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domingo, 1 de junho de 2008

Pornografia na Internet

A pornografia é geralmente definida como a descrição ou a imagem de corpos nus ou quase nus em contacto sexual, usada para entretenimento, excitação e estimulação sexuais e também como fonte de informação sobre a sexualidade, particularmente para as pessoas mais jovens (Trostle, 2003; Zillmann & Bryant, 1982).

A acessibilidade da pornografia nos mass media (jornais, revistas, filmes, televisão ou Internet) aumentou ao mesmo ritmo que o desenvolvimento tecnológico favorecia a sua produção e distribuição (Lewin, 1997). Os livros e as revistas foram o meio mais popular usado pelos indivíduos antes de 1970 e os filmes de 8-mm foram o meio preferencial dos anos 70 do século passado. Os filmes pornográficos tornaram-se mais acessíveis nos anos 80 do século XX e o VCR tornou-se frequente nas casas particulares. A TV a cabo e via satélite levaram a pornografia até às salas das pessoas. A Internet já era o meio dos anos 90 do século XX e continua a ser (Lewin, 1997).

Traeen & Nilsen (2006) estudaram recentemente o uso da pornografia na Noruega e os resultados mostraram que a maioria dos noruegueses, com idades compreendidas entre os 18 e os 49 anos, foi exposta à pornografia: 82% dizem ter lido revistas pornográficas, 84% viram filmes pornográficos, e 34% examinaram pornografia na Internet, dos quais 14% tinham participado em chatting eróticos no último ano.

Neste estudo, o género foi a variável mais significativa para predizer o uso da pornografia: os homens relataram maior uso da pornografia que as mulheres. O uso da pornografia por parte das mulheres parece estar muito conectada ao uso que os seus parceiros fazem da pornografia. Isto significa que as mulheres tendem a partilhar o uso da pornografia com os seus parceiros, talvez devido ao desejo manifestado por estes últimos. Comparadas com os homens, a maioria das mulheres que tinha visto pornografia na Internet durante os últimos 12 meses participou também em chatting eróticos.

Além disso, o uso da pornografia varia muito em função da orientação sexual: os homens gay/bissexuais e as mulheres lésbicas/bissexuais disseram ter feito um maior uso da pornografia do que os homens e as mulheres heterossexuais. O nível de educação predizia a exposição à pornografia na Internet, nas revistas e nos filmes. E os indivíduos mais jovens eram mais propensos a utilizar a Internet para ver materiais pornográficos e para a prática de chatting erótico. Finalmente, o número de parceiros sexuais estava associado com o uso da pornografia em todos os mass media e a idade em que começaram a fazer sexo estava associada com o uso da pornografia em revistas e em filmes.

Estes resultados são muito similares com outros resultados obtidos por estudos da pornografia por parte de suecos (Lewin, 1997), finlandeses (Haavio-Mannila & Kontula, 2003) e noruegueses (Traeen et al., 2004). Todos estes estudos mostraram que o uso da pornografia decresce com o aumento da idade e que uma elevada percentagem de utilizadores da Internet parece ver regularmente pornografia. Além disso, a Internet é o medium dos segmentos mais jovens da população, que a utilizam como um meio ou arena sexual.

Segundo Cooper (1998), os factores que facilitam este maior uso da Internet são a acessibilidade, a disponibilidade e o anonimato, geralmente referidos como the triple A-engine, aos quais King (1999) acrescentou a aceitabilidade. Contudo, quanto às diferenças, verifica-se que os homens e as mulheres fazem um uso diferente da Internet como arena sexual: as mulheres parecem preferir as actividades interactivas (chatting e e-mail), enquanto os homens parecem preferir as actividades individuais (Cooper et al., 2000; Podlas, 2000). O facto dos homens gay fazerem um maior uso da pornografia da Internet pode ser explicada pelo facto desta garantir maior anonimato (Benotsch et al., 2002; Rhodes et al., 2002; Tikkanen & Ross, 2003). Para estes indivíduos marginalizados, a Internet constitui um meio seguro que lhes permite revelar o seu "self verdadeiro" (Rogers), sem temerem represálias.

Num outro estudo norueguês, Träeen et al., (2002) tinham mostrado que 90% dos noruegueses dizem ter sido expostos a materiais pornográficos, embora muitos poucos usassem a pornografia muito frequentemente. Quanto à escolha do meio, os homens e as mulheres exibiam padrões diferenciados: os homens e os indivíduos mais jovens expressaram atitudes mais positivas em relação à pornografia do que as mulheres e as pessoas mais idosas. Os homens solteiros usavam solitariamente mais a pornografia, talvez para se excitarem e se estimularem sexualmente, e as mulheres usavam-na na companhia dos seus parceiros. Os homens novos usavam mais a Internet, tanto para observar sites pornográficos como para participarem em chatting eróticos. Apesar da especificidade e da permissividade da cultura sexual nórdica, existem algumas diferenças de género quanto às atitudes e ao uso da pornografia: os homens eram mais porno-orientados do que as mulheres, o que parece sugerir que a sua sex drive é mais elevada do que a das mulheres.

Os nossos resultados obtidos do estudo de campo, reforçado por uma ciberpesquisa do uso da pornografia em Portugal, cujo delineamento experimental se assemelha muito ao de Allen (2005), embora mais ousado em termos de procedimentos e de estratagemas, mostraram resultados semelhantes aqueles apresentados pelos estudos referidos, embora se suponha (erroneamente) que a nossa cultura seja menos permissiva que a cultura nórdica. Entre os homens gay e bissexuais observados, aqueles que fazem um uso compulsivo da Internet, com a finalidade de procurar parceiros sexuais, investem muito mais tempo, dinheiro e energia a perseguir experiências de cibersexo, com consequências negativas em termos de depressão, ansiedade e problemas relacionados com os parceiros reais (ciúmes, divórcios/separações, violência doméstica), além de serem mais propensos em desenvolver uma adição às ciber-relações sexuais online, sobretudo quando fazem uso diário ou quase diário, via Web-cam, da Internet, com uma multiplicidade de "amigos online".

Além disso, detectámos um outro comportamento: os indivíduos auto-intitulados bissexuais do sexo masculino, muitos dos quais casados heterossexualmente e com filhos, frequentam muitíssimo os chatting eróticos, em busca de parceiros sexuais, com os quais preferem fazer sexo ao fim da tarde, após saírem dos empregos, ou no período do almoço. E, quando não são bem sucedidos por meio da Internet, fazem as suas rondas em certas zonas de "frequência gay" ou dirigem-se às Estações de Serviços, onde facilmente têm encontros sexuais, antes de regressarem a casa, para junto da família. Por conseguinte, os homens gay e bissexuais possuem o seu lovemap preferido: um esquema cognitivo e emotivo que lhes fornece as trajectórias para as suas ideações e acções sexuais predilectas (Money, 1986).

Finalmente, devemos referir dois outros resultados: os adolescentes ou mesmo alguns pré-adolescentes participam muito regularmente na prática de chatting erótico, procurando seduzir indivíduos mais velhos, com os quais desejam fazer sexo. Isto sugere que estes indivíduos muito jovens, que já descobriram a sua verdadeira orientação sexual, desejam ser iniciados nas práticas homossexuais por indivíduos mais velhos, pelos quais sentem uma forte preferência sexual, pelo menos durante a adolescência, independentemente do seu papel sexual preferido. Alguns homens heterossexuais, após contactarem regularmente com outros utentes homossexuais, revelam um forte desejo de experimentar relações sexuais: umas de cibersexo, com ou sem recurso à Web-cam, outras telefónicas e outras ainda offline. Curiosamente, a fluxo de contactos privilegiados observados saturadamente na pesquisa de terreno dos comportamentos homossexuais em lugares públicos foi observada igualmente na ciberpesquisa: os contactos gay entre indivíduos das cidades de Lisboa e do Porto são claramente preferidos, em detrimento dos contactos com indivíduos de outras cidades ou distritos portugueses, e, tal como se verifica nos estudos estrangeiros referidos, os homens usam muito mais a Internet com fins sexuais e uso da pornografia do que as mulheres, incluindo as lésbicas. (Post publicado originariamente Aqui.)
Este blogue "CyberPhilosophy" vai festejar o seu 1º Aniversário no dia 27 de Junho, juntamente com o blogue "CyberCultura e Democracia Online". Por isso, vamos dedicar-lhe mais atenção ao longo deste mês, reeditando posts clássicos.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Antropologia de Helmuth Plessner

