A leitura de Florbela Espanca coloca desde logo um sério problema hermenêutico. No seu «Diário do Último Ano», Florbela confessa, ao mesmo tempo que desafia o seu potencial e virtual leitor futuro:
«Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros […] talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto (II, p.33)».
Uma confissão: «Compreendi que nada compreendi […] de mim». Uma esperança: talvez os outros possam revelar «o meu ser misterioso» — aquilo que Florbela «foi» mas que não compreendeu. Pesada tarefa essa de compreender um ser que compreendeu que nada tinha compreendido do seu segredo mais íntimo, mais essencial. Mas o que torna esta tarefa ainda mais arriscada é o facto desse ser ter sido o ser de uma mulher e o nosso ser ser o ser de um homem.
Portanto, o nosso problema torna-se mais complexo: Como é que o homem que sou pode revelar o ser de uma mulher que nunca se esquece da sua condição feminina? Será que o Ser é, ele próprio, dilacerado em si mesmo por esta dupla condição masculina/feminina que procura, cada uma a seu modo, sondar o seu segredo? Ou será que Florbela se entregou a uma tarefa que ultrapassa a sua condição feminina? De facto, o Ser só tem sido dito, até hoje, no «masculino». Quererá isto dizer que a ontologia é tarefa exclusiva de homens?
Sabemos que Florbela não desejava uma mera pesquisa biográfica: ela queria compreender o «ser» do Dasein que tinha sido — um empreendimento hermenêutico de cariz ontológico: uma hermenêutica ontológica do Dasein. Uma expressão sua mostra precisamente isso: «Morrer na morte». Morrer na morte é querer ser esquecida, completamente esquecida, como se nunca tivesse sido lançada no mundo. Contudo, ela aguarda que alguém, no futuro, a resgate do esquecimento.
O nosso empreendimento hermenêutico muda assim de rumo: resgatar Florbela é recuperá-la para a vida e para o pensamento — é manter viva a sua memória, de modo a indicar e relembrar aos homens que eles são, antes de tudo, seres mortais. E mais importantes do que os vivos que se perderam em caminhos que não levam a parte alguma são os Mortos. Morrer na morte é, nesse sentido, um regresso virtual ou real à vida do pensamento daqueles que não se esqueceram dos que morreram desassossegados. A morte deixa de ser encarada com angústia: o que se deseja é viver uma vida sem angústia. A vinda dos Mortos avisa-nos e indica-nos o caminho a seguir: pensar a verdade do Ser como uma possibilidade para viver uma vida sossegada. Apesar das diferenças, não restam dúvidas: Florbela quis compreender o segredo do Ser, à custa de não realizar plenamente a sua condição feminina. Florbela auto-sacrificou-se para alertar os outros para a necessidade urgente de pensar, sem nada querer para além da fruição da verdade do Ser.
O suicídio de Florbela é o seu acto mais ousado e mais profundo: não vale a pena viver quando a vida nos desaloja de nós mesmos, impossibilitando a realização das nossas possibilidades mais íntimas e essenciais. Viver é mais do que viver a vida do dia-a-dia; viver é amar e amar é entrar em sintonia com o mistério do Ser. O suicídio é o acto que deve acordar os que sempre estiveram adormecidos — é invitá-los e convocá-los para a tarefa de pensar profundamente sobre aquilo que merece ser pensado dignamente: a vida de cada um de nós e a vida de todos nós juntos, com os outros, os animais, a natureza, enfim o mundo comum.
Pensamos ter deslocado o nosso problema hermenêutico: apesar de sermos diferentes, isto é, de pertencermos a géneros opostos, cabe-nos a todos zelar por uma vida justa e digna. Veremos até que ponto este deslocamento nos permitirá resolver o problema chamado Florbela Espanca, sem cairmos nas armadilhas do preconceito ordinário.
A morte como deixar-de-ser do Dasein, sem qualquer outra possibilidade real de «sobrevivência», incluindo nas lembranças daqueles que amaram ou amam o Morto querido, é um pensamento típico daqueles indivíduos que desejam matar pela segunda vez o Morto, de modo a virem a dispor do Vivo a seu bel-prazer. A morte como fim sem outras possibilidades revela o egoísmo e a maldade dos que pensam nestes termos. Matar a Morta pela segunda vez é esquecê-la completamente, negando-lhe até mesmo os momentos em que esteve viva nas nossas vidas.
