«Os meus poemas têm o sentido que se lhes dê». (Paul Valéry)
«A obra literária faz apelo, de um modo essencial, à leitura». (Hans-Georg Gadamer)
A estética da recepção surgiu na República Federal da Alemanha, nos anos 70, onde adquiriu o estatuto de escola na Universität Konstanz: a Escola de Konstanz, cujos teóricos mais destacados são Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, ambos discípulos de Hans-Georg Gadamer, cujos princípios hermenêuticos ou mesmo fenomenológicos adaptaram à crítica literária.
A história da literatura moderna pode ser sumariamente periodizada em três fases em função do triângulo Autor, Obra e Leitor e do seu elemento privilegiado:
1. Uma preocupação com o autor manifestada pelo romantismo e predominante no século XIX, girando muito em torno da estética do génio de Kant: o autor é visto como um génio que cria sem regras e o sentido tende a ser descoberto na intenção desse génio criativo.
2. Uma preocupação exclusiva com o texto protagonizada pela Nova Crítica: o texto literário é visto não como documento biográfico ou histórico ou simples soma de influências literárias exercidas sobre ele, mas como obra de arte sujeita e submetida às suas próprias leis estéticas.
3. E, nas últimas décadas, uma transferência acentuada da atenção para o leitor e o público tematizada pela teoria da recepção: Segundo Paul Valéry, não existe sentido pré-estabelecido num texto; o sentido concretiza-se em cada acto de leitura e com cada leitor de um modo novo e inesperado. Como escreveu Hans Robert Jauss: «No triângulo formado pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um elemento passivo, que reagiria em cadeia, mas antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história (da literatura). A vida da obra na história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se dirige. É a sua interpretação que faz entrar a obra na continuidade de um horizonte dinâmico de experiência, na qual se opera a permanente passagem de uma recepção simples a um comportamento crítico, de uma recepção passiva a uma recepção activa, e das normas estéticas reconhecidas a uma produção nova». Neste triângulo comunicacional, o leitor foi o elemento menos privilegiado pelas teorias estéticas. Coube à estética da recepção destacar o seu papel na história da literatura, porque sem leitor não há (verdadeiramente) textos literários. Estes textos são processos de significação que só se "concretizam" ou se "actualizam" (W. Iser) na prática de leitura. A leitura é um processo activo em que o leitor está sempre a formular hipóteses construtivas sobre o significado do texto, estabelecendo conexões implícitas, preenchendo "lacunas", "rupturas" ou "hiatos", fazendo deduções e comprovando suposições. Esta actividade hermenêutica do leitor só é possível graças ao uso de conhecimentos tácitos do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto em si convida o leitor a dar-lhe sentido. O leitor concretiza a obra literária que, em si mesma, mais não é do que uma cadeia de marcas negras organizadas numa página e que, por mais sólida que pareça, se compõe de "hiatos", fracturas ou "indeterminações". Para terem efeitos, os elementos indeterminados do texto dependem da interpretação do leitor, podendo ser interpretados de várias maneiras, por vezes conflituais entre si. Quanto mais informação transmite o texto, mais indeterminado ele se torna: a mais-valia informacional desencadeia reacções diferentes em diferentes leitores e, em vez de fazer o texto mais preciso e transparente, torna-o mais indeterminado, portanto mais aberto ao diálogo produtivo com os seus leitores de todos os tempos. A leitura é um movimento dinâmico complexo que se desdobra no tempo. Segundo Roman Ingarden, a obra literária apenas existe como uma série de "schemata" (ou orientações gerais) que o leitor deve tornar realidade efectiva, com o recurso a determinadas "pré-compreensões" e a um amplo horizonte de crenças e de expectativas a partir das quais, dentro das quais e com as quais as várias características da obra devem ser avaliadas. A continuação da leitura exige necessariamente a modificação das expectativas iniciais até que o "círculo hermenêutico" (da parte ao todo e do todo à parte) comece a ficar solucionado, revelando um sentido coerente. O leitor esforça-se por estabelecer um sentido coerente a partir do texto e, para levar a cabo essa tarefa, selecciona e organiza os seus elementos em todos coerentes, excluindo alguns elementos e destacando outros, de modo a concretizar a obra. Sob poderosa influência da fenomenologia, Wolfgang Iser fez uma distinção fundamental entre "texto", considerado como pura potencialidade, e "obra", considerada como conjunto de sentidos constituídos pelo leitor ao longo da leitura. Desta distinção não resulta o relativismo ou a arbitrariedade do sentido, mas a concepção produtiva da leitura como a constituição do sentido a partir do texto, isto é, segundo as regras de jogo inscritas no texto. Isto significa que a estrutura do texto não determina o sentido, mas somente o ritmo, isto é, a forma da constituição do sentido. A leitura não é, portanto, um movimento linear progressivo e cumulativo, mas um trabalho activo no decurso do qual as expectativas iniciais do leitor