«Sem o sopro da vida o corpo humano é um cadáver; sem o pensar o espírito humano está morto.» (Hannah Arendt)
Os posts que tenho editado sobre antropologia filosófica visam, em última análise, destruir toda a história da sociologia "atarefada" e o seu pretenso relativismo, que, quando foi levado a sério, como no caso da ex-URSS ou nos gabinetes de pesquisa administrativa, contribuiu para a liquidação da individualidade e da dignidade da vida humana, como testemunham os erros cometidos pela interpretação "comunista" da teoria de Marx.
Alheios à tradição de Sócrates e, portanto, à tradição do pensamento crítico, os sociólogos "atarefados" atarefam-se em mil e uma actividades rotineiras, sem imaginação, em busca de fama ou de algum prémio, como se essa ambição mesquinha lhes restituísse a dignidade do exercício de pensamento. E o seu Homo sociologicus (Ralf Dahrendorf) mais não é do que um fantoche, manipulado pela má-publicidade (Habermas) e, portanto, destituído de "verdadeiro self" (Rogers) e de pensamento autónomo, figura contra a qual a antropologia filosófica na sua ociosidade criativa elabora a noção de Homo absconditus. Esta é a única figura que faz justiça à afinidade existente entre dialéctica e tragédia que Lucien Goldmann soube captar na sua obra "Le Dieu Caché", retomando os textos do jovem Georg Lukács.
Em 1928, Helmuth Plessner (1892-1985) publicou a sua obra fundamental de antropologia filosófica, "Die Stufen des Organischen und der Mensch", mas, quando regressa à Alemanha após o seu exílio holandês, em 1945, confronta-se com duas obras, a de Heidegger que ilude o aspecto "natural e social" do ser humano, e a de Arnold Gehlen que destaca o seu aspecto biológico. Plessner não se inibe e procura retomar o seu caminho já presente na sua obra anterior "Die Einheit der Sinne" (1923). Para Plessner, o homem não é um animal dotado de um espírito que lhe foi insuflado de fora (concepção quase bíblica), mas um "ser de uma-só-peça" (aus-einem-Guss-Sein), composto pelo biológico-natural e pelo espiritual-cultural, pela physis e pela psyche. Isto equivale a dizer que a condição humana é um corpo animado e um espírito encarnado. Deste modo, Plessner afirma a unidade indissolúvel, sem fissuras, da interioridade (Innen) e da exterioridade (Aussen) do ser humano.
Contra o dualismo platónico, cristão e cartesiano, Plessner elabora o conceito de "posicionalidade" (Positionalität) como categoria unitária dos seres vivos. Isto significa que a posicionalidade é própria dos organismos vivos por oposição ao inorgânico: os organismos vivos mantêm as suas relações com o seu meio e afirmam-nas, enquanto o inorgânico se caracteriza pela sua "a-relacionalidade" com o mundo-circundante.
Com este conceito de posicionalidade, a antropologia de Plessner estuda as estruturas, não como essências ou princípios absolutos, mas na sua relação com as conjunturas ambientais, históricas e emocionais, sempre mutáveis e imprevisíveis. Fundada na relação entre o organismo e o meio, a antropologia de Plessner distancia-se da oposição mantida pela antropologia de Max Scheler entre espírito e vida. Com o homem, a esfera da vida dá um salto radical e alcança um nível distinto do "desenrolar normal" do existente. A identidade humana reconhece-se no seu ser-corpo e também no seu ser-no-corpo. Isto significa que o "eu" pode reconhecer-se plenamente tanto na esfera física como na esfera psíquica.
Por causa da sua "posição excêntrica", portanto, anticartesiana, o homem pode relacionar-se tanto com a dimensão corporal como com a dimensão espiritual, tanto com o mundo externo como com o mundo interno. Isto quer dizer que o homem se tem a si mesmo e é si mesmo, ou seja, pode compreender o seu corpo (Körper) como um objecto qualquer, analisá-lo e compará-lo com outros corpos e objectos, mas também pode identificar-se com o seu corpo (Leib), identificado com o centro das suas sensações, acções e emoções. Ao contrário dos animais, o homem não é somente um corpo, mas tem também um corpo, o que permite a Plessner falar do duplo-aspecto (Doppelaspektivität) do ser humano.
A posição excêntrica em que se encontra o homem permite-lhe descentrar-se, renunciar à sua própria centralidade em relação às coisas e às pessoas do próprio meio, e, quando se distancia de si próprio, o homem pode ver-se a si mesmo e a sua situação no cosmos. Esta distância foi chamada consciência, vista como sinónimo de laceração ou de fractura incurável que se manifesta em todos os momentos da existência humana. A necessidade de ser um corpo no sentido somático e psíquico e a necessidade de ter um corpo no sentido material conduzem a uma fractura irremediável no interior da existência humana. O homem é supostamente essa fractura, o centro da incessante mediação entre o exterior e o interior e, por isso, em todos os momentos da sua existência, deve procurar um equilíbrio, sempre provisório e precário, que é expressão da sua condição utópica, da sua inalcançável fixação de homo absconditus.
A obra "Die Stufen des Organischem und der Mensch" propõe uma teoria dos modelos orgânicos essenciais, chamada "teoria apriorística dos caracteres orgânicos essenciais", onde leva a cabo uma dedução, em sentido kantiano, das categorias e dos princípios a priori de que dependem as características da vida em geral e, muito especialmente, do homem. O centro desta teoria é ocupado pelo princípio de posicionalidade, que permite estabelecer, ao nível ontológico e cognitivo, a diferenciação entre realidade orgânica e realidade inorgânica e entre o mundo animal e o mundo humano. Esta diferenciação posicional entre os diferentes reinos da natureza (vegetal, animal e humano) é entendida como um verdadeiro princípio constitutivo da natureza, mais do que uma mera classificação, da qual se originam os distintos níveis do orgânico, cujo carácter gradual se fundamenta na coesão interna do vivente, na sua capacidade de relação com o mundo externo e na autonomia interior do próprio eu. Nesta "escala posicional", o homem ocupa o vértice, sendo cada uma das escalas autónoma em relação às outras.
1) O primeiro nível da escala é o vegetal. Marcado por uma forma aberta, o organismo vegetal encontra-se englobado numa área concreta, sem poder distinguir-se dela e, deste modo, destacar a sua individualidade. Torna-se impossível distinguir, no mundo vegetal, entre um mundo interno e um mundo externo, porque não há um centro, um si mesmo, que confira consciência ao sujeito. Isto significa que, na ausência de um órgão central, uma planta não é um individuum, mas um dividuum, incapaz de se mover voluntariamente e, por conseguinte, de alcançar a plenitude. A planta permanece para sempre incompleta: é um inacabamento intrínseco.
2) No reino animal, a forma aberta transforma-se em forma fechada, porque as interacções com o meio ocorrem através da mediação de uma estrutura central determinante, que activa a inserção do animal no seu habitat. O animal é um organismo autónomo que reage ao seu ambiente de acordo com os seus próprios impulsos, sensações e instintos. Além disso, o animal é dotado de consciência, porque é capaz de distinguir-se do seu meio e de opor-se ao seu meio. Contudo, apesar de possuir um centro, o animal não possui capacidade reflexiva: «O animal vive no seu centro e retorna a ele, mas não vive como centro» (Plessner), porque, embora saiba conhecer e actuar, o animal não tem consciência dos seus conhecimentos e das suas acções. Isto significa que o animal não tem consciência do que faz, porque ainda não possui um "eu".
3) O homem encontra-se na posição mais elevada da escala do orgânico. Tal como o animal, o homem possui uma forma fechada, mas, ao contrário do animal, é capaz de distanciar-se de si próprio e alcançar a autoconsciência, que constitui o ponto culminante de todo o sistema dos seres vivos. Por causa desta sua capacidade reflexiva, o homem pode distanciar-se voluntariamente do seu centro, o que lhe permite superar a necessidade biológica à qual o animal permanece prisioneiro, dado ser incapaz de ter consciência daquilo que faz. A autoreflexão possibilita ao homem transcender o seu próprio centro biológico e, deste modo, conquistar uma posição excêntrica: «Esta posição de ser centro e, simultaneamente, estar na periferia, merece o nome de excentricidade» (Plessner).
A posição excêntrica do homem manifesta-se através de uma pluralidade de formas e torna-o capaz de interpretar diversas personagens no cenário do grande "teatro do mundo". Como vimos, com o animal passa-se do dividuum, que é típico do vegetal, para o individuum, que é a singularidade garantida pelo centro. Com a sua excentricidade, o homem passa do indivíduo para a pessoa, que é a perfeita realização da excentricidade como autoconsciência. Embora saiba distinguir entre ele mesmo e o seu meio, o animal é incapaz de distinguir entre ele e ele próprio, portanto, não consegue estabelecer uma distância consigo próprio. Ora, o homem constitui-se como tal a partir da autoreflexão, a qual implica uma visão, ponderação e interpretação de si próprio desde um ponto exterior, descentrado e crítico, aquilo a que Plessner chama a sua "posição excêntrica" (exzentrische Positionalität).
Plessner procurou formular uma «doutrina das leis fundamentais ou categorias da vida», com o objectivo de estabelecer lógica e sistematicamente (não em termos evolutivos) as etapas do desenvolvimento dos seres vivos, entre os quais o homem ocupa um lugar privilegiado. Estas leis antropológicas fundamentais são a artificialidade natural, a imediatez mediada e o lugar utópico, as quais explicam como o homem constrói a sua vida a partir da separação originária da "imediatez mediada", expressão que Plessner retoma da dialéctica de Hegel.
1) A primeira lei é a da "artificialidade natural". O homem não vive em contacto imediato com o seu meio, porque é forçado a transformar o mundo natural num mundo artificial. Esta transformação implica a imersão do homem na instabilidade e na perplexidade que o confrontam constantemente com a atitude interrogativa e o desafiam a responder às questões: Que devo fazer?, Como devo viver? ou Como devo solucionar os meus problemas? O homem não pode ser exclusivamente um ser natural, mas é obrigado a produzir instrumentos que lhe permitam transformar o mundo natural e convertê-lo no seu próprio habitat: um mundo artificial, no qual encontra a sua "terra natal", a sua "segunda natureza". Dado ser um "animal carente" (Gehlen), o homem deve suprir com o seu engenho, artificialmente, as suas carências naturais: quer dizer que o homem é naturalmente um "ser artificial" e tudo o que produz (moral, valores e vinculação às normas ideais) é resultado da artificialidade humana. Ao contrário do animal, que se mantém em equilíbrio consigo mesmo e com o meio, o homem é um "coração inquieto": está sempre à procura de equilíbrio, reconciliação, porque não possui um meio natural próprio.
2) A segunda lei é a da "imediatez mediada". O homem vive ao mesmo tempo como organismo animal na imediatez da natureza e como ser excêntrico através da mediação cultural. Na peugada de Hegel, Plessner destaca a importância das mediações na existência humana, as quais são reflexivas, devido à sua posição excêntrica. Ao contrário do animal, o homem é confrontado com uma "imediatez mediada" (Unmittelbarkeit) e uma fractura da imediatez que é própria do animal: o homem deve proceder a constantes transformações do natural, para dar vida ao inexistente, as múltiplas criações artificiais que alcança através das interrogações e dos reptos que lhe coloca a própria existência.
3) A terceira lei é a do "lugar utópico", à qual Plessner dedicou uma obra inteira. Como ser excêntrico, o homem encontra-se constantemente projectado para além de qualquer para além. Isto significa que o homem nunca se sente em casa, nem nas suas objectivações culturais, nem nas suas ordenações sociais, simplesmente porque para o homem não há nenhum lugar fixo no universo. Até a história carece de sentido definitivo. A tese da excentricidade humana é incompatível com toda a posição definitivamente consolidada, colocando o homem à procura constante de novas possibilidades, sempre abertas e, portanto, condenadas a não conseguir fixar a sua posição. Como diz Plessner: «(O homem) está em posição excêntrica esteja onde estiver, e, ao mesmo tempo, não está onde está». (Este post foi originariamente publicado no meu blogue "CyberCultura e Democracia Online" com o título Helmuth Plessner: Conditio Humana.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Hans Jonas: Pensar Deus depois de Auschwitz

