos os respectivos sujeitos. Quando quero provar uma afirmação como: “O Pedro deu um livro ao João”, então posso perguntar a ambos se foi efectivamente assim. Contudo, tal método só pode ter sucesso se realizo o campo de objectos sobre o qual faço proposições. Esta idealização já não se regula a partir das regras abstractas do medir físico, mas segundo o modelo de uma acção comunicativa pura.
De acordo com esse modelo, pressupomos, contrafactualmente, que todos os motivos de acção são organizados linguisticamente, isto é, dentro da estrutura da própria conversa possível. Os motivos correspondem a interacções que podem ser expressas, postas em discussão e justificadas pela indicação de motivos. Todos os sujeitos valem aqui como responsáveis. Naturalmente, chocamo-nos, constantemente, com a discrepância entre os contextos de acção empíricos e as condições ideais de acção comunicativa pura. Contudo, sempre que fazemos afirmações linguístico-intencionais sobre os proferimentos dos sujeitos capazes de acção linguística, pressupomos inevitavelmente a responsabilidade, porque, se tivéssemos de determinar as regras segundo as quais identificamos os objectos sobre os quais fazemos proposições e segundo as quais aplicamos predicados atribuídos a esses objectos, teríamos de recorrer, em última análise, à pressuposta responsabilidade de um sujeito que é responsável pelos seus proferimentos. Somente porque, e enquanto realizamos essa idealização, é a consulta um método escolhido não convencional para a comprovação de afirmações empíricas e para o estabelecimento de um consenso sobre o valor de verdade das respectivas proposições.
Habermas explicita a sua teoria consensual (ou discursiva) da verdade, tomando como ponto de partida a clarificação de três questões prévias:
— De que podemos dizer que é verdadeiro ou falso? Para Habermas, a verdade ou falsidade dizem respeito a «proposições» sempre inseridas num acto de fala. Contudo, não é a afirmação enquanto acto de fala que é verdadeira, mas a proposição enquanto afirmada. A novidade desta tese reside na referência à pragmática dos actos de fala constatativos para explicitar o sentido de verdade. Daí a sua definição de verdade: «É a pretensão de validade que vinculamos aos enunciados, enquanto os afirmamos».
— Como já vimos, Habermas — seguindo neste ponto Strawson — defende que a verdade é uma qualidade de proposições assertóricas contidas nos actos de fala constatativos. A verdade é uma pretensão de validade que associamos ao conteúdo factual dos enunciados. Esta ideia pode ser explicitada a partir da teoria da redundância da verdade, segundo a qual a expressão «verdade» é vazia de qualquer significado que não esteja já contido na asserção de uma proposição factual. Assim, se, em vez de dizer: «Esta rosa é vermelha», eu disser: «É verdade que esta rosa é vermelha», a expressão «é verdade» não parece acrescentar nada à afirmação de que esta rosa é vermelha. Numa conversa normal, diríamos, em resposta a uma pergunta sobre a cor da rosa, «Esta rosa é vermelha» e não «É verdade que esta rosa é vermelha», e isto, não porque o conceito de verdade seja redundante ou supérfluo, mas porque, na maior parte dos contextos de comunicação, a asserção de verdade está implícita no que o falante diz. Só quando a afirmação é posta em questão por outro crítico competente é que o falante invocará, provavelmente, a «verdade». Dado que só entra em jogo em discussões factuais, o conceito de verdade só pode ser devidamente entendido em função de tais processos de argumentação. Quando afirmamos que uma coisa é verdadeira, queremos significar a possibilidade de confirmação do que afirmamos através de provas factuais e de argumentos lógicos. Na peugada de Toulmin, Habermas diz que uma asserção pode ser garantida. A verdade remete para o consenso alcançado através dessas garantias. Um enunciado é «verdadeiro» se um dos seus oponentes, confrontado com essas garantias, admitir a sua validade. A verdade é a promessa de um consenso racional. É, por isso, que Habermas distingue entre uma afirmação ingenuamente realizada (acção) e as considerações metalinguísticas (discursos). Na dimensão da acção quotidiana, são pressupostas e reconhecidas pretensões de validade implícitas nos proferimentos, enquanto o discurso interrompe, de certo modo, as acções numa tentativa de justificação das pretensões problematizadas. O discurso não se propõe dar informações, mas «argumentos»: «O resultado de um discurso não pode ser decidido nem por coacção lógica nem por coacção empírica, mas pela «força do melhor argumento». A esta força chamaremos motivação racional». Existe, portanto, entre a verdade e o discurso uma conexão estrutural necessária: «Nos plexos de acção comunicativa seria redundante uma explicitação da pretensão de validade estabelecida com as afirmações; mas tal explicitação é iniludível nos discursos, pois estes tematizam o direito que assiste a tais pretensões de validade».
