Vou apresentar outro autor, outro pensamento, não de forma exaustiva, mas lacunar e crítica. Kenneth J. Gergen é um psicólogo social, cujo percurso intelectual revela a superioridade da Filosofia sobre as chamadas ciências sociais e humanas, bem como a necessidade da Filosofia socorrer a própria ciência dos ataques relativistas: as suas obras são efectivamente obras de filosofia, a que ele acrescenta «pós-moderna». Mas, quer seja pós-moderna ou não, a obra que quero apresentar, «The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life» (1991), trata de um assunto que me é particularmente grato: uma teoria do Self elaborada a partir do construtivismo social, fortemente marcado pela obra de Peter I. Berger e Thomas Luckmann, «A Construção Social da Realidade», e, segundo o autor, com implicações terapêuticas, de resto tratadas noutra obra.
A tese de Gergen é a seguinte: «O processo de saturação social está a produzir uma mudança profunda no nosso modo de compreender o eu». O século XX foi dominado por dois vocabulários do eu: a visão romântica do eu e a visão moderna do eu. A visão romântica do eu, herdada do século XIX, atribui a cada indivíduo traços de personalidade, tais como paixão, alma, criatividade ou integridade moral. Este vocabulário é essencial para o estabelecimento de relações comprometidas, amizades fiéis e objectivos vitais. Nos inícios do século XX, o vocabulário romântico foi posto em perigo pelo surgimento do vocabulário moderno do eu, segundo o qual as principais características do eu não são uma questão de intensidade, mas fundamentalmente uma capacidade de raciocínio para desenvolver os nossos conceitos, opiniões e intenções conscientes. As pessoas normais são, segundo este vocabulário, previsíveis, honestas e sinceras. Por isso, os modernistas acreditam no sistema educativo, na vida familiar estável, na formação moral e na escolha racional de determinada estrutura familiar. Contudo, nos finais do século XX, estas duas concepções do eu começaram a desmoronar-se, devido à erosão das bases sociais que as sustentam, através das forças da saturação social.
Estas forças são fundamentalmente as tecnologias da saturação social (de baixo nível e de alto nível) que fazem com que o indivíduo mergulhe cada vez mais no mundo social, expondo-o, como acontece na comunicação mediada por computador (tecnologia de alto nível), às opiniões, valorizações e estilos de vida de outras pessoas distantes. Esta imersão profunda num mundo social plural e cada vez mais global leva-nos até uma nova consciência do eu, a visão pós-moderna do eu. A saturação social invade a vida quotidiana, levando-nos a imergir cada vez mais no nosso meio social e a reflecti-lo completamente. Gergen fala mesmo de assédio do eu e de colonização do nosso próprio ser, a qual reflecte a fusão de identidades parciais por obra da saturação social, começando a surgir um estado multifrénico no qual os indivíduos experimentam a vertigem da multiplicidade ilimitada. Ambos os processos, a colonização do ser próprio e o estado multifrénico, constituem prelúdios significativos da consciência pós-moderna. O resultado é a erosão do eu identificável. A saturação social proporciona-nos uma multiplicidade de linguagens do eu incoerentes e desvinculadas entre si. Aliás, para Gergen, o pós-modernismo nada mais é do que esta pluralidade de vozes que rivalizam entre si pelo direito à existência e que competem para ser aceites como expressão legítima do verdadeiro e do bom.
Não pretendemos criticar esta teoria do Self proposta por Gergen, mas apenas chamar a atenção para o facto dos filósofos conservadores e comunitaristas, tais como Alasdair MacIntery, Charles Taylor ou mesmo Paul Ricoeur, já terem reagido a este desafio dos tempos globais, enquanto os filósofos liberais e socialistas de Esquerda, salvo raras excepções (Anthony Giddens, Christopher Lasch, Berkeley Robert Bellah, Richard Sennett ou mesmo Michel Foucault), ainda permanecem muito indiferentes à questão do Self e do sentido. É certo que já existem reacções interessantes, sobretudo no mundo anglo-saxónico, muitas das quais analíticas (John Searle) e logicistas (P.F. Strawson), mas a Esquerda está muito voltada para a glorificação do Self Fluído, não-sólido, como se essa liquidificação e fragmentação do eu fosse saudável, o que está longe de estar provado. Mas é muito provável que um tal estudo deva questionar seriamente a própria validade do modelo construtivista social. Com efeito, os dados que recolhi ao longo da minha cyberpesquisa não apontam necessariamente nessa direcção: a erosão do eu identificável (a mesmidade de John Locke). Mas este assunto, bem como a elaboração de políticas de renovação do eu e de autenticidade, para as quais as obras de Gergen são fundamentais, será discutido num outro post, logo que tenha tempo, levando em conta os nossos próprios clássicos, tais como L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Mikhail Bakhtin e a sua semiótica social, bem como a semiótica social australiana, e sobretudo um leitor atento de Marx, George Mead, além de Freud e de Fromm. Pensou em Pavlov e na sua reflexologia? Engana-se: esse deixo-o aos zombis de Daniel Dennett.