Excurso provisório sobre a teologia especulativa de Hans Jonas
Auschwitz foi um acontecimento real e Deus permitiu que esse acontecimento horroroso acontecesse. Poder-se-ia dizer que depois de Auschwitz já não se pode pensar mais em Deus, mas uma tal atitude não nos ilibaria da nossa responsabilidade.
Hans Jonas coloca a questão nestes termos: «Que tipo de Deus poderia permitir isso?»
. A questão colocada nestes termos não visa romper com qualquer tipo de compreensão de Deus e muito menos negar Deus: não é Deus que é posto em questão, mas uma determinada concepção teológica de Deus — aquilo a que Moltmann chamou o «Deus de Parménides»:
«O Deus de Parménides é “pensável” porque é o ser eterno, uno e pleno. Pelo contrário, o que não é, o passado e o futuro, não são “pensáveis” Na contemplação da presente eternidade deste Deus, tornam-se impensáveis — pois não “são” — o que não é, o movimento e a mudança, a história e o futuro. A contemplação deste Deus não permite uma experiência inteligente da história, mas só a sua negação. O logos deste ser liberta e exonera, para o presente eterno, do poder da história»
.
Hans Jonas pensa, talvez demasiado precipitadamente, que, diante desta pergunta, o judeu «está teologicamente numa posição mais difícil que o cristão»
. Dado que espera a verdadeira salvação no mais-além, o cristão encara este mundo como sendo, em grande medida, diabolizado e, por isso, objecto de desconfiança. O pecado original tornou o mundo humano objecto de desconfiança permanente. O judeu, pelo contrário, vê neste mundo o lugar da criação divina, da justiça e da redenção. Daqui resulta que Deus é, em primeiro lugar, o Senhor da História.
Ora, Auschwitz «põe em causa todo o conceito tradicional de Deus»
, na medida em que «acrescenta à história judia algo nunca visto, algo que não se pode abordar com as antigas categorias teológicas». Poder-se-ia abandonar definitivamente o conceito de Deus e, desse modo, por termo à questão, mas Hans Jonas considera mais adequado «pensá-lo novamente para não ter que prescindir dele e buscar uma nova resposta ao velho problema de Job. Por isso, procura «oferecer um fragmento de teologia abertamente especulativa», elaborada a partir da experiência judia. Tal teologia despede-se do conceito de Deus como Senhor da História, aproximando-se, quer queira ou não Jonas, do espírito de toda a teologia cristã.
1. A TEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DE JONAS. Para expor o seu novo conceito de Deus, Hans Jonas recorre a um mito elaborado por ele e que pode ser designado o mito do ser-no-mundo de Deus. Trata-se de uma conjectura figurada mas verosímil, de resto admitida por Platão para a esfera mais elevada do conhecimento. Eis o teor do mito:
«No princípio, por uma escolha não conhecível, o fundo divino do ser decidiu entregar-se à aventura e à infinita diversidade do devir. E fez isso totalmente. Ao integrar-se na aventura do espaço e do tempo, a divindade não reteve nada dela mesma; não permaneceu nenhuma parte inacessível e imune de si para dirigir, corrigir e finalmente garantir desde fora a sinuosa formação do seu destino no mundo do criado. O espírito moderno defende esta imanência incondicional. O seu valor ou o seu desespero, e em todo o caso a sua radical sinceridade, levam-no a tomar a sério o nosso ser-no-mundo, isto é, a entender o mundo como abandonado a si mesmo, as suas leis como fechadas a qualquer intromissão e o rigor da nossa pertença a ele como não atenuado por uma providência extramundana. Isto mesmo afirma o nosso mito do ser-no-mundo de Deus. Mas não no sentido de uma imanência panteísta, porque se Deus e o mundo são simplesmente idênticos, o mundo representa em todo o momento e em qualquer estado a sua plenitude, e Deus não pode nem perder nem ganhar. Ou melhor, para que possa existir o mundo, Deus renuncia ao seu próprio ser; despoja-se da sua divindade para voltar a recebê-la da odisseia do tempo, carregada com a colheita ocasional de experiências temporais imprevisíveis, sublimada ou talvez também desfigurada por elas. Neste abandono de si mesmo da integridade divina a favor do devir incondicional não se pode supor nenhum outro saber prévio salvo o que se refere às possibilidades que o ser cósmico oferece devido às suas próprias condições: Precisamente a estas condições entregou Deus a sua causa quando se alienou a favor do mundo«Durante eões o mundo esteve seguro nas mãos lentas do acaso cósmico e das probabilidades do seu jogo quantitativo, enquanto, simultaneamente, pela circulação da matéria — assim podemos conjecturá-lo — se foi acumulando uma memória paciente. Com o seu aumento cresceu uma esperança intuitiva, com a qual o eterno acompanhou cada vez mais de perto as obras do tempo. Assim se produziu um tardio emergir da transcendência desde a opacidade da imanência.
«E então surgiu a primeira moção de vida, que introduz uma nova linguagem no mundo. Com esta linguagem intensificou-se extremamente o interesse por parte do eterno e produziu-se um súbito salto no crescimento para a recuperação da sua plenitude. Este momento, que estava à espera a divindade em devir, era o acaso universal, e nele, pela primeira vez, a sua pródiga participação mostrou sinais da sua redenção final. Começou uma incessante acumulação de sensações, percepções, aspirações e actuações, que se ia erguendo em formas mais e mais diversas e intensas sobre os mudos redemoinhos da matéria, e desta acumulação a eternidade cobrou força, encheu-se de conteúdos e mais conteúdos de auto-afirmação, até que, no seu despertar, Deus pode dizer pela primeira vez que a Criação era boa.
«Mas é necessário ter presente que a vida trouxe consigo a morte e que a mortalidade era o preço que a nova possibilidade de ser teve de pagar por si mesma. Se a meta tivesse sido a permanência constante, a vida nem sequer deveria ter começado, porque em nenhuma das suas formas possíveis a sua persistência pode medir-se com a dos corpos inorgânicos. Trata-se de um ser essencialmente revogável e destrutível, de uma aventura da mortalidade, que obteve em préstimo as trajectórias finitas dos si-mesmos individuais por parte da matéria duradoura, sob as suas condições e para o curto prazo do organismo metabolizante. Esse breve sentir-se a si mesmo, actuar e sofrer de indivíduos finitos, aos quais só a pressão da finitude outorga toda a intensidade e o frescor do seu sentir, é precisamente o âmbito onde se desenrola a paisagem divina com todo o jogo das suas cores e onde a divindade se experiencia a si mesma...
«É necessário observar também que, na inocência da vida antes da aparição do saber, a causa de Deus não podia falhar. Cada diferenciação de espécies, que a evolução produziu, acrescentou uma nova às possibilidades de sentir e actuar, enriquecendo assim a auto-experiência do fundo divino. Cada dimensão da resposta do mundo, que se abriu no seu transcurso, significou para Deus uma nova modalidade para provar o seu ser encoberto e para se descobrir a si mesmo nas surpresas da aventura universal. E toda a colheita do seu apremiado esforço por devir, seja clara ou obscura, incrementa no mais além o tesouro da eternidade vivida no tempo. Se isso já é certo para o espectro em desenvolvimento da própria diversidade, quanto mais ainda para a crescente alerta e paixão da vida que vai a par com o crescimento da percepção e o movimento no mundo animal. A constante intensificação dos impulsos e do medo, do prazer e da dor, triunfo e miséria, amor e inclusive crueldade — o penetrante da sua própria intensidade e de toda a experiência em geral — é um ganho para o sujeito divino»
.
Deus alienou-se a favor do mundo: desta tese decorre o carácter estrutural da teologia de Hans Jonas. A sua teologia mais não é que uma fenomenologia de Deus e da sua experiência, elaborada em analogia com a Fenomenologia do Espírito de Hegel
.
Deste mito decorrem implicações teológicas sérias, algumas das quais são tratadas por Hans Jonas.
1. A concepção de um Deus sofredor opõe-se directamente à ideia bíblica da majestade divina.
O cristianismo usa constantemente a expressão deus sofredor, mas num sentido diferente daquele em que a emprega Jonas. A sua teologia não fala de um «acto único por meio do qual a divindade pôs uma parte de si mesma numa situação de sofrimento (a encarnação e a crucificação), com a finalidade especial de redimir os seres humanos»
. Deus sofredor tem um sentido mais radical na teologia de Jonas que no cristianismo: «a relação de Deus com o mundo inclui um sofrimento de Deus desde o momento da Criação, e certamente desde o da criação dos seres humanos». O sofrimento das criaturas é evidenciado por qualquer teologia e, como tal está incluído na ideia radical de Jonas de que «Deus sofre com o criado». Embora esta ideia choque com a noção de majestade divina, ela não é completamente alheia à bíblia hebraica. Basta recordar o profeta Oseias e a emotiva queixa amorosa de Deus sobre a sua infiel esposa Israel.
2. A teologia especulativa de Jonas esboça a imagem de um Deus que devém: «É um Deus que surge no tempo em vez de possuir um ser perfeito que permanece eternamente idêntico a si mesmo»
.
Tal ideia de um devir divino contradiz a tradição grega platónico-aristotélica, a qual declara como atributos de Deus a transtemporalidade, a impassibilidade e a imutabilidade. Ao sustentar a contraposição ontológica entre ser e devir, donde o devir é inferior ao ser e característico do mundo corpóreo mais baixo, o pensamento clássico exclui logo à partida a ideia de um devir do ser puro e absoluto da divindade. Ora, segundo Jonas ou mesmo Moltmann, o conceito grego de divindade nunca se coadunou verdadeiramente com o espírito e a linguagem da bíblia. O conceito de um devir divino combina-se talvez melhor com, esse mesmo espírito bíblico.
Mas o que quer dizer que Deus devém? A teologia fenomenológica de Jonas concede a Deus, pelo menos, «tanto “devir” como o que fica patente no mero facto de que fica afectado pelo que acontece no mundo, e “afectado” significa “alterado”, mudado no seu estado»
. Quando decidiu alienar-se no mundo, Deus aceitou submeter-se aos efeitos do devir. Com efeito, «a própria Criação, enquanto acto e existência do seu resultado, significa uma mudança decisiva no estado de Deus, porque com ela deixa de estar só». Além desta mudança, a relação contínua de Deus com o criado, uma vez que existe e se move no fluir do devir, significa precisamente que Ele «experiencia algo com o mundo e que, portanto, o que sucede neste influi no seu próprio ser». Ora, se Deus está em alguma relação com o mundo, como afirma qualquer religião, então «só é assim como o Eterno se tem “temporalizado” e, por meio das realizações do processo universal, se vai modificando progressivamente». Isto aplica-se tanto à simples relação com o saber que o acompanha, como ao interesse.
Deste conceito de Deus em devir deriva uma consequência marginal, que possibilita destruir a ideia do eterno retorno do mesmo. Esta ideia elaborada por Nietzsche opunha-se à metafísica judaico-cristã.
«A ideia de Nietzsche é com efeito, o símbolo mais extremo da viragem para a temporalidade e a imanência incondicional, longe de qualquer transcendência que pudesse conservar uma memória eterna do que perece no tempo. A sua ideia é que, pelo simples esgotamento das permutações possíveis na repartição de elementos materiais, deve voltar a estabelecer-se uma configuração «originária» do cosmos, com a qual tudo volta a começar de idêntica maneira; e se uma vez, então também incontáveis vezes, como Nietzsche o exprime na metáfora do “anel dos anéis, o anel do eterno retorno”»
.
Ora, se a eternidade não é imune ao que acontece no tempo, não pode haver um retorno do mesmo, uma vez que «Deus não é o mesmo depois de ter atravessado a experiência de um processo universal. Cada mundo novo terá incluído na sua própria herança a recordação do precedente ou, por outras palavras: não haverá uma eternidade indiferente e morta, mas uma eternidade que cresce com a colheita temporal que se vai acumulando»
.
3. Os conceitos de um Deus sofredor e em devir estão intimamente relacionados com o conceito de um Deus que está preocupado.
A preocupação — o cuidado — não é uma estrutura característica exclusivamente do Dasein, como queria fazer crer Heidegger. Também Deus está preocupado, embora não seja ontologicamente um ser-para-a-morte
. Um Deus preocupado «não está distante, separado e fechado em si mesmo, mas envolvido naquilo pelo qual se preocupa».
Independentemente daquilo que tenha sido o seu estado «originário», Deus deixou de ser fechado em si mesmo «no momento em que entrou em relação com a existência do mundo, criando este mundo ou permitindo o seu aparecimento»
.
É certo que o judaísmo sempre esteve familiarizado com este facto de que Deus se preocupa pelas suas criaturas, mas a teologia de Jonas acentua o aspecto menos familiar da preocupação divina: «Deus cuidador não é nenhum mago que no acto mesmo de se preocupar já resolva o que é motivo da sua preocupação»
. Ao alienar-se no mundo, Deus deixou algo a fazer pelos outros actores e, ao proceder assim, permitiu que aquilo que O preocupa esteja nas mãos dos outros.
4. Daqui decorre que Deus é também um «Deus ameaçado, um Deus com um risco próprio»
. Este conceito de Deus ameaçado merece ser destacado. Desde Gehlen e outros antropólogos de orientação bio-filosófica, sabemos que o homem, devido à ausência de adaptações filogenéticas que lhe doem um mundo, é um ser em risco. A teologia de Jonas «humaniza» de tal modo a divindade que até mesmo Deus é encarado como um ser em risco permanente. Ao alienar-se no mundo, Deus entregou-se completamente ao devir mundano, correndo um risco próprio. Deus entregou-se, num acto de dádiva pura, ao destino da história universal.
Deus é um Deus ameaçado, «porque de outro modo o mundo se acharia num estado de permanente perfeição»
. Ora, basta abrir os olhos para ver que o mundo está longe da perfeição. O mundo actual é miséria. Tal facto «só pode significar uma de duas coisas: ou bem que não existe Um Deus (ainda que talvez mais de um), ou que este Um (uno) deixou algo distinto de si mesmo, algo criado por ele, um espaço de acção e um direito de co-decisão para o que é motivo da sua preocupação». O mundo humano, mais do que qualquer outro aspecto da criação, é verdadeiramente o motivo da preocupação de Deus: o homem ameaça directamente Deus com a sua crueldade manifestada ao longo da história. Ora, se existe Um Deus, este é um Deus cuidador e, por conseguinte, não é «um mago», isto é, um Deus que intervenha milagrosamente na história sempre que o homem se afasta do seu caminho. «De qualquer maneira, por um acto de sabedoria insondável ou de amor ou qualquer outro motivo divino, [Deus] renunciou a garantir a satisfação de si mesmo pelo seu próprio poder, e fê-lo depois de já ter renunciado por meio da Criação mesma a ser o todo do todo».
A renúncia de Deus só pode ser um acto de amor pleno, como de resto acentua o cristianismo.
5. Daqui decorre aquilo a que Jonas chama o «ponto mais crítico [da sua] aventura teológica especulativa: Não é um Deus omnipotente!»
. Ao criar o mundo, Deus abdicou da sua omnipotência, entregando-se ao devir. Jonas é peremptório: «Sustento, com efeito, que, em virtude da nossa imagem de Deus e de toda a nossa relação com o divino, não podemos manter já a doutrina tradicional (medieval) de um poder divino absoluto e ilimitado». Esta é, sem dúvida, a tese fundamental desenvolvida pela teologia especulativa de Hans Jonas: Deus não é omnipotente, como afirmava de forma enfática Santo Agostinho.
Jonas justifica esta tese a dois níveis: ao nível lógico e ontológico e ao nível religioso.
Ao nível lógico, Jonas articula «o paradoxo que se encontra no próprio conceito de poder absoluto»
. De acordo com Jonas, do simples conceito de poder decorre que «a omnipotência é um conceito contraditório em si [mesmo], que se anula a si mesmo e que resulta absurdo». Tal oxímero é explicitado através da comparação do poder absoluto com a liberdade absoluto humana:
