Nos Estados Unidos, surgiu, nos anos 60, uma nova problemática teórica que recebeu a designação de etnociência, apesar de ser igualmente conhecida por etnosemântica ou mesmo nova etnografia, cujos trabalhos mais representativos são os de Berlin, Kay, Conklin, Frake, Goodenough, Metzger, Romney e Tyler. A etnociência considera a cultura como um sistema de cognições partilhadas intersubjectivamente ou, simplesmente, como um sistema de conhecimentos e de crenças. A criação da cultura não é atribuída aos factores biológicos ou ambientais, mas ao intelecto humano. As emoções, as acções, o meio e outros elementos mais não são que elementos materiais organizados pelo intelecto humano. Goodenough (1957) concebe cada cultura concreta como «um sistema de perceber e organizar os fenómenos naturais, as coisas, os acontecimentos, o comportamento e as emoções». Daqui resulta que o objecto de estudo da etnociência «não são os fenómenos materiais como tais, mas o modo como estes se organizam na cabeça das pessoas. As culturas não são fenómenos materiais, mas organizações (mentais) de fenómenos materiais» (Tyler, 1969). Na perspectiva da etnociência, o intelecto humano gera a cultura através de um determinado número de regras finitas ou por meio da lógica inconsciente. O seu objectivo é determinar quais são essas regras. Ora, esta ideia de que, por debaixo da diversidade da cultura, existe um «conjunto de regras para a contrução e interpretação socialmente adequadas das distintas mensagens» (Frake, 1964) retoma o programa da gramática transformacional, elaborado por Chomsky (1975), que procura descobrir as estruturas mentais a priori e universais subjacentes à linguagem, bem como o programa estruturalista desenvolvido por Claude Lévi-Strauss (1975, 1987). Enquanto o estruturalismo interessava-se pela formulação das regras gramaticais que governam a totalidade das trocas sociais e que são válidas para todas as culturas, a etnociência interessa-se directamente pela formulação das regras gramaticais que regem cada cultura concreta. Entendemos a gramática de uma língua quando podemos enunciar uma proposição gramaticalmente correcta, ou seja, uma proposição que seja considerada correcta por todos os falantes nativos dessa língua. De modo semelhante, argumenta a etnociência, podemos dizer que entendemos uma cultura quando conhecemos as regras que nos permitem enunciar as formas de comportamento que os nativos consideram adequadas a cada circunstância. Apesar de não podermos predizer o que cada falante dirá ou fará unicamente com o conhecimento da gramática, a etnociência considera que isso seria possível se, além das regras gramaticais, conhecêssemos o conteúdo informacional necessário para poder falar ou tomar decisões. Devido à ênfase dada aos problemas cognitivos, o estudo da gramática de cada cultura consiste em estudar «a forma das coisas que os indivíduos têm nas suas cabeças e os seus modelos de percepção, para os relacionar entre si e, se for possível, poder integrá-los» (Goodenough, 1957). Daí que a tarefa fundamental da etnociência seja a de descobrir as formas de percepção dos membros de cada cultura concreta e o modo como eles descrevem o seu mundo. Esta perspectiva tem sido chamada descrição emic ou «interna» de uma cultura, por oposição ao ponto de vista «externo» ou descrição etic, que consiste em descrever cada cultura concreta utilizando ao categorias de que o investigador dispõe. Deste modo, a etnociência tende a centrar a sua atenção naqueles aspectos de uma cultura que reflectem de forma mais cingida a concepção que os nativos têm do seu meio, da natureza humana e da sociedade, dando por pressuposto que as expressões linguísticas e o discurso em geral expressam, de maneira directa, os princípios que organizam o intelecto humano. Daí a sua dedicação ao estudo dos sistemas terminológicos ou dos sistemas de nomes que os membros de uma cultura usam para descrever as plantas (etnobotânica), as cores e os animais (etnozoologia) do seu meio (etnoecologia), bem como aos termos do seu sistema de parentesco. Estes sistemas de termos estão organizados de maneira sistemática, através de um conjunto fixo de princípios organizativos. Supondo a existência de um número fixo e limitado de princípios que são os que todas as culturas empregam para gerar e construir os seus próprios sistemas, a etnociência espera poder determinar os princípios usados para gerar cada um destes sistemas terminológicos ou domínios. Contudo, ao contrário do estruturalismo, a etnociência não considera que esses princípios estejam fundados em estruturas mentais subjacentes. A etnociência tem sido alvo das mais diversas críticas, algumas das quais a identificam com o idealismo (Harris, 1993), mas é necessário reconhecer a sua utilidade na investigação de terreno ou etnográfica. De facto, ela permite descobrir os processos e as regras estruturais mediante as quais uma determinada população classifica o seu mundo. A tentação idealista da etnociência pode ser superada quando integramos a sua etnometodologia nos métodos que nos possibilitam ter um acesso indirecto ao funcionamento do sistema nervoso humano através dos resultados da sua actividade: os comportamentos, a linguagem e a cognição. Encarar a etnociência como uma ciência auxiliar das neurociências da cognição implica uma reformulação teórica: a linguagem estrutura uma concepção do mundo que, do ponto de vista científico, deve ser considerada como um domínio da ideologia. Ao mesmo tempo que é produzida pela mente-cérebro, a ideologia contribui, durante o desenvolvimento, para a organização do próprio cérebro. De origem marxista, o conceito de ideologia traz as marcas da filosofia que tutela o projecto científico. Com efeito, se a ideologia é usar o sentido para estabelecer e sustentar relações assimétricas de poder, o seu estudo reconstrutivo implica necessariamente a desmistificação das relações sociais. J Francisco Saraiva de Sousa
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