«É inútil querer salvar um sentido incondicionado sem Deus.» (Horkheimer, 1963)
Max Horkheimer, cuja frase aparece em epigrafe, é o filósofo marxista que escreveu o célebre ensaio intitulado "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" (1937), "o manifesto filosófico" da Escola de Frankfurt. Esta frase tirada de um ensaio mais tardio de Horkheimer (1963), "Teísmo-Ateísmo", justifica só por si a tese que pretendo defender, sem a desenvolver, neste post: O marxismo não é (teoricamente falando) um ateísmo.
Ao contrário de Nietzsche e de Freud, Marx nunca colocou a «questão de Deus» para a negar, isto é, negar a existência de Deus, embora tenha criticado a religião. O seu texto mais enfático a este propósito é um texto de juventude datado de 1843-44. Com efeito, na sua "Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução", Marx dedica muitos parágrafos à crítica da religião, enunciando a tese muito divulgada e mencionada segundo a qual a religião é o ópio do povo. Eis o texto:
«É esta a base da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem (Feuerbach). A religião constitui de facto a auto-consciência do homem, enquanto ele não se encontrou ainda ou não voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstracto, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo humano, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, produzem a religião que é uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritual, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e justificação. É a realização fantástica do ser humano na medida em que o ser humano não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indirectamente a luta contra o mundo cujo aroma espiritual é a religião.
«A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo uma expressão da miséria real e um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.
«A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é uma condição para a sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica embrionária do vale de lágrimas de que a religião é a auréola.
«A crítica colheu das cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem capricho ou consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo como seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório à volta do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio.
«Consequentemente, a tarefa da história, uma vez que o outro mundo de verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A imediata tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana na sua forma secular, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política». Este texto (mais do que a "Questão Judaica" que merece ser estudada em diálogo com a sociologia da religião de Max Weber) circulou por todo o mundo e foi lido, juntamente com os escritos de Nietzsche e de Freud, com os quais tem algumas semelhanças, como uma espécie de manifesto do ateísmo, quando na realidade ele assume que o ateísmo foi uma ideologia burguesa realizada/superada e que, por conseguinte, a luta nesse momento era (e ainda é) contra a alienação económica. Embora Jean-Paul Sartre tenha assumido o ateísmo e, portanto, o humanismo, a maior parte dos grandes pensadores marxistas nunca defenderam o marxismo como um ateísmo. Louis Althusser que rejeitou as obras de juventude de Marx, anteriores a 1845, como não sendo «marxistas», foi peremptório nesta «matéria»: «...O ateísmo é uma ideologia religiosa (ateísmo como sistema teórico) e, por isso, o marxismo não é um ateísmo. (...) O Marxismo não é um ateísmo tal como a física moderna não é uma física anti-aristotélica. (...) O marxismo trata a religião, o teísmo e o ateísmo do mesmo modo que a física moderna trata a física aristotélica, lutando teoricamente contra ela quando esta constitui um obstáculo teórico, combatendo-a ideológica e politicamente quando constitui um obstáculo ideológico e político. Do ponto de vista teórico o marxismo opõe-se a toda e qualquer pretensão teórica da religião. Teoricamente, o marxismo não é um ateísmo, é uma doutrina que, na medida em que a religião existe como obstáculo, se vê obrigado a lutar contra ela. É preciso que isto se diga porque é verdade. Ora bem, existem leis para a luta teórica, ideológica e política; lutar não quer dizer matar as pessoas nem forçá-las a renunciar às suas ideias. Lutar pode ser também reconhecer o que certas ideias aberrantes escondem de positivo... com as ideias existentes, portanto, uma luta sem trégua. Com o positivo que as ideias indicam, escondendo-o. existem amplas possibilidades de entendimento e esclarecimento...» (Carta a Michel Simon, Agosto de 1966). Curiosamente, quer Althusser tenha ou não tomado conhecimento, a obra de Ernst Bloch pode ser vista como uma leitura positiva de Marx com a religião judaico-cristã, levada a cabo em chave ateia, como testemunha a sua magnífica obra "Atheismus im Christentum. Zur Religion Des Exodos Und Des Reichs" (1968), de resto já presente nas suas obras anteriores "O Princípio Esperança" e "O Espírito da Utopia" (1918), para já não referir "Thomas Münzer: Teólogo da Revolução" (1919). Nesta obras, Bloch distingue uma corrente fria e uma corrente quente no marxismo: a primeira protagonizada por Engels é mais científica (ciência dialéctica das tendências), enquanto a segunda é mais utópica (nova ciência do futuro), não num sentido abstracto mas concreto: a Utopia Concreta, cujo conceito é pensado a partir de um novo materialismo ("Experimentum mundi", 1975). Para Bloch, «ateísmo e utopia concreta constituem, na radicalidade de um mesmo acto, simultaneamente a destruição da religião e uma esperança religiosa