«[A liberdade não] começa onde acaba a necessidade, [tal como defenderam tanto Hegel como Marx], a liberdade consiste e vive no medir-se com a necessidade. O mesmo vale também para o poder, que seria vazio se fosse absoluto e único. Poder absoluto e total significa um poder que não está limitado por nada, nem sequer pela existência de algo outro em geral, algo fora dele mesmo e distinto dele. Porque a mera existência de algo outro representaria já uma limitação, e o poder único deveria aniquilá-lo para conservar o seu carácter absoluto. Então o poder absoluto, na sua solidão, não teria nenhum objecto sobre o que pudesse exercer o seu efeito, mas como poder sem objecto, um poder é impotente e anula-se a si mesmo. «Omni» equivale aqui a «zero». Para que possa actuar, tem que haver algo outro e tão pronto como aparece, o uno já não é omnipotente, embora o seu poder pudesse ser indefinidamente superior em qualquer comparação. A existência tolerada de outro objecto limita por si mesma o poder da mais poderosa força eficiente enquanto condição da sua possibilidade de actuar, isto é, pelo facto de lhe permitir assim que seja uma força eficiente. Em suma, «poder» é um conceito relacional que requer uma relação pluripolar. Mas inclusivamente então um poder, que não encontra nenhuma resistência no outro da sua relação, é igual que nenhum poder em absoluto. Um poder só pode entrar em acção em relação com algo que também tem poder. Se não quer ser ocioso, o poder consiste na capacidade de superar algo, e a coexistência com algo é como tal suficiente para que se cumpra esta condição. A existência significa resistência e, portanto, é uma força que actua contra algo. O mesmo que na física uma força sem resistência, isto é, sem uma força contrária, permanece vazia, também o será na metafísica um poder sem contrapoder, por desigual que este pudesse ser. Aquilo sobre o que o poder actua deve Ter por si mesmo um poder, ainda que este viesse do primeiro e originariamente lhe tivesse sido concedido juntamente com a sua existência por meio de uma renúncia a si mesmo do poder ilimitado, ou seja, por meio do acto da Criação. Em resumo, não é possível que todo o poder esteja só do lado de um sujeito efectuante único. O poder deve estar compartilhado para que possa existir poder em geral»
.
Depois de ter apresentado a objecção lógico-ontológica à noção de poder absoluto, Jonas apresenta uma outra objecção, desta vez teológica e autenticamente religiosa:«A omnipotência divina só pode coexistir com a bondade divina ao preço da absoluta insondabilidade de Deus, isto é, do seu carácter enigmático. Ante a existência do mal ou inclusivamente só da miséria no mundo, deveríamos sacrificar a compreensibilidade de Deus à relação dos outros dois atributos. Só de um Deus de todo incompreensível se pode dizer que, ao mesmo tempo, é absolutamente bom e omnipotente e que tolera, sem dúvida, o mundo tal como é. Dito de maneira mais geral, os três atributos em questão — bondade absoluta, omnipotência e compreensibilidade — estão numa relação tal que qualquer conexão de dois deles exclui o terceiro»
.
Na economia geral dos três atributos geralmente atribuídos a Deus, só se podem ligar os atributos dois a dois, com a exclusão de um terceiro. Se ligarmos a omnipotência com a bondade divina, teremos de encarar Deus como um ser insondável, isto é, incompreensível. É preciso ceder um desses atributos para conservar uma concepção integral de Deus.
«A bondade, isto é, o querer o bem, é certamente inseparável do nosso conceito de Deus e não pode ser restringida. A compreensibilidade ou cognoscibilidade está duplamente condicionada: pela essência de Deus e pelas limitações do ser humano, e, em última instância, está sujeita à limitação, mas sob nenhuma condição pode ser totalmente negada»
.
A concepção de Deus elaborada por Jonas abdica da omnipotência divina a favor da ideia de Deus como um ser Bom e, de certo modo, cognoscível. Negar a compreensibilidade de Deus, além de atentar contra a revelação, equivale a defender um Deus oculto. Ora, «o Deus abconditus, o Deus oculto (para não falar do Deus absurdo) é uma ideia profundamente alheia à fé judia»
. Segundo Jonas, a Tora baseia-se e insiste em que «podemos entender a Deus, naturalmente não do todo, mas algo dele, da sua vontade, das suas intenções e inclusivamente da sua essência, porque se nos deu a conhecer. A revelação teve lugar, possuímos os seus mandamentos e leis e a alguns — os seus profetas — comunicou-se directamente, usando-os como a sua boca para todos, que fala na língua dos seres humanos e do tempo, isto é, balbuciando pelas limitações dos meios, mas sem se manter num secreto obscuro. Um Deus completamente oculto e incompreensível é um conceito inaceitável segundo a norma judia».
Se associarmos à bondade divina à sua pertença omnipotência, obtemos igualmente um Deus oculto, mais precisamente um Deus obscuro. Ora, é precisamente essa concepção de Deus que é problematizada pela experiência de Auschwitz:
«Depois de Auschwitz podemos dizer, mais decididamente do que nunca, que uma divindade omnipotente ou não seria infinitamente boa ou então totalmente incompreensível (no seu domínio sobre o mundo, que é donde só podemos compreendê-la). Mas, se Deus tem de ser compreensível de certo modo e até certo grau (e devemos sustentar isso), então o seu ser-bom deve ser compatível com a existência do mal e só pode sê-lo se não é omni-potente. Só desta maneira podemos continuar a sustentar que é compreensível e bom e que, sem dúvida, existe o mal no mundo. E, dado que já vimos que o conceito da omnipotência é em si mesmo duvidoso, é este o atributo de que temos de prescindir»
.
O argumento de Jonas em torno da omnipotência permite-lhe estabelecer o princípio, «para qualquer teologia que esteja em continuidade com a herança judia, de que há que considerar o poder de Deus como limitado por algo cuja existência por direito próprio e cujo poder de actuar por autoridade própria são reconhecidos por Deus mesmo»
.
A limitação do poder de Deus poderia ser interpretada como uma mera concessão por parte de Deus, «a que ele pode revogar quando o deseja, isto é, como a retenção de um poder irrestrito que possui, mas que, em virtude do direito próprio do criado, só usa de maneira limitada. Mas isto não seria suficiente, porque ante os tormentos realmente e absolutamente monstruosos que uns seres humanos infringem a outros inocentes de maneira unilateral — tratando-se sempre da espécie criada segundo a imagem de Deus —, se deveris poder esperar que o bom Deus rompesse de vez a própria regra da extrema discrição do seu poder e que interviesse com um milagre de salvação. Mas não ocorreu nenhum milagre de salvação. Durante os anos das atrocidades de Auschwitz, Deus permaneceu em silêncio. Os milagres que se produziram só eram obra de seres humanos (...)»
.
Enquanto alguns homens justos, cuja memória não deve ser abandonada ao esquecimento dos arquivos, não se recusavam a sacrificar a sua vida para salvar os inocentes, «Deus permaneceu em silêncio». Mas este silêncio não pode ser compreendido como desinteresse e muito menos como cumplicidade: Deus não interveio, não porque não quis, «mas porque não pôde»
intervir.
É, por isso, que Jonas propõe «a ideia de um Deus, que durante um tempo — o tempo do processo universal em progresso — renunciou a todo o seu poder de imiscuir-se no curso das coisas do mundo; que não contestou o choque do acontecer terreno contra o seu próprio ser com «a mão forte e o braço estendido», como recitam os judeus cada ano comemorando o êxodo do Egipto, mas com a intensidade da sua muda solicitação a favor da sua meta incumprida»
.
Jonas reconhece que a sua teologia especulativa se distancia substancialmente da mais antiga doutrina judia. Algumas das treze doutrinas de fé formuladas por Maimónides, nomeadamente os enunciados sobre o poder supremo de Deus sobre a Criação, os enunciados que afirmam que Deus recompensa os bons e castiga os maus ou mesmo os enunciados que insistem na chegada futura do Messias prometido, que se cantam no serviço religioso judeu, tornam-se caducos a partir do momento em que não se pode falar já da «mão forte» de Deus. Contudo, dado que «a impotência de Deus só se refere ao físico»
, os enunciados que falam do chamamento das almas, da inspiração dos profetas e da Tora, a ideia de eleição, a ideia de um único Deus e o chamamento «escuta Israel!», continuam a ser válidos na perspectiva teológica de Jonas.
A teologia de Jonas abdica do dualismo maniqueísta para explicar o Mal. Este «só surge nos corações humanos e ganha poder no mundo. Na mera admissão da liberdade humana encontra-se implícita uma renúncia ao poder divino»
. A negação da omnipotência divina deixa teoricamente aberta a escolha entre um dualismo originário — teológico ou ontológico — e a autolimitação do Deus único por meio da sua Criação desde o nada. De acordo com Jonas, o dualismo pode adoptar duas formas: a maniqueísta e a platónica.
O dualismo maniqueísta defende a existência de uma força do mal activa que, desde o princípio, actua em todas as coisas contra o propósito divino. Desta posição resulta uma teologia de dois deuses, a qual é inaceitável não só para o judaísmo, como afirma Jonas, mas sobretudo para o cristianismo. A ideia de um único Deus está acima de qualquer problematização.
O dualismo platónico afirma a existência de um meio passivo que, de uma maneira igualmente universal, permite somente a materialização imperfeita do ideal no mundo. Daqui decorre uma ontologia da forma e da matéria. Mas uma tal ontologia só pode responder, no melhor dos casos, ao problema da imperfeição e da necessidade na natureza, deixando sem resposta o problema do mal activo que implica uma liberdade com autoridade própria, inclusivamente frente ao seu Criador.
Ora, a questão teológica actualmente pertinente é precisamente «o facto e o êxito do mal por vontade, muito mais que as pragas da cega causalidade natural: Auschwitz e não o terramoto de Lisboa», que tanto preocupou Leibnitz ou Voltaire. Como escreve Jonas: «Só com a Criação desde o nada temos a unidade do princípio divino juntamente com a sua autolimitação, que deixa espaço à existência e à autonomia do mundo. A Criação foi o acto da soberania absoluta, com o qual esta manifestou a sua vontade de deixar de ser absoluta em função da existência de uma finitude que se pode autodeterminar. Trata-se, portanto, de um acto de auto-alienação divina»
.
Jonas recorda a corrente subterrânea da cabala judaica, estudada por Gershom Scholem, para mostrar que a tradição judia é menos ortodoxa em questões de soberania divina do que pretende a doutrina oficial. Com efeito, a cabala conhece um destino de Deus, ao qual este se submeteu aquando do devir do mundo. Daí que Jonas diga que o seu mito só radicaliza «a ideia do zimzum, este conceito central da cabala luriana. Zimzum significa contracção, retirada, autolimitação. Para dar espaço ao mundo, o En-Ssof do começo, o Infinito, teve de recolher-se em si mesmo para fazer surgir o vazio no e do qual pôde criar o mundo. Sem este recolher-se em si mesmo não poderia existir nada mais ao lado de Deus, e só o seu continuado limitar-se preservou as coisas finitas de perder o seu ser próprio novamente no «todo dentro do todo» divino»
. Jonas vai ainda mais longe quando sublinha que «a contracção é total, o infinito na sua totalidade e poder alienou-se no finito, entregando-se [inteiramente] a ele».
Coloca-se agora a questão de saber se uma tal concepção da auto-alienação de Deus no mundo finito deixa algum lugar para uma relação com Deus. Em termos mais radicais, devemos colocar a questão: Um Deus autolimitado pode ser objecto de adoração? A resposta de Jonas é longa, mas compacta:
«Renunciando à sua própria invulnerabilidade, o eterno fundo do mundo permitiu a este que existisse. Todas as criaturas devem a sua existência a esta autonegação e receberam graças a ela tudo o que havia a receber do mais além. Uma vez que se entregou por completo ao mundo e a seu devir, Deus já não tem nada a dar. Agora cabe ao ser humano dar o seu a Deus. E pode fazê-lo procurando, nos caminhos da sua vida, que não se converta em motivo para que Deus se arrependa de haver permitido o devir do mundo. Isto poderia ser talvez o segredo dos desconhecidos «trinta e seis justos», que, segundo o ensinamento judeu, não devem faltar nunca para que o mundo possa continuar a existir; a eles podem ter pertencido no nosso tempo alguns dos mencionados «justos entre os povos». O segredo seria, pois, que graças à superioridade do bem sobre o mal, que podemos supor para a lógica não causal das coisas do mais além, a sua santidade oculta é capaz de redimir uma culpa infinita, de saldar a conta de uma geração e de salvar a paz do reino invisível»
.
No fundo, a teologia especulativa de Jonas procura dar uma resposta ao problema de Job, mas a resposta que dá é contrária à do Livro de Job. Enquanto Job apela à plenitude do poder do Deus criador, Jonas apela à sua renúncia ao poder. Apesar dessa diferença, as duas respostas são elogiosas, «porque a renúncia ocorreu para que possamos existir»
e até mesmo na resposta de Job Deus sofre.Ao alienar-se completa e inteiramente no mundo e no seu devir, Deus colocou o homem diante da responsabilidade de zelar pelo seu destino certo. Somos responsáveis quer diante Deus, quer diante dos outros e de todas as coisas criadas. Cabe ao homem a responsabilidade de redimir e de salvar o mundo, vencendo o mal. Na memória infinita de Deus tudo é conservado, tanto o que já não existe quanto o que ainda não existiu. A memória de Deus aguarda que o homem cumpra o prometido. A teologia de Jonas exige uma ética da responsabilidade. Aliás, fundamenta uma tal ética.
2. DEUS: MEMÓRIA E SOFRIMENTO. Deus como infinita memória que guarda cada detalhe da vida das suas criaturas é uma concepção que pode ser comparada com o mito das punições eternas de Platão e, em ambos os casos, os seres vivos serão confrontados com essa memória infinita que os julgará para sempre. Em Platão, encontra-se aqui um fundamento da vida política da Polis. Aos justos resta-lhes a benaventurança eterna. Numa civilização dada ao prazer imediato e embrutecedor, o pragmatismo recomenda a recuperação da dor, porquanto esta ensina a viver a vida de modo disciplinado e responsável. O hedonismo é inimigo da democracia.
3. IMPLICAÇÕES PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ. É certo que Jonas tende a elaborar uma teologia no âmbito da tradição judaica, mas um tal empreendimento neglicencia uma outra tradição mais vasta, da qual o judaísmo faz parte, a menos que os judeus pretendam ser um povo privilegiado e, nesse caso, devem ser abandonados à sua sorte: referimo-nos ao Ocidente como civilização. A Filosofia como guardiã dessa grande tradição greco-romana mantém a sua pretensão à universalidade, reforçada pela mensagem cristã. O Deus de Moisés, de Abraão e de Jacob é o mesmo Deus de Cristo e de todos os seres humanos. O judaísmo só faz sentido quando dissolvido no cristianismo: fora desta matriz universal o judaísmo corre o risco de ser encarado como uma seita sectária cujo destino é governado pelas leis do conflito religioso.
Daqui resulta que a Trindade de Deus só pode ser pensada em devir: Deus Pai no seu estado originário decide arriscar-se e cria o Filho. Aqui começa a odisseia de Deus alienado no mundo, do qual só se pode libertar quando o homem vencer o próprio mal: o Espírito Santo é a comunidade santa de Deus com a sua criação recuperada. Mas Deus é o ser em risco e, a menos que tenha eleito alguma assembleia, como supõe a mística judaica, pode correr o risco derradeira de perder o mundo para Si e perder-se a Si mesmo. Não há Igreja que possa recuperar Deus: somente os homens o podem fazer. Mas o Deus que queremos salvar já não é objecto da teologia, porque Deus não é epistemologicamente objecto. Este facto é escamoteado por muitas teologias que reificam «deus», tal como os judeus adoraram o bezerro de ouro no deserto.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Cidade e Ecologia Social dos Comportamentos Gay

