quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Estética e Barbárie Cultural

Nas suas "Teses sobre a Filosofia da História", Walter Benjamin escreveu: «Não há nenhum documento da cultura que não seja também documento de barbárie». Ora, no nosso tempo, a cultura oficializada é a própria barbárie. A teoria crítica é obrigada a rever profundamente a sua estética.
A teoria estética de Marcuse procura mostrar que a arte pode contribuir para a luta desesperada pela transformação do mundo, uma vez que representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a autonomia do indivíduo. Deste modo, a teoria estética de Marcuse continua ligada à teoria marxista da sociedade, que «compreende a sociedade estabelecida como uma realidade que deve ser mudada». Após o colapso do sistema soviético, as chamadas "sociedades livres" revelam o seu verdadeiro rosto: a corrupção das suas pretensas elites que abusaram do reforço do poder do Estado e das suas tarefas sociais para enriquecer em termos privados. É esta sociedade mais cleptocrática do que democrática que urge transformar, de modo a garantir a qualidade da democracia. A "cultura" destas pseudo-elites é a barbárie. A linguagem política é, actualmente, mentirosa e abusa dos cálculos "falsificados" para credibilizar a mentira. A barbárie também é política: esta geração de políticos sem ideias é o horror.
Contudo, na actual sociedade de consumidores (Hannah Arendt), «os seres humanos administrados reproduzem […] a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade». Nesta situação de integração social e cultural total, tanto a teoria crítica como o seu projecto político são forçadas a mudar teoricamente de rumo. Neste contexto social de ofuscamento e de paralisia da crítica, Marcuse procurou pensar a afinidade e a oposição entre a arte e a praxis radical: «Ambas visionam um universo que, embora provenha das relações sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações». A arte e a política visam a libertação e, nesse sentido, a arte como negação da realidade estabelecida antecipa ilusoriamente um outro princípio de realidade que guia a praxis revolucionária. Para Marcuse, a "sociedade socialista" não resolve todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os seres humanos e a natureza, entre os indivíduos uns com os outros: «O socialismo não liberta Eros de Thanatos, nem poderia fazê-lo». Esta incapacidade de vencer definitivamente as forças da morte impele «a revolução para além de todo o estado de liberdade conseguido». Isto significa que a revolução nunca é definitiva, mas sempre permanente. É sempre «a luta pelo impossível, contra o inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido». Como escreve Marcuse:
«A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na realidade social, sendo, no entanto, a sua outra face. A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária».
A arte antecipa um outro princípio da realidade mais livre e pleno, que a praxis radical deve procurar realizar: «A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos indivíduos na sociedade sem liberdade». A arte mostra a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva: «Se as pessoas fossem livres, então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade». Mas, como as pessoas não são livres e autónomas, «a arte continua marcada pela ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da realidade estabelecida, mas a sua negação».
A arte antecipa, no seio da sociedade repressiva, a sua negação, isto é, a sociedade livre, embora de forma necessariamente sublimada e alienada. O que a praxis radical procura realizar é o que já está esboçado na forma estética, embora de forma sublimada e irreal. A arte é, de certo modo, transcendência, portanto, utopia. Mas «a utopia na grande arte nunca é simples negação do princípio de realidade (senão seria abstracta, má-utopia), mas a sua preservação transcendente em que o passado e o presente projectam a sua sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória».
Se «toda a reificação é, como afirmaram Adorno & Horkheimer, um esquecimento», então a arte é o contrário de toda a reificação: a arte é memória: memória do sofrimento e do terror. «A arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada. (...) O esquecer os sofrimentos do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria».
Porém, sob o princípio de realidade estabelecida, «a força da lembrança é frustrada: a própria alegria é eclipsada pela dor» e pela gratificação. A inexorabilidade deste eclipse da lembrança é uma questão aberta, porque «o horizonte da história ainda está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores».
Nos seus escritos de juventude, Marcuse tinha elaborado o conceito do carácter afirmativo da cultura e, muito mais tarde, reconheceu que uma civilização do prazer pode constituir um obstáculo à tarefa da libertação. Embora não tenha sido sempre claro a este propósito, Marcuse sabia que a gratificação imediata e a educação sem esforço paralisam a crítica e a preparação subjectiva para a Grande Recusa. Ora, este reconhecimento inviabiliza a «dimensão estétca» pensada na sua verdade como a vitória de Eros sobre Thanatos, a qual mais não é do que o próprio domínio de Thanatos. Eros é domesticado e a sexualidade plástica torna-se um obstáculo à luta pela autonomia.