— A terceira questão formulada por Habermas diz respeito a um suposto básico da teoria da verdade como correspondência: Como se relacionam os factos que afirmamos com os objectos da nossa experiência? Os objectos da experiência são aquilo sobre que fazemos proposições e os factos são aquilo que afirmamos sobre esses objectos. Ora, a teoria tradicional da verdade confunde objectos e factos, porque pressupõe que uma proposição verdadeira corresponde a um facto, ou seja, concebe o facto como o correlato de uma proposição e, por isso, como algo real no mundo. No entanto, a teoria tradicional chama a atenção para um elemento muito importante: as proposições devem ter uma componente objectiva.
Para Habermas, a verdade implica uma pretensão de validade que deve poder ser legitimada discursivamente, isto é, por meio de argumentos. Ora, a justificação discursiva significa consenso, não no sentido de um acordo casualmente realizado, mas no sentido de que qualquer parceiro possível da conversa atribuirá o mesmo predicado ao mesmo objecto. Assim, o consenso aqui visado é um consenso racionalmente motivado (legitimado). Em última análise, esse consenso só pode ser legitimado por meio da referência a uma situação de fala ideal. Esta situação «não é nem um fenómeno empírico, nem uma mera construção, mas uma suposição inevitável que reciprocamente fazemos nos discursos». Neste sentido, a situação ideal de fala manifesta-se como o fundamento normativo do entendimento linguístico: ela é antecipada e, enquanto antecipada, real.
Um consenso fundado é um consenso racional e funciona como critério para distinguir o falso do verdadeiro consenso. Isto significa que só posso afirmar p de x quando posso pressupor que encontraria o acordo de todos os críticos competentes. Um crítico competente deve ser um crítico racional. Racionais são, portanto, todos aqueles que escolhem o caminho não-convencional para a comprovação de afirmações empíricas, susceptíveis de observação e consulta. Para verificar essa competência, é necessário que o sujeito em questão seja «dono dos seus sentidos» e «responsável pelas suas acções». Além disso, deve «viver no mundo público» da sua comunidade linguística e não deve «ser um idiota», incapaz de distinguir entre ser e aparência: «A ideia de consenso verdadeiro exige dos participantes num discurso a capacidade de distinguir fiavelmente entre ser e aparência, essência e fenómeno, ser e dever, para poder julgar competentemente acerca da verdade dos enunciados, da veracidade das emissões e da rectidão das acções». De facto, só sabemos se alguém é realmente racional quando falamos com ele e nos situamos com ele em contextos de acção.
Quando a pretensão de validade das normas de acção é problematizada, recorre-se ao discurso prático para as esclarecer. No discurso prático, também se fazem afirmações empíricas sobre as quais se levanta o problema da verdade só solúvel por meio de um discurso teórico. O discurso prático, em si mesmo, tem como fim as recomendações legitimadas — não afirmações verdadeiras, mas justificações convincentes. Neste caso, não podemos julgar a competência do crítico por meio do seu conhecimento da coisa, mas somente por podermos dizer ser o crítico racional. Kamlach e Lorenzen chamam racional a um homem quando este se mostra aberto ao parceiro do diálogo e aos objectos falados, sem permitir que a sua conversa seja determinada pelas suas emoções ou pelas tradições. Habermas considera insuficiente esta referência à tradição, já que a procura de um critério independente para a racionalidade é a tentativa de uma justificação da pretensão normativa de autonomia — precisamente em relação à tradição. E a referência ao uso da linguagem só seria suficiente se tivéssemos à mão o fundamento normativo da linguagem a partir do qual poderíamos distinguir o discurso racional do discurso puramente fáctico.
Habermas considera importante avaliar a racionalidade de um falante pela veracidade dos seus proferimentos: os proferimentos de um falante são verídicos quando não enganam nem a si mesmo, nem aos outros. A veracidade dos proferimentos põe-se numa dimensão diferente da dimensão da verdade dos enunciados. Os actos de fala representativos referem-se precisamente à veracidade dos proferimentos e, com a sua ajuda, podemos fazer a distinção fundamental entre essência e fenómeno, prevenindo assim a ilusão que os falantes têm sobre si e sobre os outros, sobretudo quando reificam ou volatizam a sua própria identidade ou a do seu parceiro. Um falante expressa-se veridicamente quando pensa efectivamente as intenções que dá a conhecer por meio da realização do acto de fala; por exemplo, quando faz uma promessa e quer realmente cumpri-la. Um falante verídico assume a obrigação de responder pelas consequências que tomou sobre si com as condições implícitas de sinceridade dos seus actos de fala. Nisso se fundamenta a confiança mútua sem a qual um falante não reconhece o seu parceiro, e, sem esse reconhecimento, um acto de fala não pode realizar-se plenamente. Esta obrigação que implicitamente acompanha todo o acto de fala situa-se num metanível e, por isso, não deve ser confundida com o conteúdo de um acto de fala com o qual, por exemplo, um falante, numa promessa, assume uma obrigação de acção explícita. Enquanto executamos qualquer acto de fala, estamos, ao mesmo tempo, implicando condições de sinceridade, que devemos estar preparados para cumprir em consequência do acto de fala, se o parceiro reclamar o seu cumprimento.