À memória da minha mãe, Celeste dos Anjos Saraiva de Sousa

À memória do meu orientador de doutoramento, Professor Doutor Custódio Rodrigues




O estudo de sócio-ecologia dos comportamentos dos homens homossexuais confronta-se com um único problema, o qual orienta toda a existência do homem e até mesmo da mulher homossexuais: Como e onde procurar novos parceiros sexuais? Os próprios indivíduos homossexuais têm, de certo modo, consciência desse problema, porquanto são os primeiros a elaborar e divulgar roteiros gay, que fornecem informação pormenorizada sobre os chamados «lugares de engate». Este facto revela que a possibilidade de haver um encontro sexual constitui uma característica estável e normal da interacção que ocorre onde quer que se reunam os homens homossexuais, quaisquer que sejam o lugar, o momento, a cidade, o país e as pessoas. Em grande medida, a vida do homem homossexual «activo» gira em torno desses lugares públicos, aos quais chamámos na peugada de Delph (1978) «oásis erótico», uma vez que vive em constante busca de novos parceiros sexuais. Todos os indivíduos observados ao longo do tempo, independentemente de serem homens ou mulheres, homossexuais ou pseudo-heterossexuais ou de terem relações estáveis ou não, exibem em maior ou menor grau comportamentos sexualmente promíscuos. Este facto é incontornável e pode ser evidenciado mediante a explicitação da estrutura e da dinâmica da comunidade gay portuguesa.
Os resultados deste estudo intensivo de campo são congruentes com os resultados obtidos por diversos estudos que usaram uma metodologia idêntica, em particular os estudos de Hooker (1967), Hoffman (1970), Humphreys (1970) e Delph (1978).
Na apresentação sucinta dos resultados deste estudo lançámos novos conceitos, nomeadamente os de banalização, ubiquidade e efeito homossexuais, com o objectivo de mostrar que as estimativas apresentadas substimam a incidência de comportamento homossexual na população portuguesa. As noites portuguesas fervilham de actividades homossexuais que ocorrem nos mais diversos lugares e circuitos que constituem o oásis erótico gay português, levando-nos a estimar que muito mais de 10% da população portuguesa exibe frequentemente comportamentos homossexuais. Aliás, quando integram os bissexuais na sua comunidade, os próprios homossexuais reconhecem que eles também são predominantemente homossexuais não-assumidos, com os quais fazem sexo regularmente.
O conceito de oásis erótico, forjado por Delph (1978) e usado para designar um lugar considerado física e socialmente seguro, em função dos padrões definidos pela subcultura gay, de ameaças exteriores, onde os seus frequentadores se reúnem para estabelecer interacções sexuais mutuamente desejadas, pode incluir tanto lugares públicos como lugares privados. Alguns desses lugares são negócios comercialmente explorados, tais como saunas, ginásios, sexy-shops, restaurantes, unidades hoteleiras, parques de campismo, bares e discotecas homossexuais, enquanto outros são lugares cooptados ou usurpados pelos homens homossexuais, para propósitos sexuais, tais como sanitários, parques públicos, praias, praças, avenidas, ruas, estações de serviço, terminais rodoviários e ferroviários, descampados e matas e tantas outras áreas públicas. Estes lugares são, portanto, duas variantes básicas de oásis eróticos. Alguns oásis eróticos são lugares públicos usurpados para actividades sexuais. Outros são lugares subculturalmente designados para sexo e encorajam abertamente o sexo.
A aplicação deste conceito ao estudo da comunidade gay portuguesa foi feita com base na teoria matemática dos grafos, na sociometria e na própria perspectiva dos homossexuais portugueses. Como vimos no estudo dois, estes utilizam a palavra «ambientes» para designar os diversos lugares públicos que constituem o seu oásis erótico. Cada «ambiente» ou circuito tem os seus frequentadores habituais e, em função do tipo de lugar e das actividades que nele ocorrem e que são subculturalmente incentivadas, podemos traçar o perfil desses utentes habituais e definir o seu estilo de vida.
A estrutura conceptual mais adequada para captar a comunidade gay é a noção de rede (Elizabeth Both, 1976). Ao examinarmos de perto o ambiente imediato dos homens e das mulheres homossexuais, isto é, os seus relacionamentos reais externos com pessoas e lugares, constatámos a existência de dois padrões: 1) os relacionamentos sociais externos dos homossexuais e bissexuais assumem muito mais a forma de uma rede do que de um grupo organizado, e, embora os homens homossexuais pertençam muito mais a redes do que a grupos, 2) existem consideráveis variações na conectividade das suas redes. A conectividade ou intensidade indica a extensão em que as pessoas conhecidas por um indivíduo se conhecem e se encontram umas com as outras, independentemente do indivíduo. Destacam-se basicamente dois graus relativos de conectividade que não devem ser vistos como polaridades opostas: a rede de «malha estreita» que é usada para descrever uma rede na qual existem muitas relações diversificadas entre as unidades componentes, e a rede de «malha frouxa» que é usada para descrever uma rede na qual existem poucos relacionamentos deste tipo. Embora existam organizações gay em Portugal, elas têm pouco impacto e adesão na comunidade gay portuguesa, já que esta comunidade tende a ser uma rede virtual de lugares de engate e de potenciais parceiros e contactos sexuais.
Assim, um «ambiente» nada mais é do que um lugar público que propicia e incentiva encontros homossexuais e vários «ambientes» podem estar fortemente conectados entre si de modo a formar um circuito gay. Um circuito homossexual é um conjunto interligado de espaços e de fenómenos que se sucedem regular e periodicamente ou, mais precisamente, um conjunto de hábitos e de movimentos que caracteriza a rotina quotidiana de um grupo de homossexuais ou mesmo de um único homem homossexual. Há tantos circuitos homossexuais quantos os grupos ou tipos homossexuais, mas, regra geral, existem padrões que permitem tipificar os circuitos mais comuns, embora esses possam variar em função do tempo, do espaço e das «modas». Levando em conta apenas dois critérios – a assunção da homossexualidade e o tipo de convívio ou relações sociais estabelecidas, podemos distinguir dois tipos fundamentais de circuitos: os circuitos gay de sexo anónimo (CGSA), frequentados regularmente e predominantemente por homens homossexuais que tendem a não assumir-se como homossexuais e cujo objectivo exclusivo é a prática de actividades sexuais, em detrimento do convívio social, e os circuitos gay de convívio sócio-sexual (CGCS), frequentados regularmente por homens e mulheres homossexuais que se assumem como tais e que, além do sexo, estão envolvidos em encontros sociais.
Os roteiros tão difundidos na comunidade gay visam difundir o conhecimento desses lugares de engate, onde qualquer homossexual pode encontrar facilmente e sem dificuldades parceiros sexuais. Qualquer revista, nacional, internacional ou estrangeira, e site gay fornece esses roteiros, que são frequentemente transmitidos oralmente durante as breves conversações que ocorrem nos encontros sexuais. Em termos geográficos, a comunidade gay portuguesa pode ser reduzida a um roteiro nacional de «lugares de engate», que são regularmente frequentados pelos homossexuais em busca de parceiros e experiências sexuais e escolhidos em função dos seus interesses e perfil psicológico. Cada um adopta o seu roteiro, em função das suas necessidades, interesses e perfil psicológico.
Os homens homossexuais frequentam regularmente esses lugares, com o propósito de procurar novos parceiros sexuais. O que mais impressiona nas abordagens homossexuais é o facto da conversação ser mínima e das interacções estarem concebidas e baseadas na perseguição de objectivos individuais e não sociais, apesar de certos «ambientes» serem concebidos como espaços de convívio social. Assim, a comunicação é primordialmente de natureza não-verbal. Os homens homossexuais comunicam com os seus olhares, gestos, linguagem corporal e toques e, só posteriormente, ocorrem ocasionais e breves declarações verbais. Estas observações mostram que a rede gay tende a ser mais uma rede de contactos sexuais do que uma rede social e, que, à medida em que nos afastamos do circuito cafés/bares/discotecas, a rede tende a ser mais frouxa em termos de conectividade social.
Ao destacarmos o «convívio social», verificamos rapidamente que os circuitos que integram e interconectam cafés, bares e discotecas gay são os que possibilitam um maior convívio social entre os homossexuais e os seus frequentadores habituais tendem a optar por um estilo de vida mais homosocial e tendencialmente com menor número de episódios de «sexo anónimo». Embora se observe variação frequente de parceiros sexuais, esta tende a ocorrer com parceiros conhecidos ou amigos e as ligações que se estabelecem, breves ou prolongadas, são mais personalizadas. Os circuitos que ligam cafés, bares e discotecas gay são redes de malha estreita, frequentados assuiduamente por homossexuais hiperefeminados, emergentes e muitos masculinizados que assumem mais saudavelmente a sua identidade gay e que, nesses espaços, convivem mais estreitamente entre si e com outros grupos sócio-sexuais, tais como lésbicas, travestis, transgéneros e transexuais, bem como com muitos heterossexuais que frequentam os «ambientes». Embora se observem manifestações afectivas entre os seus utentes, as actividades sexuais não são incentivadas nestes lugares públicos, ficando pontualmente restringidas ou a «quartos escuros», quando existem, ou a espaços intersticiais, tais como os sanitários. São, pois, oásis eróticos mais discretos.
Ora, os restantes circuitos e os mais abundantes abrangem lugares nos quais as actividades sexuais são incentivadas, em detrimento do convívio social e, nestes lugares, observa-se fundamentalmente «sexo anónimo», com múltiplos parceiros consecutivos ou em simultâneo. Como dizem alguns homossexuais: os seus frequentadores são «homens de poucas falas e muito sexo» e, geralmente, não assumem abertamente a sua homossexualidade, alegando serem bissexuais. Estes circuitos de malha frouxa não são frequentados por mulheres lésbicas.
Pela frequência habitual destes dois tipos básicos de circuitos gay, podemos referir dois estilos de vida sexualmente promíscuos: um mais anónimo e predatório, centrado nos circuitos gay do sexo casual e anónimo, e outro mais personalizado, centrado nos circuitos gay de convívio sócio-sexual. No entanto, existem omnívoros de todos os circuitos gay: são os vagabundos sexuais, casados ou solteiros, que frequentam diariamente e em regime pós-laboral todos os lugares públicos de engate, visando apenas encontros casuais e anónimos.
Matematicamente, um circuito é um conjunto de pontos fixos interligados por vias preferenciais. Os pontos fixos correspondem aos lugares públicos frequentados assiduamente pelos homossexuais e as vias são os trajectos que os ligam. Se os pontos, num determinado período de tempo, permanecem fixos, os trajectos variam constantemente, em função das necessidades e dos interesses pessoais. Ora, o conhecimento aprofundado, minucioso e actualizado dos circuitos gay, constantemente actualizado pelos roteiros gay, impressos ou electrónicos, é fundamental para todo o homem homossexual que se auto-reduz à sua dimensão estritamente sexual, na medida em que possibilita e garante novos encontros sexuais. De certo modo, um circuito homossexual é, em grande medida, um percurso que um homossexual ou grupo de homossexuais percorre, noite após noite, à procura de novas aventuras sexuais. Se o homossexual iniciante não souber resistir às forças gravitacionais ou centrípetas dos circuitos gay, acabará por assimilar o «esquema gay» e, uma vez aí instalado, corre o risco de ser completamente absorvido pela rede gay. Neste último caso, toda a sua vida individual desvanece-se: a sua individualidade é eclipsada e anulada pelos «efeitos de manada» provenientes da rede. A rede homossexual é uma estrutura altamente ultracongelada e reificada: nela o indivíduo perde a sua individualidade e assume-se como mais uma peça da maquinaria homossexual. A rede homossexual tem, pois, um carácter totalitário: as individualidades são fragilizadas a favor da integração total. Os seus imperativos são superiores aos imperativos individuais, familiares, sociais, culturais, sentimentais ou mesmo profissionais. Reduzido a um instrumento sexual, o homossexual comporta-se como tal, deixando para trás todas as outras dimensões vitais e entregando-se exclusivamente — a tempo inteiro — à busca frenética de novos orgasmos, de preferência cada vez mais inusitados, estranhos e anónimos. Até mesmo aqueles homossexuais que procuram salvaguardar a sua autonomia, evitando contactos com membros da rede homossexual institucionalizada, denominada «ralé gay», não são geralmente bem sucedidos, uma vez que o esquema em que estão inseridos acaba por se cristalizar numa rede que é tão reificadora quanto a rede predominante que criticavam. As forças de inércia da rede são mais poderosas que as vontades individuais já, por si mesmas, fragilizadas pela apetência sexual incontrolável que os domina desde dentro. É, por isso, que alguns deles abandonam os seus empregos sempre que surge a oportunidade de novos encontros sexuais. Como ser unidimensional, o homossexual só vive para o sexo: o seu estilo de vida fetichista sexual é a consumação da reificação homossexual.
Os homossexuais reconhecem, sem disso se aperceberem completamente, que a uniformidade é mais real que a suposta diferença que ousam reclamar. Isto significa que praticamente todos os homossexuais observados, até mesmo os homossexuais activistas, partilham com os demais o mesmo esquema homossexual. Ora, este esquema mais não é que um conjunto de dispositivos e de conhecimentos que facilitam a procura frenética e compulsiva de novos orgasmos. É, portanto, em torno dessa procura de novos parceiros sexuais ou da sua possibilidade, que gira toda a vida do homossexual, ao ponto de podermos dizer que homossexualidade e promiscuidade sexual são praticamente a mesma coisa. Como vimos no estudo anterior, esta quase identificação é reconhecida pelos próprios homossexuais, que, além de serem fazedores de roteiros do prazer, elaboram «teorias» emic que visam justificar e legitimar o seu estilo de vida sexualmente promíscuo.