Esta observação crítica aponta para uma outra leitura do pensamento estético e político de Herbert Marcuse, num confronto com as estéticas pós-modernas, levando em conta a estética da recepção de W. Iser e de H.R. Jauss, a teoria da vanguarda de Peter Bürger e a sua crítica da estética idealista, o conceito de soberania da arte de C. Menke, a ideologia estética de Paul de Man e o contributo fresco de Marshall Berman. A noção marcuseana de subjectividade rebelde pode funcionar como fio condutor, desde que reformulada em função dos modelos relacionais do Self, sem cair na tentação sofista do consenso universal de Habermas. Também no domínio estético a teoria crítica precisa mudar de rumo: a arte contemporânea tornou-se um feitiço! A Grande Recusa exige o resgate do Ocidente e a sua libertação de elementos estranhos! (Publicado em CyberCultura e Democracia Online.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Homo Religiosus e Habitação

«Entre os indígenas, nunca o lugar sagrado se apresenta isoladamente ao espírito. Ele faz parte de um complexo em que entram também as espécies vegetais ou animais que aí abundam em certas estações, os heróis míticos que aí viveram, vaguearam, criaram e frequentemente foram incorporados no solo, as cerimónias que aí se celebraram periodicamente e, enfim, as emoções suscitadas por este conjunto». (Lucien Lévy-Bruhl)
A filosofia do habitar confronta-se com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico.
Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social.
Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e alinhada entre as inúmeras máquinas fabricadas em série nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessário para a recuperação da força-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorífico ou um carro". A funcionalização da casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa a colonização de toda a sociedade, da natureza e da própria cultura, acabou por conduzir à perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religião, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. Até mesmo os cristãos urbanos abandonaram a liturgia cósmica e, por isso, a sua experiência religiosa já não é "aberta" ao Cosmos e o Mundo já não é sentido como obra de Deus: a sua experiência religiosa empobrecida é estritamente privada e visa unicamente a sua própria salvação. Historicamente, o inimigo do habitar autêntico é o próprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar é necessariamente uma crítica da irracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismo para melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).
Inimigo Político. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estáveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurança. Aqueles que defendem a importância crucial da casa na vida humana são vistos como indivíduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os românticos reprovavam aqueles indivíduos que se encastelavam na sua casa, levando aí uma vida inactiva e cómoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cívicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, após cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana são necessários, porque a saúde interior do homem repousa no equilíbrio entre o trabalho e a luta no espaço externo que é o mundo e a tranquilidade no espaço interno da casa.
Por isso, em vez de encarar a política do sentido como uma estratégia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (família), a pátria e os seus valores intrínsecos: a tarefa inalienável do homem é criar este espaço de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invasão alheia, nomeadamente da intervenção do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e íntima dos cidadãos.
Inimigo Sociológico. Este inimigo é relativamente recente, está associado à pós-modernidade e parece ser mais um fantasma sociológico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas pós-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposição à figura moderna do peregrino, como se estivéssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocêntrico é pensamento anónimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia do status quo, bloqueando a mudança social qualitativa. A filosofia do habitar é clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociológico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.
HOMO RELIGIOSUS. A consciência mítica foi alvo da atenção de Rudolf Otto, Ernst Cassirer, James G. Frazer, Van der Leeuw, Lucien Lévy-Bruhl, Roger Callois e Mircea Eliade. O homem primitivo ou mesmo o homem pré-moderno é um homo religiosus, e a religião é, segundo a definição feliz de Peter Berger, "o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado", ou seja, "a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada". Como expoente máximo da auto-exteriorização do homem, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro, a totalidade do ser, como humanamente significativo. O homem religioso é "sedento do ser" e o ser é, para ele, o próprio sagrado, tudo aquilo que se manifesta e se nos mostra por oposição ao profano. Quando tentou descrever "o algo inteiramente outro" (ganz andere) e totalmente diferente do mundo da vida diário e da natureza, Rudolf Otto acentuou que o numinoso impressiona o homem como um poder (majestas) esmagador e terrível (mysterium tremendum) e estranhamente fascinante (mysterium fascinans), diante do qual o homem tem o sentimento da sua profunda nulidade. Apesar desta ambivalência do sagrado, o homem primitivo só sabe viver no sagrado e, portanto, num Cosmos que o protege do Caos, num Nomos que o salvaguarda da Anomia. Por isso, a função principal do mito é revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: "o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos «começos»", ou seja, "o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer seja apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição". O homem primitivo é obrigado a recordar a história mítica da sua tribo, a iniciar-se nos seus mistérios e a reactualizar periodicamente grande parte daquilo que se passou ab origine, de modo a manter a ordem consagrada pelos Deuses no fabuloso tempo dos "começos", quando o Cosmos emergiu do Caos que continua a enfrentar como o seu terrível arqui-adversário. Refundar ritualmente o Cosmos é reerguer constantemente o escudo protector que defende o homem e o "nosso mundo" do terror da anomia e do Caos.