Dada a sua infelicidade essencial devida à actividade de pensar, Florbela desejou a sua própria morte, mas de um modo inesperado: Florbela quis morrer na morte para não vir a ser julgada por todos aqueles que não a tinham compreendido e que não a tinham amado. Se a sua vida foi sofrida na mais completa solidão, o suicídio desejado deveria ser um esquecimento: o esquecimento da Morta que não foi feliz entre os vivos. A partir do momento em que o seu irmão morre, Florbela perdeu a última esperança que a ligava à vida: o amor do seu irmão. Morto o irmão, nada mais lhe resta a não ser preservar a sua memória longe dos vivos e aguardar sem esperança a sua própria morte. Morrer na morte é desejar ser esquecido, já que não há ninguém vivo que a possa lembrar com saudade; mas é também o desejo de desaparecer na morte sem deixar marcas e vestígios. Florbela não quer ser recordada, porque não quer ser julgada. Todo o julgamento é visto por ela como uma segunda morte. Querer morrer na morte é o mesmo que mergulhar num silêncio sem lembranças.
Se ela imortalizou o seu Morto querido, não queria, no entanto, ser imortalizada, nem sequer pelos que estavam mais próximos de si. No entanto, deixa um desafio a um interprete futuro: já que não a compreenderam em vida, pode suceder que alguém, vindo do futuro e a partir da sua obra, resolva resgatar a Morta que quis morrer em vida e também morrer na morte, simplesmente para não ser julgada. Resgatar significa aqui preservar a memória viva da Morta que quis ser esquecida na morte por aqueles que a julgaram em vida. Morrer na morte é aguardar silenciosamente por alguém, inteiramente estranho, que a resgate desse sono profundo que não quer ser incomodado por ninguém que não a tenha amado. Nas lembranças silenciosas da Morte o resgate é um acto de amor. Compreender finalmente Florbela é um modo de lhe restituir o amor que a vida lhe negou; é recordá-la naquilo que ela era e foi, mas que ninguém, nem sequer ela mesma, chegou a compreender.
Afinal, compreender o quê? Compreender que todo o animal lançado no mundo merece ser amado e ser feliz. Por não ter sido amada, Florbela não foi feliz e não foi feliz por não ter sido compreendida na sua mais íntima essência. Negado o amor, restava-lhe a solidão povoada de pensamentos, nomeadamente o pensamento e o projecto da morte. Já não olhava para baixo, mas para cima — para o céu, em busca de conforto e de socorro que nunca a socorreu. Afinal, quem é Deus? Amor, responde Florbela seguindo a tradição cristã. Mas que tipo de amor é esse que não acode os que o procuram? Compreensão plena, livre de julgamentos. O desafio lançado por Florbela é, ele mesmo, um desafio hermenêutico.
Florbela desejou deixar de pensar e entregar-se ao momento, mas o seu pensamento era mais forte que as suas emoções e desejos passageiros, em particular aqueles que desejam abdicar do pensamento. Viver ou pensar? Mesmo sabendo que a vida que não pensa pode criar a ilusão de felicidade, Florbela quis o impossível: viver a pensar e pensar a vida. Pode não ter encontrado a felicidade, mas encontrou-se a si mesma num mundo solitário que, de resto, é o do pensamento. Para Florbela, pensar já era uma preparação para a morte vindoura. Um vida sem pensamento é pura ilusão! Mais vale pensar que se enganar a si mesmo. Desiludida com o mundo e os seus homens, restava-lhe olhar nos olhos os animais ou mesmo qualquer ocorrência da natureza. Nesse olhar encontrou Florbela aquilo que nunca encontrou entre os homens: a serenidade ou, mais precisamente, a vontade de não querer — e, antes de tudo, a vontade de não querer viver ou habitar num mundo que nunca foi nem seria o seu mundo, dado ser e continuar a ser o mundo daqueles que não sabem escutar a voz aflita daquele que pede socorro. Morrer na morte foi o pensamento que levou Florbela a encarar o suicídio como uma evasão na evasão — como um modo de alcançar a serenidade que sempre desejou.