A confiabilidade do falante, bem como a veracidade dos seus proferimentos, não se aplica à verdade das proposições. Para Habermas, a veracidade de um proferimento ocorre quando o falante segue efectivamente as regras constitutivas para a execução do acto de fala, sobretudo as regras que são constitutivas da obrigação de cumprir as condições implícitas de sinceridade. Para decidir sobre a veracidade dos proferimentos, apela-se para a justeza (rectidão) das acções. Seguir uma regra significa, no sentido lato, agir e esta acção pode ocorrer de diferentes modos. Assim, por exemplo, numa acção social, lidamos com as normas vigentes; no acto de contar, recorremos a regras construídas, e, no caso da linguagem, seguimos regras gramaticais e regras da pragmática universal. Seguir correctamente ou não uma regra não tem nada a ver com a verdade das proposições ou com a veracidade dos proferimentos, mas somente com a justeza das acções. Avalia-se a justeza de uma acção perguntando se ela pertence aos casos permitidos por uma regra determinada. Os actos de fala regulativos referem-se precisamente a esse tipo de comportamento regulado e, com eles, somos capazes de diferenciar entre ser e dever-ser. Wittgenstein já tinha demonstrado que a pergunta sobre as condições sob as quais podemos dizer que uma acção se realiza com justeza não pode ser decidida na base da observação. Para determinar se a consequência de acções é produzida de acordo com uma regra suposta ou não, temos de tomar parte no contexto de acções recíprocas, na medida em que as regras valem intersubjectivamente. Pelo menos, devemos supor sempre um outro sujeito, capaz de aplicar a regra questionada e provar se a regra é efectivamente aplicada nessa acção. Todavia, a comprovação da competência de regra de um agente exige a competência de regra daquele que prova. Dado que nenhuma das duas partes pode mostrar superioridade metodológica, a decisão deve ser tomada a partir de um consenso estabelecido entre ambos os sujeitos. Num jogo de linguagem quotidiano, o consenso realiza-se tranquilamente, mas, ser for problematizado, só pode ser estabelecido se os sujeitos empenhados na interacção saírem do contexto de acção e atingirem o nível do discurso: O discurso é, segundo Habermas, «a forma de comunicação caracterizada pela argumentação, na qual se toma como tema as pretensões de validade que foram problematizadas e se examina a sua legitimidade ou falta de legitimidade».
O nosso objectivo foi mostrar um critério independente capaz de possibilitar a distinção entre consenso verdadeiro e consenso falso. Como vimos, em casos de dúvida, esta distinção dependia da consecução de um consenso resistente. A teoria consensual da verdade mostra que não é possível decidir sobre as verdades das proposições sem referência à competência de possíveis críticos e que esta competência não pode ser decidida sem a avaliação da veracidade dos seus proferimentos e a justeza das suas acções. A ideia do consenso verdadeiro exige a possibilidade de determinar a verdade das proposições, a veracidade dos proferimentos e a justeza (rectidão) das acções. O estabelecimento de um critério de avaliação, nestas três dimensões, não pode ser feito independentemente da competência de potenciais críticos, cuja avaliação, por sua vez, deve ser provada num consenso para cuja avaliação deveriam ser encontradas regras. Deste modo, na conversação quotidiana, partimos sempre da pressuposição de que comunicamos efectivamente e de que esta comunicação poder conduzir a um verdadeiro entendimento. Se não confiássemos na possibilidade de distinguir um consenso falso de um consenso verdadeiro, a nossa comunicação ordinária seria incompreensível.
A explicação avançada por Habermas reside no facto de que «os participantes na argumentação supõem reciprocamente uma situação de fala ideal», a qual garante que qualquer consenso atingido sob as suas condições pode ser considerado, por si mesmo, como um consenso racional. Assim, a antecipação da situação ideal de fala garante a possibilidade de podermos «associar a um consenso alcançado facticamente a pretensão de ser um consenso racional», e, ao mesmo tempo, funciona como uma «instância crítica», a partir da qual qualquer consenso atingido facticamente pode ser posto em questão.
Anexo: Trata-se de um resumo de um ensaio publicado numa Revista de Filosofia.
J Francisco Saraiva de Sousa