Neste universo religioso, Mircea Eliade soube destacar, no seu estado puro, o comportamento religioso em relação à habitação, e esclarecer a concepção do mundo que ele implica. A experiência religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano, mas este dualismo ontológico não é um dualismo embriológico, porque o profano pode ser transfigurado e transmutado no sagrado pela dialéctica da hierofania e o sagrado transformado no profano pelos inúmeros processos de dessacralização. Toda a vida do homem arcaico é uma repetição ininterrupta de gestos inaugurados por outros que não eram homens. Isto significa que tudo o que ele faz, incluindo a construção de edifícios, já foi feito pelos deuses, antepassados e heróis míticos in illo tempore, aquando da criação do mundo.
Ora, esta repetição ritual ou reactualização de gestos paradigmáticos feitos ab origine revela uma "ontologia original" e, neste sentido, a concepção do mundo subjacente ao comportamento religioso em relação à habitação pode ser vista como uma ontologia (religiosa) do habitar. A noção de História, com o devir e a irreversibilidade do tempo, é absolutamente alheia a esta ontologia do habitar. Como escreve Mircea Eliade: "«Situar-se» num lugar, organizá-lo, habitá-lo, são acções que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Cosmos que se está pronto a assumir «criando-o»". Mas, de acordo com a ontologia arcaica, este Cosmos é sempre a repetição e reactualização ritual do Cosmos exemplar criado e habitado pelos Deuses in illo tempore. O Cosmos fabricado pelos homens participa da santidade da obra primordial dos Deuses. O "nosso mundo" é construído mediante uma repetição ritual da Cosmogonia.
1. O Espaço Sagrado. Para o homem religioso, o espaço é heterogéneo e, por isso, apresenta roturas e fissuras que possibilitam experienciar partes e sectores de espaço qualitativamente diferentes. Esta heterogeneidade espacial permite a experiência de um espaço sagrado, "forte e significativo", distinta da experiência de outros espaços não-sagrados, absolutamente amorfos, e constitui uma experiência primordial, homologável à fundação do mundo. A rotura operada no espaço pela manifestação de qualquer hierofania permite a constituição do mundo, no sentido de descobrir o ponto fixo, o eixo central de toda a orientação futura. A manifestação da hierofania rompe a homogeneidade do espaço, ao mesmo tempo que revela uma realidade absoluta: "A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo". Para o homem religioso, nada pode começar sem esta orientação prévia que implica a aquisição de um ponto fixo, o Centro do Cosmos, no qual procura estabelecer-se. Isto significa que, "para viver no mundo, é preciso fundá-lo": a descoberta e a projecção do Centro equivale à criação do mundo.
Em contrapartida, para o homem profano, como o homem das sociedades modernas, o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes e sectores do espaço. Apesar de ser um espaço homogéneo e carente de estrutura e, portanto, de diferenciação qualitativa, o espaço geométrico não deve ser confundido com a experiência do espaço profano que se opõe à experiência do espaço sagrado. A manifestação da hierofania revela um espaço sagrado, ao mesmo tempo que permite obter um ponto fixo e, portanto, a orientação futura na homogeneidade espacial caótica: o fundar o mundo e viver realmente no mundo. Ora, a experiência do espaço profano conserva a homogeneidade e a relatividade do espaço. Sem a obtenção de um ponto fixo, não é possível adquirir uma verdadeira orientação: o Cosmos estilhaça-se em "fragmentos de um Cosmos fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de "lugares" mais ou menos neutros onde o homem (profano) se move, forçado pelas obrigações de toda a existência integrada de uma sociedade industrial".
2. A Casa. Toda a construção ou edificação humana tem como modelo exemplar a Cosmogonia. A instalação num território desconhecido e a construção de uma morada exigem uma decisão vital: assumir a criação do mundo que se «deliberou» habitar, imitando a obra dos Deuses. Para o homem religioso, "a casa é sempre santificada", porque constitui uma imago mundi e o mundo é uma criação divina. A homologação da morada ao Cosmos é feita ritualmente através de dois processos: 1) pela projecção dos quatro horizontes a partir de um ponto central, no caso de uma aldeia, ou pela instalação simbólica do Axis Mundi, no caso de uma habitação familiar; e 2) pela repetição, através de um ritual de construção, do acto exemplar dos Deuses. O primeiro processo "cosmifica" um espaço pela projecção dos horizontes ou pela instalação do Axis Mundi. Toda a habitação humana comporta um "aspecto sagrado pelo facto de reflectir o mundo" e, na sua estrutura, revela-se um simbolismo cósmico. A casa é uma imago mundi e, como tal, situa-se simbolicamente no "Centro do Mundo".
Assim, por exemplo, como mostrou Eliade, a morada das populações primitivas árcticas apresenta um poste central que é assimilado ao Axis Mundi, isto é, ao Pilar cósmico ou à Árvore do Mundo que ligam a Terra ao Céu. O Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: "a estaca da tenda ou o poste central da casa são assimilados aos Pilares do Mundo e são designados por este nome". Na base deste poste central, têm lugar os sacrifícios em honra do Ser Supremo celeste. Toda a morada humana repete a cosmogonia, situa-se perto do Axis Mundi e, por tudo isso, representa e reflecte o Cosmos: o seu habitante vive implantado na realidade absoluta.