O resgate de Florbela exige uma compreensão integral da sua obra, onde guardou os seus mistérios, susceptível de a fazer «voltar» ou «regressar» do reino dos mortos, não para ser julgada mas para ser lembrada como aquele ser que da vida só quis ser amada, isto é, compreendida. Amar a Morta é manter a lembrança viva daquilo que foi na sua essência mais genuína: uma peregrina. Florbela «sacrificou» a sua vida ao pensamento, aparentemente «em vão», mas cabe-nos a nós — os seus leitores futuros — restituir-lhe a sua coragem de ter escolhido o caminho mais difícil da vida: pensar, em vez de se entregar a uma vida ilusória, onde o amor já nada significa para além de um comércio sexual em que os íntegros perdem a sua dignidade — a dignidade de serem «limpos».
«Quem me dera poder morrer na morte»: eis um pensamento aparentemente estranho, como estranha foi a vida de Florbela. Morrer na morte: este pensamento tem significações diferentes quando dito por um vivo ou «murmurado» por um morto.
Ernst Bloch diria que não se pode falar da morte, porque, além de não termos experiência da nossa própria morte, não falamos com os mortos. É certo que existem pessoas que dizem ser dotadas de poderes para comunicar com os mortos, mas, se o que elas descrevem pode ser analisado em termos científicos, a sua suposta experiência não pode ser esclarecida racionalmente. Contudo, há uma maneira de «escutar» a morte: a lembrança do morto permite um diálogo interior com o morto naquilo que foi em vida e naquilo que nos delegou — o seu testemunho. Um diálogo com o morto querido é uma modalidade de «discurso interior»: graças às lembranças intensificadas pela experiência brutal da morte, o pensar consigo mesmo é enriquecido e povoado pela presença recordada do morto querido e pela sua marca única e insubstituível. O pensamento interior evoca o morto — torna-o presente e dialoga com ele. Comigo mesmo falo, falando com o morto querido, e falo com o morto querido, convocando-o ao abrigo do meu discurso interior. Conversar com o morto é manter viva a sua memória: é mantê-lo na nossa proximidade e conceder-lhe em mim mesmo o direito à sua palavra compreendida.
Negar esta experiência da morte de outrem é próprio daqueles indivíduos que não amaram, isto é, não compreenderam verdadeiramente os «seus» mortos. Dialogar com os mortos, sobretudo os queridos, é não só não os esquecer mas também querer que eles não sejam mortos uma segunda vez e todas as vezes que for necessário.
Se Florbela disse, em vida, que desejava morrer na morte, este seu desejo deve estar sempre presente no pensamento daqueles que a querem deveras compreender. Um tal desejo é uma dupla-antecipação: a antecipação da morte certa e o desejo revelado antecipadamente de querer morrer novamente nessa morte de que ninguém escapa. A primeira antecipação é uma fatalidade do destino: ninguém pode evitar a sua própria morte. Todos os que nascem morrem necessariamente e este acontecimento não resulta de uma escolha, excepto talvez naqueles que se antecipam à morto suicidando-se realmente. No fundo, não escolheram verdadeiramente a morte: limitaram-se a executar aquilo a que não podem por destino escapar — a morte sempre-já os escolheu, dado que todos são seres mortais. Florbela só deseja morrer na morte, ou seja, ser esquecida completamente, se a morte não corresponder à sua pré-noção de serenidade; caso contrário, a morte seria o prolongamento de um julgamento que começou em vida e no qual não se revia. Assim, morrer na morte é desejar interromper o julgamento dos outros que estão longe de compreender a sua vida, mesmo quando já não faz parte do mundo dos vivos. Com efeito, só se morre dignamente quando somos recordados como seres únicos e singulares: este é o testemunho, a palavra deixada pelo morto, com a qual devemos comunicar para compreender aquilo que quis ser e foi efectivamente, se soubermos honrar a sua presença passada.
O morto desaparece, sendo reintegrado nas cadeias tróficas, mas o seu espírito — esse não desaparece enquanto houver no mundo alguém que queira manter viva a sua memória e viver na sua proximidade, numa comunhão só possibilitada pelo discurso interior, durante o qual o «eu» fala e escuta o morto presente na sua memória. O pensamento não só recorda o morto como também actualiza, nesse acto, a sua presença num diálogo em que tudo é constantemente renovado e aprofundado. Deste modo, o morto, retraído à visão e aos sentidos, emerge plenamente no pensamento interior, donde continua a participar nos contextos práticos da vida quotidiana. Esta é a experiência mais sublime e bela que podemos ter com a morte dos outros, sobretudo os queridos, aqueles que amaremos até ao fim das nossas vidas. A estética da morte reside precisamente nesta comunhão espiritual entre o vivo e o seu morto querido.