Se definirmos o estilo de vida como um conjunto de práticas que um indivíduo adopta para satisfazer as suas necessidades e dar forma a uma narrativa particular de auto-identidade, constatamos facilmente que o estilo de vida do homossexual típico consiste em frequentar determinados lugares públicos e usar sexualmente as novas tecnologias da informação e da comunicação, tais como telemóveis e a comunicação mediada por computador, para arranjar novos parceiros sexuais — um estilo de vida sexualmente promíscuo. Três noções emic, utilizadas pelos próprios homossexuais, definem sucintamente este estilo de vida: «esquemas» (busca de novos parceiros sexuais), circuitos (lugares de engate frequentados) e «rede» (complexo de relações que solidificam a rotina gay). Os esquemas, os circuitos e as redes favorecem a procura homossexual de novos orgasmos em determinados lugares públicos e, ao possibilitar a sua concretização, reforçam-se e estabilizam-se, mesmo que ocorram mudanças de lugares.
Ora, dado que os comportamentos sexualmente promíscuos são factores antropológicos na transmissão da Sida e doutras doenças sexualmente transmissíveis, torna-se evidente que todas essas estruturas comportamentais cristalizadas facilitam a sua transmissão e a sua expansão no seio da comunidade homossexual, bem como no seio da população heterossexual, uma vez que muitos pseudo-heterossexuais manifestam comportamentos homossexuais. Isto significa que os percursos homossexuais são virtualmente percursos da Sida e de outras doenças sexualmente transmissíveis (Binson et al., 2001, Griensven et al., 2004, Peterson et al., 2001, Mutchler, 2002, Westburg & Guindon, 2004, Betts, 2002, Jin et al., 2002, Vandentorren et al., 2001, Wilson et al., 2002, Eich-Höchli et al., 1998, Weinberg, Worth & Williams, 2001, Stueve et al., 2001, Pulerwitz et al., 2001, Suarez & Miller, 2001, Wislar & Fendrich, 2000, Dilger, 2003, Catania et al., 2001, Hogg et al., 1997, Dukers et al., 2000, Bauer & Welles, 2003, Morrow & Allsworth, 2000).
O ritmo de vida dos homossexuais é mais nocturno do que diurno e varia ao longo do ano, observando-se nas estações frias (Outono/Inverno) maior concentração e intensidade em lugares fechados e nas estações quentes (Primavera/Verão), em lugares abertos, tais como as praias e parques de campismo. Esta mudança de ritmo anual tende a estar marcada pelas férias, que possibilitam uma deslocação dos espaços conhecidos para espaços desconhecidos. Com efeito, quando um homossexual julga ter esgotado a lista de parceiros sexuais na sua área de residência e de trabalho, dado ter feito sexo com todos, ele tende a deslocar-se, diariamente ou em determinados dias da semana, de automóvel para outras zonas, próximas ou distantes, em busca de novos parceiros sexuais, e o período de férias que geralmente coincide com o mês de Agosto é aproveitado para fazer «turismo sexual», ou seja, para viajar para outros lugares desconhecidos onde possa encontrar novos parceiros sexuais.
Além dos circuitos gay intra-urbanos que variam em função do perfil dos homossexuais que os percorrem, em função do ambiente e das normas subculturais proporcionados pelos lugares públicos, em função da época do ano ou mesmo dos dias da semana e em função das novidades que entretanto vão surgindo no mercado da indústria de lazer, existem os circuitos gay inter-urbanos, que incluem deslocações para outras cidades de Portugal (roteiros de fins-de-semana) ou para outras cidades estrangeiras (roteiros turísticos internacionais). Os roteiros gay fornecem diversas informações úteis para os «turistas do sexo», como mostra «Spartacus: International Gay Guide», mas o fundamental das informações consiste numa «listagem» de «lugares de engate», cuja articulação configura o oásis erótico gay de cada país. Estes roteiros omitem os espaços residenciais e os espaços institucionais e de trabalho, embora dêem algumas indicações sobre unidades de saúde e monumentos. Estes são os circuitos gay de turismo sexual (CGTS).
Muitas ligações que se formam nesses lugares podem converter-se em uniões estáveis fechadas e, nestes casos, os casais homossexuais começam a afastar-se e a abster-se de frequentar os «ambientes», para evitar conflitos conjugais, a menos que optem consensualmente por uma solução aberta de casal. Apesar de existirem muitos casais gay cujas relações foram acompanhadas durante dezasseis anos de pesquisa, verificámos que um ou mesmo os dois membros não são fiéis, cometendo regularmente adultério ou diversos tipos de infidelidades, com múltiplos parceiros sexuais, e, em muitos casos, contagiando posteriormente o seu companheiro de vida ou parceiro sexual a longo prazo. O universo dos casais homossexuais pode ser perspectivado como uma espécie de fuga ao oásis erótico gay, mas isso não significa, segundo as nossas observações, ausência de comportamentos sexualmente promíscuos. Aliás, o sexo extraconjugal ajuda a explicar muita da violência doméstica observada e relatada pelos casais homossexuais masculinos e femininos (Kuehnle & Sullivan, 2003, Liu, 2003, Rohrbaugh, 2006, Pitt & Dolan-Soto, 2001, Pitt, 2000, Blair, Nelson & Coleman, 2001, Harrison & Esqueda, 2000, Smith & Gallo, 1999, Halpern et al., 2001, Markowitz, 2001, Saewyc et al., 1999, Garfield, 2004, Testa & Leonard, 2001, Phillips et al., 2001, Lucas et al., 2003).
Com o advento da sociedade de consumo (Baudrillard, 1991), sobretudo a partir da segunda metade dos anos 90, o nível de vida dos portugueses elevou-se de tal modo que a posse de carro particular se tornou um recurso que facilita o deslocamento para zonas mais distantes da área de residência ou de trabalho, abrindo mais possibilidades de conquista sexual. Este facto associado à introdução das novas tecnologias da informação e comunicação, em particular os telemóveis, o teletexto e a Internet, veio, conforme observámos durante a pesquisa interactiva (2000-2006), igualmente facilitar a procura de novos parceiros sexuais. Com a comunicação mediada por computador, o teletexto e a troca de números de telemóvel, os homossexuais já não precisam deslocar-se para encontrar parceiro sexual disponível: no seu espaço residencial ou no cibercafé ou mesmo no lugar de trabalho, basta ligar o computador e ter acesso à rede e, através do Widows Live Messenger, ver se algum dos seus amigos virtuais está online e afim de fazer sexo com ele, ou enviar uma mensagem para um dos amigos da sua «lista» íntima, a fazer-lhe uma proposta sexual. O encontro sexual ocorre ou na casa de um deles ou noutro lugar previamente combinado. Se nenhum dos dois estiver interessado em sair de casa, podem fazer «virtual sex» e/ou «sexphone», usando as respectivas webcams. Neste aspecto, no que se refere ao uso das novas tecnologias, os homossexuais são bons aprendizes e, ao contrário do que seria de esperar (Lippa, 2002, 2001), revelam elevado grau de instrumentalidade, um padrão sexual tipicamente masculino, mesmo que sejam do tipo efeminado. No que se refere ao uso das novas tecnologias da comunicação, sobretudo ao uso do computador e da Internet, observam-se diferenças de género: os homens são utilizadores mais assíduos e criativos do computador do que as mulheres e, quanto mais jovens são, mais peritos parecem ser (Mantovani, 2001, Pratarelli & Browne, 2002, Barak & Fisher, 1997, Dittmar, Long & Meek, 2004, Biber et al., 2002, Engelberg & Sjöberg, 2004, Talamo & Ligorio, 2001, Spink et al., 2004, Speepersad, 2004, Whitty, 2003, Chandler & Roberts-Young). Os homens homossexuais revelam ser bons cibernautas, especialmente atentos a todas as novidades tecnológicas que surgem e que integram rapidamente nas suas rotinas diárias e no seu «esquema» sexualmente promíscuo de vida. A comunidade gay online é sexualmente muito pragmática: os contactos virtuais tendem a converter-se em encontros sexuais reais. Isto significa que a Internet constitui um outro circuito de engate gay, que desconhece fronteiras e que, por isso, é global, como se verifica por exemplo no site GayDar, através do qual podemos entrar em vários chats estrangeiros e estabelecer contactos ou embarcar em chats mais específicos, em função das preferências sexuais pessoais.
Como vimos no estudo um, tal como sucede nos USA (Sender, 2001), os homens homossexuais portugueses investem bastante na sua formação pessoal e são muitos os que tiram um curso superior e seguem carreiras superiores, incluindo carreiras políticas, como autarcas ao nível regional ou como deputados. A atipicidade ocupacional que lhes é geralmente atribuída não é assim tão evidente, até porque muitos seguem carreiras tipicamente masculinas, tais como carreiras militares, policiais e como «seguranças». Estas carreiras desenrolam-se em espaços institucionais, aparentemente pouco favoráveis aos homossexuais. Para não falar nas prisões, espaços institucionais militares, policiais, políticos, empresariais, religiosos, hospitalares e educacionais, incluindo o ensino superior, empregam muitos homossexuais e, como onde há homossexuais há sexo, alguns desses espaços convertem-se em «lugares de engate», com os seus circuitos intra-institucionais, como constatámos abundantemente nas instituições religiosas. Contudo, estes circuitos intra-institucionais estão perfeitamente integrados na rede gay de contactos sexuais.
A abertura de grandes espaços comerciais, nomeadamente de centros comerciais e de hipermecados, diversificou e aumentou o número de «lugares de engate». Alguns espaços comerciais fecharam, mas, em seu lugar, abriram-se novos espaços. Apesar dessas mudanças observadas, em termos puramente formais, os circuitos gay continuam a ser topologicamente os mesmos. Podemos mesmo considerá-los como invariantes topológicos.
Ora, estudos prévios mostram que os homens são mais promíscuos do que as mulheres e que os homens homossexuais são mais promíscuos que os homens heterossexuais (Lauman et al., 1994).
Diversos estudos psicossociais e genéticos têm sido realizados para examinar as contribuições dos factores genéticos e ambientais para certos aspectos do comportamento sexual, tais como a idade da iniciação da actividade sexual e o envolvimento em actividade sexual com múltiplos parceiros.
Muitos estudos providenciam evidência para as influências ambientais sobre o comportamento sexual. Assim, as crianças oriundas de famílias divorciadas tornam-se sexualmente activas numa idade precoce e têm mais parceiros sexuais (Amato, 1996, Booth, Binkerhoff & White, 1984, Furstenberg & Teitler, 1994, Gabardi & Rosen, 1992, Glenn & Kramer, 1987). Variáveis estruturais familiares estão associadas com a idade do primeiro intercurso sexual: os adolescentes provenientes de famílias mono-parentais iniciam a sua actividade sexual em idades mais precoces (Miller & Moore, 1990). Níveis elevados de comportamento de monitorização parental foram associados com idade tardia da primeira relação sexual (Capaldi, Crosby & Stoolmille, 1996, Miller, McCoy, Olson & Wallace, 1986, Small & Luster, 1994). Estes jovens também tinham poucos parceiros sexuais (Rodgers, 1999). Níveis elevados de «self-reported parent-family connectedness» (Resnick et al., 1997) e níveis elevados auto-relatados de satisfação com as relações com as suas mães (Jaccard, Dittus & Gordon, 1998) foram associados com idade tardia da primeira relação sexual e com poucos parceiros sexuais. O uso de álcool e de drogas e a delinquência estão fortemente associados ao conjunto de actividade sexual precoce (Jessor & Jessor, 1977, Rosenbaum & Kandel, 1990, Whitbeck, Yoder, Hoyt & Conger, 1999, Yamaguchi & Kandel, 1987). Aspirações educacionais baixas e fraca ligação à escola foram associadas ao comportamento sexual precoce (Hayes, 1987, Lammers, Ireland, Resnick & Blum, 2000, Small & Luster, 1994).
A influência genética sobre a idade do primeiro intercurso sexual foi avaliada por alguns estudos de gémeos. Dunne et al. (1997) e Martin, Eaves & Eysenck (1977) mostraram que existe uma contribuição genética na determinação da idade do primeiro intercurso sexual. Usando dados do National Longitudinal Study of Youth, Rodgers, Rowe & Buster (1999) descobriram que as influências genéticas e ambientais não-partilhadas constituem importantes determinantes na idade do primeiro intercurso sexual nos pares de gémeos masculinos (male-male twin pairs). Miller et al. (1999) relataram que a variação alélica dos genes que codificam os receptores da dopamina pode desempenhar um papel importante na idade da primeira relação sexual. Hershberger (1994) estudou gémeos para examinar as influências genéticas sobre o envolvimento em actividade sexual com múltiplos parceiros, mas sem resultados geneticamente significativos. Usando os métodos da genética quantitativa, Michael J. Lyons et al. (2004) realizaram um estudo para avaliar o papel das influências genéticas e ambientais na idade da iniciação das primeiras relações sexuais e no envolvimento na actividade sexual com múltiplos parceiros (10 ou mais parceiros num ano), numa amostra de gémeos masculinos do Vietnam Era Twin Registry. Os resultados mostraram que os dois aspectos do comportamento sexual eram significativamente herdados e somente a idade do conjunto das relações sexuais era significativamente influenciada pelo meio partilhado pelos gémeos: a variação observada é significativamente atribuível a diferenças genéticas entre os indivíduos. Os efeitos genéticos aditivos reflectem as acções de um vasto número de genes, cada um com pequeno efeito, cujas influências se combinam de uma forma aditiva para produzir diferenças ao nível fenotípico. A iniciação precoce de relações sexuais estava associada com uma probabilidade elevada de ter múltiplos parceiros sexuais. Estes resultados são consistentes com estudos do comportamento sexual dos adolescentes que mostram que a socialização familiar (aprendizagem social) e os factores biológicos (maturação) influenciam significativamente a idade da primeira relação sexual nos rapazes (Capaldi et al., 1996, Crockett, Bingham, Chopak & Vicary, 1996, Halpern, Udry, Campbell & Suchindran, 1993, Udry & Billy, 1987).
As teorias biopsicológicas da promiscuidade sexual vacilam entre duas concepções (Gazzaniga, 1996): uma concepção recorre ao modelo químico do cérebro e das toxicodependências para definir a hipersexualidade como dependência/adição, a outra concepção socorre-se de outra variável da nossa personalidade, nomeadamente as compulsões, colocando a promiscuidade sexual num contexto POC (perturbação obsessivo-compulsiva), juntamente com o jogo patológico, embora as duas concepções não sejam incompatíveis. Aliás, o modelo comportamental apresentado na Figura XY (omitida) é um modelo saturado empiricamente pelos padrões observados, está em conformidade com as tendências combinadas das teorias emic e revela a promiscuidade sexual como adição. E, neste âmbito, destacam-se duas teorias biológicas da promiscuidade sexual: a hipótese do gene receptor da dopamina 4 e a hipótese da vasopressina e da oxitocina.