A construção de uma casa é sempre a fundação de um cosmos num caos e, por isso, a casa é uma imagem do mundo na sua totalidade, uma imago mundi. A sua construção é a repetição da criação do mundo, uma realização constantemente renovada e reiterada da obra primigénia dos Deuses. A organização humana do espaço é, pois, a repetição de um acto dos tempos primitivos: "a transformação do caos em cosmos por meio do acto divino da criação". A morada humana é o microcosmos que o homem constrói imitando a criação-arquétipo dos Deuses. Para o homem arcaico, há uma homologia entre a criação do mundo e a construção da casa, porque, "organizando um espaço, se reitera a obra exemplar dos Deuses". Cosmificar é consagrar e consagrar é repetir ritualmente a cosmogonia. Mas o homem arcaico vai mais longe e "cosmisa" o próprio corpo: "«Habita-se» o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo". O território habitado, o Templo, a Casa e o Corpo são Cosmos dotados de uma "abertura superior" que lhes possibilita comunicar com o outro nível transcendente, o sagrado.
3. O Templo. O Templo é o lugar santo por excelência, a casa dos Deuses. Nas grandes civilizações asiáticas e judaico-cristãs, o Templo é simultaneamente uma imago mundi e uma reprodução terrestre de um modelo transcendente. O Templo constitui uma imago mundi, porque o mundo é obra dos deuses e, como tal, é sagrado. Porém, como lugar sagrado por excelência, o Templo "re-santifica continuamente o Mundo, porque o representa e contém ao mesmo tempo". Graças ao Templo, o mundo é re-santificado na sua totalidade e, deste modo, é continuamente purificado pela "santidade dos santuários". Desta diferença ontológica entre o Cosmos e a sua imagem santificada que é o Templo resulta a concepção de que a santidade do Templo "está ao abrigo de toda a corrupção terrestre", por causa do seu plano arquitectural ser obra dos Deuses e, por consequência, se encontrar muito perto dos Deuses no Céu.
Mircea Eliade recorre a textos bíblicos para mostrar que, para o povo de Israel, os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Jeová desde a eternidade e foi Ele que os revelou aos seus eleitos, em especial Moisés, David e Salomão, para que fossem reproduzidos sobre a terra. A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso e a cidade de Jerusalém é a reprodução aproximada do modelo transcendente: a cidade pode ser maculada pelo homem, mas o seu modelo goza de uma existência espiritual, incorruptível e celeste. A basílica cristã e, mais tarde, a catedral, retomaram e prolongaram estes simbolismos da "geometria celeste" e a Igreja foi concebida como imitação de Jerusalém celeste. A arquitectura sacra retoma e desenvolve o simbolismo cosmológico e todos os rituais relativos aos Templos, às cidades e às casas derivam, em última análise, da "experiência primária do espaço sagrado".
4. A Cidade. Tal como o Templo ou a casa, a cidade que mais não é do que uma "grande casa" resulta de um acto consciente de fundação. O exemplo mais conhecido é o da fundação de Roma, que nos foi transmitido pela narrativa de Plutarco: "Segundo inúmeras tradições, a criação do mundo começou num centro e, por esta razão, a construção da cidade deve também desenrolar-se em volta de um centro. Depois de ter aberto um fosso profundo (fossa), Rómulo encheu-o de frutos, cobriu-o de terra, erigiu por cima dele um altar (ara) e traçou com o arado o sulco dos limites de protecção (designat moenia sulco). O fosso era um mundus e, como observa Plutarco, «deu-se a este fosso, como ao próprio universo, o nome de "mundo" (mundus). Este mundus era o lugar da intersecção dos três níveis cósmicos (a Terra, o Céu e o Inferno)». É provável que o modelo primitivo de Roma tenha sido um quadrado inscrito num círculo: a difusão extremamente extensa da tradição gémea do círculo e do quadrado leva a essa suposição" (M. Eliade).
A cidade é, portanto, uma cópia do cosmos, ou melhor, uma reconstrução do mundo, projectada, por meio do ritual de construção, no centro do cosmos e, tal como o Cosmos exemplar que se origina a partir do seu Centro, a cidade estende-se a partir de um ponto central que é como que o seu "umbigo", donde se projectam os quatro horizontes nas quatro direcções cardeais. A cidade é, portanto, a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Como já vimos, o "nosso mundo" é um mundo total e organizado num Cosmos, fundado pela imitação da obra exemplar dos Deuses. A cidade é precisamente o "nosso mundo" e, como tal, está sujeita a sofrer um ataque exterior que ameaça transformá-la num Caos. Os seus adversários são assimilados aos inimigos dos Deuses, os demónios, e sobretudo ao arquidemónio, o Dragão primordial vencido pelos Deuses nos começos dos tempos: "O ataque do «nosso mundo» equivale a uma desforra do Dragão mítico, que se rebela contra a obra dos Deuses, o Cosmos, e se esforça por reduzi-la ao nada. Os inimigos enfileiram entre as potências do Caos. Toda a destruição de uma cidade equivale a uma regressão ao Caos. Toda a vitória contra o atacante reitera a vitória exemplar do Deus contra o Dragão, isto é, contra o Caos" (M. Eliade).