A consciência que mergulha profundamente na sua «interioridade», descobrindo que está sozinha num mundo estranho, avizinha-se, nesse instante, da morte, que deixa de ser temida e passa a ser próxima e «companheira». A consciência que toma a morte como companheira anseia pela sua morte: procura na morte o sossego e a tranquilidade que a vida diária lhe nega sistematicamente e, frequentemente, de modo «cruel» — cruel no sentido em que a palavra dirigida ao outro cai no silêncio aterrador de um diálogo impossível. Enfrentar a existência e a indigência dos tempos pós-modernos na solidão exige uma proximidade íntima com a morte. É, por isso, que Nietzsche escreveu estas palavras que só são enigmáticas para quem nunca se descobriu a si mesmo na sua mais profunda solidão: «O pensamento no suicídio é um poderoso meio de consolação: com ele, afastamos facilmente muitas noites más» (PABM, p.104, §157). Sobretudo, naquelas noites em que somos capazes de pensar afastados dos espaços públicos e da sua visibilidade. E, no entanto, Nietzsche afirmava ser mais preferível pensar a vida do que pensar a morte.
Florbela mostra que, para pensar a vida com verdade, é preciso pensar a morte e, em particular, tê-la como companheira. Com efeito, no pensamento da morte encontra-se algo mais do que a consolação que a vida nos nega: encontra-se a nossa subjectividade única e singular, bem como a força para continuar a viver, de modo a não permitir que a vulgaridade mate até mesmo os que já morreram.
A «ciência da morte» é, de certo modo, uma «ciência do desassossego», mas o desassossego é aí metamorfoseado em consolo e em tentativa derradeira de comunicar. A ciência da morte não se comunica publicamente: primeiro, «escreve-se» intimamente e, depois, a palavra não escutada é exteriorizada na escrita, mas numa escrita que ainda não perdeu a esperança de receber uma resposta e encetar um diálogo. O «diário íntimo» é a forma privilegiada de um tal discurso interior que se abriga na morte. Dialogando consigo mesmo e com os vestígios do morto presentes na sua memória e exteriorizando esse diálogo para as folhas de um caderno, tudo isso é uma forma de não perder a esperança: a esperança de ser lido/escutado por alguém já nascido ou ainda por vir. O diário é escrito para ser lido por alguém que recupere o sentido desse discurso do esquecimento e responda àqueles pensamentos que não foram escutados na devida altura. Nessa abertura ao mundo uma alma definha aos poucos, na esperança de vir a ser compreendida e resgatada do esquecimento, mesmo que dela já nada exista a não ser as palavras escritas.
Florbela morreu e desapareceu do mundo das aparências, mas a sua obra está aí à espera de ser lida e compreendida. Contudo, estabelecer um diálogo com os seus pensamentos guardados em palavras é, como era sua intenção e desejo, procurar compreendê-la nas «infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto» (11, p.33). Mas, afinal, quem foi Florbela Espanca? Esta interrogação não é tanto uma questão biográfica ou psicológica mas fundamentalmente uma questão hermenêutica, até porque uma análise psicológica seria vista pela própria Florbela, se ainda fosse viva, como um prolongamento de julgamentos a que foi submetida durante a sua passagem pelo mundo das manifestações. O seu feminismo, se existe, não é certamente psicológico, mas profundamente hermenêutico.
No Poema "Sou Eu!", o último terceto é sintomático:
«Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas
«Prendeu da vida, assim como ninguém,
«Os maus espinhos sem tocar nas rosas!»
Da vida Florbela reteve apenas nas suas mãos ansiosas os maus espinhos, deixando escapar, sem nunca lhes ter tocado, as rosas. Uma vida irremediavelmente danificada, de certo modo perdida. O soneto "O Meu Impossível" (p.363) lança mais luz: A sua «alma ardente» é vista como «ânsia de procurar sem encontrar/A chama onde queimar uma incerteza!» A vida danificada não se rende imediatamente a certeza de já não ter vontade de não querer e esperar da vida: a incerteza mantém Florbela prisioneira da vida, porquanto nela ainda habita uma alma que procura a «chama» que possa dar-lhe uma certeza, ou melhor, um sentido. Contudo, dado que essa procura constante, a de uma vida inteira, nada encontrar, converte-se assim em vontade de não querer. A ânsia de procurar sem encontrar é a vida e a morte de Florbela. A resposta é clara:
«Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
«É nada ser perfeito! É deslumbrar
«A noite tormentosa até cegar
«E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!»