Este post foi editado originariamente no meu blogue «CyberCultura e Democracia Online», tendo sido acompanhado por este outro post que pode ler aqui: Filosofia Clínica e Reconstrução da Identidade. Abre-se assim um novo campo de investigação filosófica: a Filosofia Clínica, além deste modelo do self de Gergen ser útil para elaborar uma teoria do cyberself, uma das tarefas deste blogue. J Francisco Saraiva de Sousa
Estas forças são fundamentalmente as tecnologias da saturação social (de baixo nível e de alto nível) que fazem com que o indivíduo mergulhe cada vez mais no mundo social, expondo-o, como acontece na comunicação mediada por computador (tecnologia de alto nível), às opiniões, valorizações e estilos de vida de outras pessoas distantes. Esta imersão profunda num mundo social plural e cada vez mais global leva-nos até uma nova consciência do eu, a visão pós-moderna do eu. A saturação social invade a vida quotidiana, levando-nos a imergir cada vez mais no nosso meio social e a reflecti-lo completamente. Gergen fala mesmo de assédio do eu e de colonização do nosso próprio ser, a qual reflecte a fusão de identidades parciais por obra da saturação social, começando a surgir um estado multifrénico no qual os indivíduos experimentam a vertigem da multiplicidade ilimitada. Ambos os processos, a colonização do ser próprio e o estado multifrénico, constituem prelúdios significativos da consciência pós-moderna. O resultado é a erosão do eu identificável. A saturação social proporciona-nos uma multiplicidade de linguagens do eu incoerentes e desvinculadas entre si. Aliás, para Gergen, o pós-modernismo nada mais é do que esta pluralidade de vozes que rivalizam entre si pelo direito à existência e que competem para ser aceites como expressão legítima do verdadeiro e do bom.
Não pretendemos criticar esta teoria do Self proposta por Gergen, mas apenas chamar a atenção para o facto dos filósofos conservadores e comunitaristas, tais como Alasdair MacIntery, Charles Taylor ou mesmo Paul Ricoeur, já terem reagido a este desafio dos tempos globais, enquanto os filósofos liberais e socialistas de Esquerda, salvo raras excepções (Anthony Giddens, Christopher Lasch, Berkeley Robert Bellah, Richard Sennett ou mesmo Michel Foucault), ainda permanecem muito indiferentes à questão do Self e do sentido. É certo que já existem reacções interessantes, sobretudo no mundo anglo-saxónico, muitas das quais analíticas (John Searle) e logicistas (P.F. Strawson), mas a Esquerda está muito voltada para a glorificação do Self Fluído, não-sólido, como se essa liquidificação e fragmentação do eu fosse saudável, o que está longe de estar provado. Mas é muito provável que um tal estudo deva questionar seriamente a própria validade do modelo construtivista social. Com efeito, os dados que recolhi ao longo da minha cyberpesquisa não apontam necessariamente nessa direcção: a erosão do eu identificável (a mesmidade de John Locke). Mas este assunto, bem como a elaboração de políticas de renovação do eu e de autenticidade, para as quais as obras de Gergen são fundamentais, será discutido num outro post, logo que tenha tempo, levando em conta os nossos próprios clássicos, tais como L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Mikhail Bakhtin e a sua semiótica social, bem como a semiótica social australiana, e sobretudo um leitor atento de Marx, George Mead, além de Freud e de Fromm. Pensou em Pavlov e na sua reflexologia? Engana-se: esse deixo-o aos zombis de Daniel Dennett.
Este post foi editado originariamente no meu blogue «CyberCultura e Democracia Online», tendo sido acompanhado por este outro post que pode ler aqui: Filosofia Clínica e Reconstrução da Identidade. Abre-se assim um novo campo de investigação filosófica: a Filosofia Clínica, além deste modelo do self de Gergen ser útil para elaborar uma teoria do cyberself, uma das tarefas deste blogue. J Francisco Saraiva de Sousa
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