Toda a habitação humana é consagrada pelo teofania (Robertson Smith) e, como espaço sagrado, está encerrada e protegida por um muro ou vedação. Este muro visa não só garantir a presença contínua de uma cratofania ou de uma hierofania no interior do recinto, como também preservar o próprio profano do perigo a que se exporia se ali penetrasse sem os devidos cuidados, porque o sagrado é perigoso. De modo similar, as muralhas da cidade, antes de serem defesa militar, são defesa mágica, porque garantem a manutenção, no meio de um espaço caótico, povoado de demónios e de larvas, de um espaço organizado, cosmicizado e, portanto, provido de um Centro. Segundo Eliade, o simbolismo do labirinto incluía também a ideia de defesa de um Centro: entrar num labirinto tinha o valor de uma iniciação. Em termos militares, o labirinto impedia ou, pelo menos, dificultava a penetração do inimigo no centro da cidade, cuja configuração reproduzia o próprio Cosmos, mas, em termos religiosos, a sua função era impedir o acesso da cidade aos espíritos de fora, aos demónios do deserto e à morte e, muitas vezes, a sua finalidade era defender um "centro". Neste caso, o labirinto representava o acesso iniciático à sacralidade, à imortalidade e à realidade absoluta: "O acesso ao "centro" equivale a uma consagração, a uma iniciação", cujo objectivo é produzir uma modificação radical do estatuto religioso e social da pessoa que vai ser iniciada, isto é, uma mutação ontológica da condição existencial do neófito que, deste modo, abandona uma existência profana e ilusória e adquire uma existência real, durável e eficaz.
5. Conclusões Provisórias. Mircea Eliade mostrou que o sagrado e o profano são duas modalidades de experiência e de ser no mundo, isto é, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história, que devem ser estudadas pela antropologia filosófica. A dessacralização do mundo operada pela modernização não aboliu certos traços da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivências" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propósito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o «sagrado» se encontra presente e activo principalmente nos universos imaginários". Ora, como mostrou Bachelard, as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total e, ao contrário do que pensa Eliade, estas experiências não são nocturnas mas diurnas ou, como diz Bloch, são sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo é constituir uma autêntica antropologia filosófica, devemos ver nessas "sobrevivências" o "traço fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse traço fundamental da condição humana que Eliade reconduz à nostalgia do Paraíso são os seguintes:
1) A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mítico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, após a sua dessacralização, a estrutura do seu espaço é "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referência e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.
2) A casa continua a conservar o seu aspecto particular que só pode ser captado através da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carácter de sortilégio da violação do domicílio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hóspede desfrutar a protecção da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ninguém lhe cause qualquer tipo de dano. A casa é potencialmente um espaço inviolável e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.
3) A casa continua a ser uma esfera inviolável de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. Já não se trata de defender a casa da penetração de demónios hostis que ameaçam o homem fora da sua casa e cuja infiltração deve ser evitada por meios mágicos, mas o carácter ameaçador deste mundo alheio não desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas forças sociais, políticas, económicas e ideológicas que se introduzem no interior do espaço da casa, sem serem desejáveis ou mesmo aceites.
4) A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que está em correspondência com o mundo exterior. Se a casa é o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, então ainda é um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criança vê a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo pátrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graças ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.