A procura que não encontra aquilo que procura, enfim a vida de Florbela vista da sua perspectiva interior, todo o seu esforço foi «em vão». Uma vida desperdiçada, ter sido «em vão» todo o seu esforço vital: isto é o impossível de Florbela — não encontrar o que procurou ansiosamente durante toda a sua vida. De resto, uma impossibilidade vivida e pensada como tal. Nem Deus a socorreu: Vida triste que, no soneto "Deixai Entrar a Morte" (p.387), anseia pela própria Morte:
«Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
«A que vem para mim, pra me levar».
O dia torna-se escuro e a noite ilumina-se. Da vida já nada espera: a alma deseja que a Morte a ilumine.
«Que sou eu neste mundo? A deserdada,
«A que prendeu nas mãos ...
«A vida inteira ...
«E que, ao abri-las, não encontrou nada».
No poema "A Minha Morte" (p.55), Florbela fala da sua morte: «Velei na vida o meu viver inteiro,/E nunca mais tive um sonho a que sorrir». Ora, no poema "A Vida e a Morte" (p.30), «a vida é o sorriso/E a morte da vida a guarida». Se a vida é um sorriso, na medida em que o sonho diurno se realiza, a vida de Florbela foi antes um pesadelo. É certo que teve um sonho diurno — «Eu quero amar, amar perdidamente!» ("Amar!", p.322), mas a sua vida não sorriu a esse sonho. A procura ansiosa do amor foi «em vão». Do sonho nada resta, a não ser a consciência do seu fracasso. Em "Nostalgia" (p.323), mas sobretudo em "Quem sabe?..." (p.337), Florbela entrega-se a uma meditação metafísica e diz: «Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!», e termina:
«Quem sabe se este anseio de Eternidade,
«A tropeçar na sombra, é a Verdade,
«É já a mão de Deus que me acalenta?» "Voz Que Se Cala" (p.365) é outro poema altamente significativo: A voz que se cala rende-se ao Destino e o Destino é a Morte que, eventualmente, poderá — Quem sabe? — iluminar uma vida nova — «Além» —, uma vida que sorria eternamente para a alma que a procurou incessantemente na Terra sem a encontrar. Ainda em vida, mesmo no limiar da Morte, Florbela despede-se do corpo, retendo apenas o cuidado da sua alma. Deste modo, o seu discurso desfaz-se do feminismo e o sentido de alguns pares de categorias é invertido: o Dia da Vida é a Noite da Vida e a Noite da Vida é o Dia da Vida. A vida é noite e a morte é dia — o grande dia. O amor que não encontrou em vida pode vir a encontrar na morte e no «além», porquanto Deus é supostamente Amor. Aí, na Eternidade, o impossível torna-se possível, a menos que o severo julgamento da vida tenha também os seus direitos e efeitos no «além». Diante desse cenário — a partir do qual Cândido elaborou o seu drama "A Primeira Morte de Florbela" —, já nada mais resta a não ser morrer na morte — pura e simplesmente desaparecer. A Eternidade sorridente iluminada pelo Amor não é, pelo menos aqui nesta Terra onde vivemos como «sombra duma sombra/Por entre tanta sombra igual a mim!" ("Nostalgia", p.323), uma certeza, mas um anseio, uma esperança de que podemos, finalmente, realizar o nosso sonho diurno: «amar perdidamente». Se assim não for, ou se deseja «voltar» à vida obscura anterior (p.323) ou se deseja morrer na morte: Calar definitivamente a voz para que não haja mais palavras de anseio e deixar de sonhar. Afinal, desta perspectiva, o sonho diurno aparece como um obstáculo à vida «feliz». O sonho que se projecta num futuro amor é a maior ilusão: a ilusão que nos impede viver a vida que temos como mais certa. Vida desperdiçada em sonhos diurnos, vida perdida eternamente numa imensa escuridão onde nada mais existe a não ser o silêncio: o silêncio das vozes que se calaram para sempre. J Francisco Saraiva de Sousa
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