HIPÓTESE DO D4DR. O efeito Coolidge é o conceito usado para referir o interesse dos machos em diversos parceiros sexuais e está bem documentado nos humanos (Buss, 1994, 1989) e noutras espécies animais, tais como carneiros, ratos e chimpanzés. Este interesse masculino demostra três dos aspectos fundamentais das características genéticas: ocorre em diversas culturas e épocas, encontra-se nas outras espécies e revela variabilidade individual, todos eles utilizados por Eibl-Eibesfeldt (1983, 1977) para estudar os comportamentos hereditários humanos. O estudo genético deste efeito proveio do estudo da personalidade, especificamente a característica denominada procura de novidade, que significa encontrar prazer em experiências novas, variadas e intensas. Os estudos de Bogaert & Fisher (19) e de Zuckerman et al. (19) demonstraram que os grandes perseguidores de novidades satisfazem a sua necessidade de mudança e variedade com um grande número de parceiros sexuais. O seu registo contribui mais para prever o número de parceiros sexuais do que qualquer outro factor (beleza física, masculinidade, idade ou interesse geral pelo sexo). Isto significa que quanto mais um indivíduo perseguia novidades, mais parceiros tinha. Disseram ser óptimo fazer sexo com alguém que acabavam de conhecer, mesmo que não tivessem a certeza de gostar um do outro. Os perseguidores menos activos tinham mais probabilidades de se interessar pelo sexo apenas quando estavam muito apaixonados e, de preferência, casados. Os perseguidores de emoções viam o sexo como um «jogo», enquanto os que não procuravam emoções viam o sexo como uma expressão de compromisso emocional. Além disso, os perseguidores de emoções tinham uma extensão e variedade de actividades sexuais maior que a dos que menos interessados, em particular tinham mais probabilidades de usar sexo oral e posições sexuais menos habituais. No entanto, a ligação entre a busca de emoções e a voracidade sexual não é o impulso sexual, porquanto os perseguidores de emoções não se masturbavam mais do que os outros, mas tinham mais parceiros. Isto sugere que a busca de emoções se refere à forma como se faz sexo e a quem se procura para o fazer, não à frequência sexual.
Hamer et al. (19) mostraram que a busca de novidades é, em grande parte, determinada pelo gene receptor de dopamina 4, um activador do comportamento que existe em abundância no nucleus accumbens, e que existe uma correlação entre o gene D4DR e o número de parceiros sexuais. Nos homens heterossexuais, os grandes perseguidores de novidades têm a forma longa do gene D4DR, enquanto os pouco interessados em novidades têm a forma curta. Embora os primeiros tivessem um número ligeiramente superior de parceiros do que os segundos, a diferença não era estatisticamente significativa. Contudo, alguns homens heterossexuais tinham feito sexo com outro homem, geralmente apenas uma vez e quando eram novos e, neste aspecto do seu comportamento sexual, havia uma forte correlação com o gene D4DR. Com efeito, os grandes perseguidores de novidades com o gene longo tinham seis vezes mais probabilidades de ter feito sexo com outro homem do que os que tinham um gene curto. Cerca de metade dos inquiridos do gene longo já tinha feito sexo com um parceiro sexual masculino, em comparação com apenas 8% dos homens com o gene curto.
Nos homens homossexuais, verificava-se precisamente o contrário. Como seria de esperar, os homossexuais tinham mais parceiros sexuais masculinos do que os heterossexuais tinham parceiras femininas, provavelmente porque no mundo gay o efeito Coolidge é universal e o gene D4DR tinha o efeito esperado. Contudo, o seu efeito era muito mais forte para o número de parceiras femininas dos homens homossexuais. Os grandes perseguidores homossexuais de novidades, com a forma longa do gene, tinham feito sexocom cinco vezes mais mulheres do que aqueles que não procuravam novidades, com a forma curta do gene. Estes resultados mostram que o gene receptor da dopamina D4 influencia indirectamente o comportamento sexual masculino, mediante o comportamento de busca de novidades.
Como vimos, muitos homens homossexuais, sobretudo os encobertos, que fazem sexo com mulheres e são casados heterossexualmente e têm filhos, frequentam assiduamente os circuitos gay de sexo anónimo em busca de parceiros masculinos. É provável que o desejo de novas experiências desempenhe o seu papel neste comportamento, mas o facto de terem sexo com mulheres deve-se fundamentalmente a pressões familiares, profissionais e sociais. Certas carreiras profissionais são reguladas em conformidade com normas heterosexistas e algumas delas, como a carreira militar, policial ou política, exigem praticamente que os homens sejam casados. Os efeitos da dopamina D4 não podem ser dissociados destes factores sociais e, entre os homossexuais, estão certamente associados à variedade de experiências sexuais, prática de sexo arriscado, de sexo em grupo e de sexual bondage.