Coube a Minkowski analisar o carácter da morada que é a intimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, é preciso partilhá-la com a comunidade da família. Deste modo, a casa e a família encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensação humana de amparo. O lar é um espaço aberto a um círculo reduzido de amigos e de pessoas íntimas. Segundo Minkowski, a essência da casa não pode ser captada a partir do indivíduo isolado, o celibatário ou o viúvo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos próximos e íntimos: a casa é fundada não por um mas por dois indivíduos. Sem se aperceber dessa conexão essencial, Minkowski retoma uma noção antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigação do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraça seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carvões, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manhã, o primeiro cuidado era avivar o fogo e alimentá-lo com alguns ramos secos. O fogo só deixará de brilhar sobre o altar quando toda a família estivesse extinta; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos". O capitalismo ameaça destruir este fogo do lar e, com ele, a própria humanidade do homem, que mantém prisioneiro da condição metabolicamente reduzida numa terra devastada. "Eu habito, tu habitas, nós habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa pátria": é assim que o revolucionário conjuga o verbo "habitar". O devaneio do sonhador solitário, até mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude de esperança militante, sonha diurnamente a casa onírica: a pátria da identidade da humanidade naturalizada e da natureza humanizada. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 5 de outubro de 2008

Degradação da Universidade

«Baudelaire possui pouco daquilo que se podem considerar as condições materiais do trabalho intelectual: da biblioteca à casa própria, não houve nada a que não tivesse de renunciar no decurso da sua existência instável, dentro e fora de Paris. Em 26 de Dezembro de 1853 escreve à mãe: "Estou tão acostumado ao sofrimento físico, sei tão bem o que é ter de viver com umas calças rotas, um casaco que deixa passar o vento e duas camisas, tenho tanta prática a atamancar sapatos furados com palha ou mesmo com papel, que já quase só sinto como sofrimentos os que são de ordem moral. De qualquer modo, tenho de confessar que cheguei a um ponto em que, por receio de rasgar ainda mais as minhas coisas, deixei de fazer movimentos bruscos e de andar muito a pé"». (Walter Benjamin, A Modernidade)
As diversas versões conhecidas do Curriculum Vitae de Walter Benjamin são documentos literários que abordam os seus projectos de pesquisa, com referência a alguns dos seus trabalhos publicados mas sobretudo aos trabalhos em curso ou meramente projectados. Como qualquer estudante recém-licenciado, Benjamin não tinha "experiência profissional" ou, como se diria hoje, não tinha "emprego": Benjamin foi um eterno desempregado, um "deserdado" no sentido de Baudelaire, até à sua estranha morte, coberta de mistério, dependente dos seus amigos e das "mesadas" do pai, como confessa numa carta dirigida a Scholem. E como qualquer verdadeiro universitário, Benjamin sonhava com uma "carreira" universitária, ser eternamente professor e aluno, que lhe garantisse a estabilidade material necessária para levar a cabo os seus projectos de pesquisa, no seio de uma comunidade universitária vista como "lugar da revolução espiritual permanente". Esse lugar no seio da comunidade universitária foi-lhe negado por homens cinzentos, pardacentos e invejosos e o nazismo consumou essa negação, roubando-lhe a vida. De certo modo, Benjamin sabia desde muito cedo que a universidade já não obedecia à lógica da sua "verdadeira autonomia", mas que estava ao serviço do "espírito profissional" que tomou conta das próprias associações livres de estudantes. Benjamin não tinha um curriculum vitae, no sentido burocrático (Weber) e burguês da expressão, porque não tinha nem desejava ter experiência profissional; era a promessa de um projecto curricular de pesquisa permanente que deveria desabrochar no seio de uma comunidade unida pela Filosofia: a Universidade como "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade", liberta da "ideologia da profissão" que algema a "consciência intelectual", a única capaz de "abandonar a segurança burguesa" e dedicar-se ao conhecimento genuíno, elevando-o à "universalidade", sob "a forma de filosofia".
No ensaio Das Leben der Studenten, Benjamin elabora a antítese entre o "espírito criativo" e o "espírito profissional", a qual permite pensar a oposição entre a verdadeira universidade e a falsa universidade, como lhe chamo, a noção ideológica e catastrófica da ciência como "escola profissional" e o destino da Universidade na nossa época metabolicamente reduzida. Nesta dialéctica sem compromissos, em que os elementos da contradição se excluem mutuamente, o espírito profissional deforma e ameaça aniquilar definitivamente o espírito criador, convertendo a universidade no lugar privilegiado em que se opera "a deformação do espírito criador em espírito profissional", levada a cabo quer no interesse do Estado quer no interesse das empresas, mas sempre contra a "ideia de saber" que funda originariamente a universidade. Isto significa que o processo de degradação do ensino universitário se funda na metamorfose perversa da noção de ciência, aplaudida pelo positivismo lógico e pela filosofia analítica e tematizada por Thomas S. Kuhn, sem disso ter consciência, na sua teoria da estrutura das revoluções científicas, onde converte a epistemologia em "sociologia da ciência": a apologia envergonhada da organização social da ciência e da pesquisa científica. Ao chamar a atenção para esta oposição, a crítica redentora limita-se a "apontar para a crise que, instalada na essência das coisas, leva a uma decisão (política) à qual os cobardes sucumbem e os corajosos se subordinam" e, deste modo, liberta "o futuro da sua forma presente desfigurada, através de um acto de conhecimento".
1. Missão da Universidade: o Espírito Criador. Para elaborar o conceito de verdadeira universidade, cujos vestígios recuam e se perdem cada vez mais no passado, é necessário descontextualizar o texto orientador de Benjamin, dando-lhe a "actualidade" que ele merece, isto é, resgatando-o do passado. A universidade funda-se originariamente na "ideia de saber", associada ao ideal de uma "vida justa". Pela sua própria essência, a ciência livre, no seu sentido não-positivista, "não admite que o pesquisador se desligue dela": a prática científica obriga-o a "ser sempre professor" e, simultaneamente, aluno. Sócrates já professava que saber é ser capaz de ensinar e Bachelard acrescenta que ensinar é ser capaz de aprender. Isto significa que o professor universitário é, simultaneamente, professor perante os seus estudantes que deve iniciar nas "coisas do conhecimento" e aluno face à realidade em processo de devir constante: o conhecimento não pode petrificar e perder-se num "amontoado de conhecimentos" não articulados pela filosofia, mas deve acompanhar ou até mesmo antecipar-se aos desafios reais.