geram um quadro de referências para a interpretação do que vem a seguir. Porém, o que vem a seguir pode transformar retrospectivamente a sua compreensão original, ressaltando certos aspectos e colocando outros em segundo plano. À medida que prossegue a leitura, o leitor abandona certas suposições, revê crenças, realiza revisões de sentido, enfim faz deduções e previsões cada vez mais complexas: cada frase abre um horizonte que é confirmado, questionado, problematizado ou destruído pela frase seguinte. O leitor lê simultaneamente para trás e para a frente, recordando e prevendo, consciente de outras concretizações possíveis do texto negadas pela sua leitura. Isto significa que o leitor é, de certo modo, uma espécie de co-autor do texto que concretiza em obra (W. Iser). Esta actividade produtiva de leitura é realizada em muitos níveis ao mesmo tempo, dado o texto ter segundos e primeiros planos, diferentes pontos de vista narrativos, camadas alternativas de significado, entre as quais o leitor se move constantemente. Segundo W. Iser, a obra literária mais eficiente e valiosa é aquela que obriga o leitor a formular uma nova consciência crítica dos seus códigos estéticos e das expectativas habituais, ou seja, que transgride os modos normativos de ver e ensina novos códigos de entendimento. A função da leitura é, como já tinha sido mostrado por Gadamer, levar o leitor a uma auto-consciência mais profunda e catalisar uma visão mais crítica da sua própria identidade, como se aquilo que lê ao avançar na leitura de um livro fosse ele próprio. Hans Robert Jauss disse de outro modo a missão da leitura: «Reduzir a arte a um simples reflexo é limitar o efeito que ela produz no reconhecimento do já conhecido: vingança da mimesis platónica, essa herança que se renega. Deste modo, ficaria precisamente vedada à estética marxista a possibilidade de compreender o carácter revolucionário da arte: o poder que ela tem de libertar o homem de preconceitos e representações arreigadas na sua situação histórica e de o abrir a uma percepção nova do mundo, à antecipação de uma realidade nova». Ou então: «A experiência da leitura pode libertá-lo de exigências de adaptação, preconceitos e constrangimentos da sua praxis da vida, conduzindo-o a renovar a sua percepção das coisas. O horizonte de expectativa próprio da literatura distingue-se do da praxis histórica da vida pelo facto de não apenas conservar os traços das experiências feitas mas de antecipar também as possibilidades ainda não realizadas, alargando os limites do comportamento social, ao suscitar aspirações, exigências e objectivos novos, e abrindo assim as vias da experiência futura». Existem algumas variações no seio da estética da recepção, mas aquilo que foi analisado neste post é suficiente para mostrar que, no âmbito da literatura, esta teoria soube demarcar-se da explicação imanente da obra literária, conhecida nos USA com a designação de Nova Crítica (Leo Spitzer), produzindo uma verdadeira teoria estética preocupada com os efeitos da experiência estética, aliás muito próxima das estéticas marxistas. Hans Robert Jauss converteu efectivamente a teoria da recepção numa estética da recepção entendida como teoria da comunicação, vendo a experiência estética como consciência produtiva (poiesis) que cria um mundo como sua própria obra; como consciência receptiva (aisthesis) que aproveita a oportunidade para renovar a sua percepção interna e externa da realidade, e como abertura à intersubjectividade (katharsis), à qual dedicaremos outro post. Anexo Crítico. A estética da recepção surgiu no seio da sociedade de consumo (Jean Baudrillard): o leitor das estéticas clássicas era uma espécie de filólogo solitário. Como a educação está actualmente em regressão, o leitor é hoje qualquer um desde que funcione em manada neste horizonte metabolicamente reduzido: muita opinião mas escassez cognitiva. As leituras não-orientadas podem privar o texto literário da sua verdade, sendo reduzido a uma mera mercadoria. Aqui reside o núcleo da crítica que faço à teoria da recepção na sua versão banal: uma estética da indigência de espírito e da privação activa de conhecimento. A teoria da recepção assenta (ou devia assentar) na fenomenologia social da vida diária (Schutz), a qual destaca a multiplicidade de realidades: o leitor possui o seu próprio acervo de conhecimentos prévios (Husserl, Heidegger, Gadamer, Schutz) historicamente efectivo que preenche as lacunas do texto literário, dando-lhe um sentido coerente. Ao acentuar o papel do leitor/público, a estética da recepção tornou-se teoria da comunicação: autor (produção), obra e leitor (recepção), privilegiando o papel do leitor na constituição do sentido. No contexto da indigência cognitiva predominante nas nossas sociedades, o diálogo entre a obra e o público tende a transformar-se numa palhaçada, porque o público finge que lê, é destituído de conhecimentos e o sistema de educação já não desempenha o seu papel crítico e orientador na formação cultural, deixando de cuidar do desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças: regressão cognitiva. Esta é a ameaça que pende sobre a reactualização criativa da tradição. J Francisco Saraiva de Sousa
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