HIPÓTESE DA VASOPRESSINA E DA OXITOCINA. Apenas 3% dos mamíferos são monogâmicos, formando casais heterossexuais estáveis e selectivos que cooperam na criação dos filhos, e, apesar da diversidade de sistemas de acasalamento humano, o homem é predominantemente monogâmico. O rato selvagem do género Microtus tem sido utilizado para estudar o modo como a constituição genética e a química cerebral podem controlar os comportamentos sociais complexos, em particular a formação de casais (pair-bonding), cuidados parentais e protecção da fêmea (mate guarding) (Carter et al., 1995, Young, Wang & Insel, 1998).
Estes ratos são pequenos roedores semelhantes aos ratos do campo e, nos USA, existem pelo menos duas espécies estreitamente relacionadas – os ratos da pradaria (Microtus ochrogaster) e os ratos da montanha (Microtus montanus), que são muito utilizadas por serem muito diferentes no que respeita ao tipo de acasalamento. Os ratos da pradaria machos acasalam para toda a vida e lutam ferozmente contra os machos intrusos, enquanto os ratos da montanha são sexualmente promíscuos (Tabela omitida).
Insel et al. (1995) estudaram estes ratos e descobriram que as duas espécies apresentam diferenças no padrão de receptores de uma hormona péptidea, a vasopressina. Quando a vasopressina era bloqueada nos cérebros dos ratos da pradaria normalmente monogâmicos, eles acasalavam promiscuamente por toda a colónia e não defendiam as suas fêmeas dos outros machos. Além disso, quando um rato da pradaria macho vivia com uma fêmea, o seu cérebro produzia mais vasopressina que quando estava só. Estas mudanças não foram detectadas nos ratos da montanha, nem nas fêmeas de ambas as espécies. Estes resultados mostram que uma diferença genética entre as duas espécies produz uma diferença importante no comportamento de acasalamento, através da simples mudança da quantidade e distribuição da vasopressina (Tabela omitida).
Os ratos da pradaria formam casais após 24 h do acasalamento (Williams et al., 1992; Winslow et al., 1993a/b; Insel et al., 1995a/b). Os membros dos casais permanecem juntos e em contacto físico um com o outro e os machos exibem agressão contra intrusos de ambos os sexos. O acasalamento facilita a formação de preferência pelo parceiro em ambos os sexos, mas nas fêmeas a cohabitação com um macho ao longo de 24 h antes do acasalamento é suficiente para induzir a preferência pelo parceiro (Williams et al., 1992). O acasalamento parece ser mais importante para os machos formarem casal e desenvolver agressão contra intrusos (Insel et al., 1995).
Como é que o acasalamento facilita a formação de casais? A estimulação genital provoca libertação intracerebral de oxitocina (OT) nos machos e nas fêmeas de variadas espécies (Witt, 1995). A libertação de OT durante a estimulação vaginocervical induz comportamento maternal nos ratos e nas ovelhas e é importante para a ligação ovelha-carneiro. A libertação central de OT durante o acasalamento também parece facilitar a formação de pares nos ratos da pradaria. A infusão intracerebroventricular (ICV) de oxitocina induz rapidamente a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Williams et al., 1994; Insel & Hulihan, 1995; Cho et al., 1999), enquanto a infusão do antagonista da oxitocina (OTA) bloqueia a formação desta preferência mesmo depois de acasalamento prolongado (Insel & Hulihan, 1995). A OT e OTA podem ter efeitos similares sobre a formação de preferência de parceiro nos machos dos ratos da pradaria, mas o efeito nos machos parece depender da dose e do paradigma comportamental (Windlow et al., 1993; Cho et al., 1999).
A arginina vasopressina (AVP), uma molécula similar à oxitocina, também foi implicada na transição de solteiro ao estado de casado, mas enquanto a OT facilita preferencialmente a formação de casais nas fêmeas, a AVP facilita preferencialmente a formação de casais nos machos. A infusão ICV de AVP nos machos dos ratos da pradaria induz a preferência de parceiro e a agressão contra intrusos na ausência de acasalamento (Winslow et al., 1993; Cho et al., 1999). Contrariamente, a infusão ICV de um antagonista da vasopressin-1a (V1a) receptor nos machos dos ratos da pradaria bloqueia o desenvolvimento da preferência de parceiro e da agressão selectiva, mesmo após a experiência de acasalamento prolongado (Winslow et al., 1993). A AVP também pode facilitar a formação de preferência de parceiro nas fêmeas, sob algumas condições experimentais (Cho et al., 1999) mas não noutras (Insel & Hulihan, 1995).
Como é que a OT e a AVP facilitam a formação de casais? Uma abordagem elegante para esclarecer esta questão recorreu à análise de OT knock-out (OTKO) mice (Freguson et al., 2000, 2001). Os ratinhos knock-out parecem ter respostas normais aos estímulos olfactivos não-sociais e exibem habilidades normais de aprendizagem espacial. Contudo, estes animais não conseguem reconhecer um congénere ou co-específico, mesmo depois de ter sido exposto a ele mais de uma vez. Injecções ICV de OT antes, mas não após, da exposição social restauram a recognição social nos ratinhos OTKO. A comparação de c-Fos imunoreactividade como um marcador de activação neuronal entre ratos machos selvagens e OTKO, acompanhada de exposição a estímulos femininos, sugere que o processamento de estímulos é normal nos ratos OTKO até atingir a amígdala medial. Os ratos selvagens, mas não os OTKO, mostram elevada indução de c-Fos na amígdala medial (Ferguson et al., 2001). A amígdala medial é um importante alvo das projecções provenientes do bulbo olfactivo e é rica em receptores de OT. A injecção de OT especificamente dentro da amígdala medial restaura a recognição social nos ratos OTKO, enquanto a injecção de OTA na mesma área nos ratos selvagens interrompe a recognição social. No entanto, nos ratos, a activaçãp dos receptores de Ot na amígdala medial durante o início da exposição social é necessária para a subsequente recognição social (Ferguson et al., 2001). Tal como os ratinhos, os ratos da pradaria dependem fortemente da olfacção para a recognição social (Cárter et al., 1995).
Uma hipótese para explicar os efeitos farmacológicos da OT sobre a preferência de parceiro nos ratos da pradaria é a de que, na amígdala medial, a OT facilita a formação de casais por aperfeiçoamento da recognição social, enquanto o OTA induz amnésia social (Young et al., 2001). Contudo, esta hipótese não explica porque razão os ratos da pradaria estabelecem relações monogâmicas e os ratos da montanha, bem como os ratinhos, não o fazem (Young et al., 2001).
Uma segunda linha de pesquisa deriva de estudos comparativos de espécies de ratos monogâmicos e não-monogâmicos. Embora a administração ICV de OT e AVP facilite a formação de preferência de parceiro nos ratos da pradaria, estes neurotransmissores não afectam o comportamento social dos ratos da montanha que, apesar de estarem relacionados, são não-monogâmicos (Winslow et al., 1993; Young et al., 1997, 1999). A oxitocina e a vasopressina medeiam os seus efeitos sobre o cérebro pela activação de receptores G-protein couple. Os padrões de expressão do receptor da OT e o V1a receptor diferem entre os ratos da pradaria e os ratos da montanha. Nos ratos da pradaria, mas não nos da montanha, o receptor da OT é expresso em níveis elevados no nucleus accumbens e no córtex pré-limbico (Insel & Shapero, 1992). O V1a receptor é expresso em níveis elevados na região do pallium ventral nos ratos da pradaria mas não nos ratos da montanha. O nucleus accumbens, o palladium ventral e o córtex pré-limbico estão associados com a via mesolímbica da dopamina, que é suposta estar envolvida nos efeitos de recompensa ou de reforço dos estímulos naturais ou psicoestimulantes (Pitkow et al., 2001). Estes dados são congruentes com a hipótese de que a OT e a vasopressina actuam nestas áreas do cérebro dos ratos da pradaria para condicionar uma preferência de parceiro (Insel & Young, 2001; Young et al., 2001). Com efeito, a injecção do OTA especificamente no nucleus accumbens ou córtex pré-límbico inibe a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria (Young et al., 2001), ao passo que o aumento da expressão do V1a receptor na região do palladium ventral, usando um viral vector, incrementa a preferência de parceiro e o comportamento afiliativo nos machos dos ratos da pradaria (Pitkow et al., 2001). Além disso, a neurotransmissão de dopamina no nucleus accumbens foi implicada na formação de preferência de parceiro (Wang et al., 1999; Gingrich et al., 2000). O acasalamento aumenta os níveis de dopamina no nucleus accumbens e a injeção de D2 dopamine receptor agonist quinpirole no seio do nucleus accumbens facilita a formação de preferência de parceiro nas fêmeas dos ratos da pradaria na ausência de acasalamento (Gingrich et al., 2000), sem impedir a continuação de um casal já estabelecido (wang et al., 1999). Estes dados apoiam a hipótese de que a formação de casais envolve uma preferência de parceiro condicionada e mediada, em parte, pela libertação de dopamina, OT e vasopressina durante o acasalamento.
Esta variação natural no padrão de expressão do V1a receptor pode ser importante para a variação do comportamento social em diferentes espécies de ratos. Os ratinhos transgénicos para o V1a receptor dos ratos da pradaria mostram um padrão de expressão do V1a receptor semelhante àquele observado nos ratos da pradaria e diferente do dos ratinhos selvagens, respondendo à injeção ICV de AVP com o aumento de comportamento afiliativo (Young et al., 1999).
Falta saber se estes estudos animais são relevantes para o amor humano. No cérebro humano, os receptores de oxitocina estão concentrados em diversas regiões ricas em dopamina, especialmente a substância negra e o globus pallidus, bem como a área pré-optica (Loup et al., 1991). Embora o padrão seja consistente com o cérebro monogâmico, os receptores não foram encontrados no estriatum ventral ou pallidum ventral, áreas nas quais os receptores V1a da oxitocina e da vasopressina são abundantes nos ratos e macacos monogâmicos (Wang et al., 1997). Ainda não existe evidência de que estas vias estejam envolvidas na vinculação humana (Carter, 1998).
Bartels & Zeki (2000) realizaram um «functional magnetic resonance imaging (fMRI) study of adults looking at pictures of their partners, as opposed to close non-romantic friends» e descobriram activação bilateral no cingulate anterior (Brodmann’s area 24), insula medial (Brodmann’s area 14), bem como no caudate e putamen. Este padrão de activação cortical era distinto daquele obtido por estudos anteriores de recognição facial, atenção visual, excitação sexual ou outros estados emocionais, mas assemelha-se aos resultados prévios de um «fMRI study of new mothers listening to infant cries» (Lorberbaum et al., 1999). Ambos os estudos da vinculação humana revelam marcada sobreposição entre o padrão de activação «when looking or hearing a loved one» e um relato anterior de activação durante a euforia induzida por cocaína (Breiter et al., 1997). Esta sobreposição sugere que as vias que medeiam as propriedades hedonistas dos psico-estimulantes estão também envolvidas, como sistema neural, na vinculação social. (Estudos recentes fornecem evidência nesse sentido) Estes resultados apontam no sentido do amor ser uma adição.

(Este texto é um resumo incompleto de outro estudo da minha Tese de Doutoramento. Muitos resultados, referências bibliográficas, tabelas e figuras foram omitidos, bem como partes de texto. A designação dalgumas estruturas cerebrais ficaram em inglês.)



J FRANCISCO SARAIVA DE SOUSA