A comunidade académica que é uma comunidade de homens criativos "eleva todo o estudo à universalidade, sob a forma de filosofia". Esta universalidade é alcançada quando a comunidade académica, articulando professores e estudantes, se compromete em ser, ela própria, "produtora e protectora da forma filosófica da comunidade, não nos termos limitados da filosofia de uma determinada ciência, mas em relação às grandes questões metafísicas" da tradição ocidental. Só deste modo pode a ciência livre estabelecer uma relação privilegiada da "profissão" com a vida: não uma vida profissional tout court, mas uma "vida aprofundada" aberta à cidadania mundial. Como lugar da "revolução espiritual permanente", a universidade fornece e difunde um "acervo teórico e metodológico" de conhecimentos, bem como uma "experimentação cautelosa", que possibilita colocar, de modo abrangente e profundo, os novos questionamentos da realidade em devir, e fornecer uma "orientação" de vida num mundo cada vez mais global. A universidade tem como missão incentivar, galvanizar e fomentar o espírito criativo nos seus membros, porque este espírito constitui o "grande transformador" que traduz em "questões científicas", a partir de uma abordagem filosófica mais abrangente, as novas ideias que costumam "despertar mais cedo na arte e na vida social do que na ciência".
Salvaguardar este núcleo de sabedoria significa reconquistar e garantir a autonomia. Na sua obra "La Trahison des Clercs", Julien Benda afirma formalmente uma dupla moral: "a do poder para os Estados e povos, a do humanismo cristão para os intelectuais". Para Benda, a função dos intelectuais no âmbito da história universal sempre foi a de "propagar os valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo". A traição dos intelectuais reside, segundo Benda, no facto de se terem passado para o lado do poder, a sua "paixão política". Ora, como recorda Benjamin na peugada de Berl, o "homem do espírito" de Benda mais não é do que a "aparição invocada do anacoreta, do clérigo medieval na sua cela", porque a paixão política esteve sempre presente na actividade filosófica: a função do intelectual é precisamente fazer a "crítica radical da ordem estabelecida" e é, nessa actividade, que se revela a sua autonomia, o seu compromisso com o mundo. A filosofia de Marx mais não é do que a filosofia do e no mundo e para o mundo: ela é a promessa sempre renovada de um mundo melhor. Numa sociedade que dispensa o pensamento e se entrega ao consumismo voraz, como a actual sociedade, compete ao Estado renovado zelar pela autonomia dos seus intelectuais e não permitir que os restantes poderes, nomeadamente os económicos e os partidários, interfiram no funcionamento das universidades, o lugar onde o espírito criativo e crítico se abriga, garantindo a base económica do exercício livre do pensamento.
2. Espírito Profissional e Destruição da Universidade. A falsa universidade instalou-se paulatinamente em nome de um novo princípio que não tem nada de inocente: a universidade deve ajudar a preparar as pessoas para uma profissão. No «princípio», era o Estado/Nação, o Estado Moderno, que, no seu processo gigantesco de burocratização, precisava de recrutar e formar os seus funcionários públicos: "a administração burocrática, pelo menos toda a administração especializada, que é caracteristicamente moderna, pressupõe habitualmente um treino especializado e completo" (Max Weber). Para alcançar esse objectivo, o Estado Moderno retirou o poder eclesiástico das universidades e subordinou-as ao governo e ao Ministro que tutela o ensino superior, convertendo-as, como disse Althusser, em "aparelhos ideológicos de Estado": os professores, bem como potencialmente os estudantes, foram transformados em funcionários públicos que, em nome da eficácia do princípio burocrático, se esquivam das consequências de uma "vida intelectual crítica", com a qual deviam estar comprometidos, para ajudar a perpetuar o sistema de dominação burocrática vigente, através da aprendizagem técnica especial que envolve basicamente jurisprudência ou administração pública ou privada e muita "treta". A universidade começa assim a ser vista como uma "corporação de funcionários públicos e de portadores de diploma académico", deixando para trás a ideia de uma "comunidade de investigadores".