herética, uma esperança recolocada sobre os seus pés. A utopia concreta é a filosofia e a prática do conteúdo tendencial presente no mundo em estado de latência». O conceito de «transcender sem transcendência» (também usado por Jean-Paul Sartre) pode ser visto como outra maneira de dizer que a teoria de Marx está vinculada a uma filosofia escatológica da história que visa, em última análise, a realização do «reino da liberdade» (o equivalente marxista do Reino de Deus, mas sem Deus), num mundo sempre aberto à novidade e, portanto, à experiência do futuro, à experiência do mundo. Neste sentido, o marxismo autêntico e o cristianismo autêntico coincidem, tal como testemunharam as lutas dos camponeses guiadas pela "teologia da revolução" de Thomas Münzer. Embora refira Feuerbach, tal como fizera Marx, Bloch podia ter mostrado que a "Fenomemologia do Espírito" de Hegel era já, também ela, uma "antropologia secularizada e ateia". Sem este espírito utópico, o marxismo frio torna-se incapaz de orientar a práxis transformadora que visa a emancipação humana, bem como a "ressurreição da natureza", outro conceito de Marx muito pouco compreendido pelos seus discípulos (Veja Filosofia de Ernst Bloch). A filosofia da Esperança de Bloch inspirou a "Teologia da Esperança" de Jürgen Moltmann e a Teologia da Libertação na América Latina (Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff). Todas superam o dualismo tradicional entre "história da salvação" e "história do mundo", sendo levadas a propor a realização da utopia concreta no horizonte da escatologia da história. Gutierrez defende que a história humana não é uma história paralela ao projecto salvífico de Deus, mas a estrutura concreta onde acontece a história da salvação: a história humana foi completamente assumida por Jesus Cristo. Ora, segundo a concepção de Bloch da religião desteocratizada e do "transcender sem transcendência", a ênfase é colocada na afinidade entre a escatologia utópica da Bíblia e a escatologia secularizada do marxismo. Para Bloch, o marxismo, dado ser um salto mediatizado do reino da necessidade no reino da liberdade, deve reclamar para si toda a herança subversiva e anti-estática expressa (evidente ou implicitamente) na Bíblia. Por isso, afirma que a Bíblia deve ser lida com os olhos do "Manifesto Comunista", sem deixar que o sal do ateísmo se torne insosso. Embora não simpatizasse muito com o projecto filosófico de Ernst Bloch, Horkheimer, pelo menos o último Horkheimer, parece retomar um certo "teísmo do protesto", em chave evidentemente negativa, a partir do qual pretende esboçar uma nova ética, em confronto com as éticas "naturalistas". Assim, quando analisa o materialismo do século das Luzes, afirma que este colocou a natureza no lugar da divindade destronada (D' Holbach). Mas, como diz mais adiante, a natureza só pode ensinar o direito do mais forte e a autopreservação; não ensina a liberdade e a justiça. Por isso, Horkheimer pensa que, na nossa era de questionamento constante de Deus, o teísmo constitui o pensamento de uma realidade mais justa, até porque o ateísmo em voga se tornou o pensamento do poder: sem a referência ao divino, a acção boa perde a sua glória, a salvação daqueles que são injustamente perseguidos e condenados à exclusão social. Na hora presente, a teoria crítica recupera o seu lado teológico: a «expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». A sua teologia (negativa) teísta é «a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode ter a última palavra». Que diversidade de interpretações do pensamento de Karl Marx! Penso que todas elas mostram que a teoria de Marx não é um ateísmo ou mesmo um humanismo. O «regresso às próprias coisas», proposto por Husserl nas suas "Investigações Lógicas", já tinha sido proposto por Marx, de uma forma exemplar que abriu a Filosofia à empiria, ensinando os filósofos a estar atentos ao devir da realidade, sem dogmatismo e posicionando-se sempre contra a injustiça e a falta de liberdade. Por isso, a teoria de Marx assumiu sempre a forma de uma crítica, mas de uma crítica em constante devir, porque também a realidade social sobre a qual incide está em devir. E, quanto à religião, Marx sabia que só há Deus ou Sagrado onde existem homens ou, por outras palavras, onde existem homens há Deus: «O significado dos conceitos (em especial desta oposição entre ateísmo e teísmo) não permanece inafectado pela história, e a sua transformação é infinitamente diferenciada» (Horkheimer). Por isso, nesta hora em que o Ocidente é confrontado com fundamentalismos terroristas, uns demasiado teístas, outros plasticamente ateus, não compreendo como se pode estudar Filosofia e tirar um curso de Filosofia sem nunca se ter estudado História Comparada das Religiões, Filosofia da Religião e Teologia! Em vez disso, dizem-se palermices a partir da leitura incompetente de obras de divulgação científica, num estilo claramente opinativo e sofistico, sem levar em conta a história dogmática da nossa herança ocidental, portanto, a nossa tradição crítica de pensamento. Ora, a hora presente exige a elaboração de uma teoria filosófica da religião, pensada no âmbito da antropologia filosófica e levando em conta a antropologia teológica, em especial a de Moltmann, a de Paul Tillich, a de Rudolf Bultmann e a de Wolfhart Pannenberg. De uma maneira ou de outra, todos nós mortais ansiamos pelo «inteiramente Outro» (Horkheimer), isto é, por Deus, a justiça plena! (Este texto foi inicialmente publicado em "CyberCultura e Democracia Online" e pode ser visto aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
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