Como diz Weber, "a ocupação de um cargo é uma profissão" e, por conseguinte, para desempenhar qualquer cargo público ou privado, as pessoas precisam obter um diploma que garanta que foram submetidas a uma aprendizagem técnica especializada, isto é, que conhecem e dominam um conjunto de procedimentos ou de regras gerais, mais ou menos estáveis, mais ou menos exaustivas, que certificam as suas competências. O "medo do futuro" e da solidão leva os estudantes a pactuar com o inevitável espírito filisteu predominante, personificado na figura do "velho", e a comunidade académica rende-se à "segurança burguesa" e não resiste ao estado de coisas estabelecido: a universidade converte-se numa fábrica que distribui diplomas académicos. E, tal como sucedia no tempo de Benjamin, "os professores e os estudantes passam uns pelos outros sem nunca se verem", e actualmente os estudantes passam pela universidade sem frequentar as aulas e sem terem uma vida académica de esforço: a universidade é, no presente, uma instituição que passa arbitrariamente diplomas, enquanto os seus supostos estudantes se divertem nas praxes pseudo-académicas do vício. O estudo esforçado foi substituído pelo consumo de droga, álcool, sexo e comportamentos impróprios. Retomando uma ideia de Baudelaire, poderíamos dizer que a actual comunidade social de estudantes que parasita ocasionalmente os espaços universitários para fins recreativos está "infectada" de pseudo-democracia e de sífilis. A sua ideia obsessiva de "aproveitar" a juventude traduz na prática a deformação e o despedaçamento do "eros espiritual" e a sua conversão em eros sexual: as "prostitutas" viciadas em sexo e drogas estão sempre já presentes, não nas ruas, mas no novo estilo de vida estudantil, internacionalizado pelo Programa Erasmus.
Para a esmagadora maioria dos estudantes, "a ciência é uma escola profissional". Eles frequentam a universidade não para estudar mas para conquistar um diploma sem esforço que lhes garanta, de algum modo, um futuro emprego. Ora, como mostra Benjamin, "onde a ideia dominante da vida estudantil é a profissão e o emprego, não há lugar para a ciência", porque a ciência é uma actividade alheia ao espírito profissional. A ciência ensina a ser professor e não a exercer as "profissões públicas (ou privadas) de médico, jurista ou docente universitário": as "ciências actuais, através do desenvolvimento do seu aparato profissionalizante (e do seu know how) foram desviadas da sua origem comum, fundada na ideia do saber, a qual agora se transformou num mistério ou mesmo numa ficção". O que está aqui em questão não é o estatuto público ou privado das universidades, embora a concepção da universidade como empresa seja a consumação da má universidade, mas a degradação da própria noção de ciência e, neste aspecto, Benjamin antecipa um dos traços essenciais da teoria crítica: o seu antipositivismo e a sua aversão à pesquisa administrativa (Adorno). A ciência que se pratica actualmente nas universidades desmente o seu próprio pressuposto positivista de "uma ciência livre de pressupostos": quer esteja ao serviço de um Estado burocrático ou dos interesses comerciais das empresas, a ciência tende a ser reduzida a um conjunto de algoritmos que se "aprendem" e se aplicam de modo mecânico, não-criativo, sem verdadeiro conhecimento e na ausência total de pensamento. Isto significa que a própria ciência perdeu o contacto com a experiência, dispensou o pensamento e tornou-se uma espécie de autómato: a pesquisa científica tornou-se "trabalho de equipa", organizado socialmente em função do modelo burocrático predominante, cuja finalidade não é aprofundar o conhecimento e muito menos a "busca cooperativa da verdade" (Peirce), mas produzir "soluções" economicamente rentáveis ou resolver problemas que lhe são profundamente alheios. O "científico" reduzido ao "rentável", isto é, a instrumentalização da ciência por parte do sistema económico capitalista, significa que a ciência livre está morta: qualquer pessoa com treino prático pode fazer a ciência que hoje é feita nos laboratórios que usam as tecnologias mais avançadas, porque fazer este tipo de ciência não exige conhecimentos científicos; basta seguir os procedimentos padronizados e aguardar que a sua aplicação mecânica produza os efeitos esperados.
A burocratização do ensino, posteriormente protagonizada pelas chamadas "ciências da educação" e as suas pedagogias do "atrasado mental", produz necessariamente automatização. Os professores profissionalizados criados nesta má universidade são autómatos: uma cadeia de procedimentos reflexos montada por um engenheiro da burocracia do Estado e das empresas e do seu Ministério da Educação ou da Ciência; carecem de experiência e de conhecimentos; preenchem reflexamente papéis e são incapazes de imaginar (e muito menos de viver) uma "vida não regulamentada". São um reflexo da grande cadeia de reflexos que é o sistema social total e comportam-se como os cães de Pavlov: submetem-se acritica e passivamente aos comandos do posto hierarquicamente superior, submissão manifesta desde logo na facilidade com que um "subalterno" se sujeita aos caprichos sexuais de um qualquer superior hierárquico, sem tematizar uma tal submissão sexual como assédio sexual. Afinal, possuem diplomas e um curriculum vitae que certificam a sua conformidade, isto é, a sua incompetência. A unidade de vida encarada como "unidade de criação, eros e juventude" foi completamente esquecida. Precisamos rejuvenescer de modo sóbrio e ascético e criticar todas as figuras da má universidade que corrompem o espírito da ciência, através das burocracias do Estado e das empresas, e eros, através da "puta" viciada em vida fácil. Só deste modo podemos ter esperança na futura restauração da verdadeira universidade. (Post editado originariamente aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa