«O sonho do homem actual é ser um esqueleto antecipado, com asas de alumínio, sobre um planeta roído até ao caroço. Ao homem mitológico, escravo dos deuses, sucedeu o (homem) metafísico, escravo dum Deus; e a este, o (homem) industrial, escravo duma deusa de metal, aquela mulher eléctrica, numa barraca de feira, estendendo a vara mágica aos labregos espantados». «O homem é mais moisaico que darwínico, mais antropos que antropóide, o que a ciência não admite». «O orango arrependido de ser homem, eis o drama psicológico moderno». «A finalidade da vida é a definição da existência. E digo finalidade, porque todo o esforço da Natureza se dirigiu e dirige num sentido humano ou consciente». «O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus». «O homem é ele e o seu habitat. É céu e terra contidos numa definição espiritual ou consciente». «O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência». «Que seria do mundo sem o homem? Permaneceria como abismado numa absoluta inexistência». «O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza». «O inimigo da poesia não é o sábio verdadeiro, mas o pseudo-cientista, muito pedante do que imagina saber oficialmente. (...) Ser homem é já ser poeta ou possesso duma grandeza misteriosa». «A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão». «Em todo o poeta verdadeiro existe um filósofo adormecido, como existe um poeta adormecido em todo o verdadeiro filósofo. O poeta filosofa depois de cantar e o filósofo canta depois de filosofar». (Teixeira de Pascoaes) Se Heidegger conhecesse a poesia portuguesa dita na própria língua portuguesa, o poeta que escolheria para meditar a sua poesia seria Teixeira de Pascoaes, e não Fernando Pessoa, até porque o seu pensamento essencial está na proximidade íntima do pensamento da obra poética do poeta português, tal como este o elucidou, em voz alta, consigo mesmo: "Entre a Humanidade e a Divindade existe aquela região em que habitam os Poetas. São eles que forçam as portas do Cárcere onde o demónio aprisiona as almas divinas. Enquanto os homens admiram as paredes e as férreas grades reforçadas, o poeta entra lá dentro, num gesto libertador... É o Orfeu de todas as Eurídices, o redentor de todas as sombras, o viageiro de todos os desertos que se vestem de flores e searas... (...) O poeta é o enviado. Vem ao mundo afirmar as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da vida e lhe dão um sobrenatural sentido. Vem sublimar o vulgar, revelar o grande que as pequenas coisas escondem, converter o ruído em harmonia e a harmonia em melodia. Só ele deu uma alma divina ao corpo bruto da Natura, completando a obra de Jeová... Claro que me refiro aos poetas verdadeiros, integrados no seu primitivo significado. Poeta quer dizer profeta. Não devemos confundir os artistas do verso com os criadores de Poesia. Os primeiros interessam apenas à Literatura, ao passo que os segundos têm um interesse vital e universal, como flores e estrelas. (...) A poesia espontânea surge nos períodos genésicos da Alma. A poesia culta predomina nos seus momentos desfalecidos" (Teixeira de Pascoaes). O abismo do inferno separa Fernando Pessoa de Teixeira de Pascoaes: o primeiro conspira contra a Renascença Portuguesa, a tentativa portuense de "criar um novo Portugal", usando as mentiras de todos os seus heterónimos para fazer esquecer e silenciar a verdadeira mensagem dos "poetas místicos", como lhes chama, em especial Guerra Junqueiro, Jaime Cortesão e Teixeira de Pascoaes, invejados por terem descoberto o parentesco oculto que impera entre o poetar e o pensar: a poesia e o pensamento estão ao serviço da linguagem, pela qual intervêm e se sacrificam. Em 1907, Teixeira de Pascoaes, o poeta de Portugal, que cantou a uma só voz, mas em correspondência com as falas dos grandes poetas nacionais, a alma lusitana, publicou no semanário "A Vida" um artigo dedicado ao sentido da vida. O objectivo de Pascoaes é responder à pergunta que todo o mortal faz a si próprio: "Para que existo?" No entanto, a resposta que encontramos neste texto de Pascoaes não é a resposta a esta pergunta "existencial", mas a resposta a outra pergunta: a do sentido da vida, não da vida individual de cada um dos mortais, mas da vida humana como manifestação biológica. O sentido da vida é interpretado como a finalidade da vida no âmbito da evolução cósmica. A ideia de finalidade foi varrida do domínio científico: a imagem científica do mundo rejeita a ideia de finalidade, como se o universo tivesse evoluído por acção do mero acaso, "a mais metafísica das entidades": "Atribuir ao acaso todos os fenómenos que se deram a favor do advento da Humanidade, é negar qualquer explicação desses fenómenos; é negar a nossa mais íntima tendência, o poder intelectual definidor. E é negar o próprio homem, não distinguir a ridícula macaca da bela circassiana, o guincho da palavra, a Caverna do Parténon". É certo que Pascoaes prefere "a concepção poética ao conceito científico", mas neste texto pretende reinserir uma noção científica de finalidade no seio da ciência, de modo a explicar o sentido ascendente da evolução sem negar a humanidade do homem e o seu poder intelectual definidor, isto é, a sua faculdade mitopoética. Pascoaes defende a tese de que "o destino da vida humana resulta fatalmente duma outra vida espiritual superior, que aquela gerou, fazendo que o ser humano inferior, a partir desse momento genésico, tenha como fim aproximar-se dessa vida espiritual mais perfeita". Ao longo da evolução cósmica emergiram, numa ordem de sucessão dinâmica ascencional e, portanto, de complexidade e aperfeiçoamento constantes, quatro reinos ou formas cósmicas - o mineral, o vegetal, o animal e o espiritual, obedecendo a uma única lei, a lei de excedência. A natureza evoluiu no sentido de adquirir "o máximo poder de consciência". Graças ao seu princípio activo, o éter (Haeckel), a estrutura da matéria é intrinsecamente dinâmica: "O éter, princípo activo, nas suas condensações em massa ponderável, depositou nesta grandes reservas de energia latente que, em certos períodos de evolução cósmica, se expande, dando à matéria a faculdade de se exceder e traduzir em formas originais de vida, sempre superiores às antecedentes. Se a evolução universal se fizesse apenas à custa das energias ordinárias, aquelas que estão sempre despertas, (nos períodos intergenésicos) essa evolução não se faria sempre num sentido ascensional. Vê-se que o Universo tem grandes reservas de forças latentes que, de vez em quando (nos períodos genésicos correspondentes ao aparecimento das quatro grandes formas cósmicas) se expande e acorda, fazendo passar a matéria nebulosa a estrela, da estrela a planeta; de pedra e ferro e água, etc., a árvore e flor; de árvore a peixe, a réptil, a ave, a mamífero, a homem; e deste, enfim, ao ser espiritual que, em virtude da sua idêntica estrutura à do éter inicial, fecha o círculo das grandes metamorfoses do Universo". Ou, como sintetiza Pascoaes num outro artigo: "O éter condensou-se em massa ponderável, dando origem à matéria atómica; esta, excedendo-se em virtude da lei de excedência, gerou a fase vegetal, e esta, por sua vez, a fase animal; e esta ainda, graças à mesma lei, deu origem à fase psíquica, alcançando assim a matéria a estrutura e qualidades iniciais, e fechando-se o grande círculo evolutivo do Cosmos". Isto significa que "a matéria principia em dinamismo inconsciente e termina, após os seus aspectos transitórios e dolorosos, em dinamismo consciente ou espírito". O aspecto mais interessante da teoria do sentido da vida de Pascoaes reside no facto de considerar que os "fenómenos espirituais" formam um mundo distinto e autónomo, - a noosfera na terminologia de Chardin ou de Monod ou o mundo 3 na linguagem de Popper -, do reino animal, isto é, "um novo Reino, o último em que se divide o Universo e para o qual os três Reinos anteriores caminham, realizando os seus respectivos fins". A lei de excedência mediante a qual cada ser ou coisa de um reino procura ir além de si mesmo, excedendo-se, é uma lei finalista ou teleonómica: "a vida mais perfeita atraí a menos perfeita", ou seja, "o fim dum ser resulta da sua tendência para outro ser que lhe é distinto e superior". Embora o denomine Reino Psíquico, identificando-o com o mundo 2 de Popper e atribuindo o seu estudo à Psicologia, Pascoaes acaba por corrigir esse erro quando afirma que o fim da vida humana é aproximar-se constantemente desse reino objectivo dos seres espirituais, que o próprio homem criou, "sobrenaturalizando" e "cultivando" a natureza, transformada e apropriada como a Grande Casa do Espírito, a Pátria, a Terra-Natal, resguardada na quadratura do mundo, graças à sua faculdade apurada de se exceder e de se transcender, aperfeiçoando-se moralmente e objectivando na história a sua liberdade e a sua aspiração divina. Se nesta última metamorfose da matéria que é o "reino do espírito" (Hegel) "Deus ocupa o lugar correspondente ao do homem na escala zoológica", então a divindade é a "medida do homem" (Hölderlin): o homem caminha na direcção de Deus e, nesse sentido, a antropologia liberta-se da zoologia e tende a ser atraída pela teologia no âmbito aberto de um antropoteísmo. A confusão psicologista só surge quando não se leva em conta o interaccionismo: apesar de serem autónomos, os reinos interagem entre si, o que inviabiliza uma análise estritamente reducionista da vida, da mente e dos seres espirituais que vivem no nosso cérebro, porque considerar os fenómenos espirituais como parte integrante do reino animal equivale a considerar os fenómenos orgânicos como parte integrante dos fenómenos inorgânicos: uma ideia não é uma mera função cerebral. O neuroreducionismo constitui um erro: as ideias e o cérebro formam dois reinos distintos, pertencentes a duas fases distintas da evolução cósmica, mas ligam-se de tal modo que o cérebro apenas constitui o meio onde as ideias habitam, e "o nosso eu não é mais do que a harmonia consciente que resulta do conjunto de todas as formas e seres espirituais que vivem no nosso cérebro". Pascoaes cunhou a expressão "Biologia Psíquica" para designar a disciplina que estuda as ligações entre o cérebro e as ideias, bem como a reprodução das ideias e a sua difusão através dos contactos com os cérebros e as suas redes neurais. Pascoaes previu assim o surgimento das neurociências, em especial da psicologia biológica (biopsicologia) e da biologia do espírito (neurociência espiritual). O mundo das sensações de Alberto Caeiro não resiste à solidez da explicação das sensações elaborada por Pascoaes, o que mostra a sua superioridade intelectual em relação a Fernando Pessoa: o homem como "argonauta das sensações" abdica do pensamento e, nesta abdicação, despede-se da sua humanidade, retraindo-se no "animal" desalmado incapaz de dar "um passo para alterar /Aquilo a que chamam a injustiça do mundo" (Alberto Caeiro). A teoria do sentido da vida de Pascoaes suscita problemas filosóficos intrigantes que ainda não foram pensados. A resposta de Pascoaes à pergunta "Para que existo?" desvia-se da própria pergunta para a recolocar num novo horizonte, recuperando o sentido da existência: a era da técnica, ou melhor, da tecnociência, que construiu "o seu ponto de vista, entrincheirando-se nele, egoísta e intolerante, pretendendo, como os seus inimigos, governar o mundo" através do confinamento depressivo das criaturas dentro da sua existência animal, do materialismo grosseiro e do mercantilismo. Com o reino intolerante do "clericalismo científico" emergiu a "crise moral" que "queima as almas", tal como a Inquisição tinha "queimado os corpos". Este desvio justifica-se pelo facto do homem contemporâneo, o homem da técnica, o "homem industrial", comportar-se como um "antropóide" que se arrepende de ser homem. Não comportar-se como homem humano, isto é, como criador do reino dos seres espirituais, constitui o drama psicológico da humanidade na era da técnica, essa "deusa de metal" ou "mulher eléctrica". Pascoaes atribui a responsabilidade por este arrependimento de ser homem à própria ciência, neste caso particular ao darwinismo, que não admite que o homem seja mais antropos do que antropóide: a ciência teima em reduzir o homem à sua condição animal, negando-lhe a sua dimensão espiritual e a sua capacidade de se transcender e de se realizar como ser espiritual, isto é, como ser livre e criador de cultura. Isto não implica uma desvalorização dos animais ou mesmo da própria animalidade do homem, porque, como escreve Pascoaes, "os animais são pessoas, como nós somos animais". O destino do homem não é ser um mero antropóide, prisioneiro da "actividade vegetal" - "nascer para comer e comer para morrer" - num planeta convertido em "refeitório e cemitério", mas "ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus". A tarefa do homem é compreender a sua existência e superá-la mediante a transição do material para o imaterial: o homem é, para Pascoaes, "um valor absoluto na sua actividade espiritual" e esta actividade cultural é "síntese consciente do Universo", síntese simultaneamente consciente e emotiva, científica e poética. Como valor absoluto, o homem move-se no reino dos seres espirituais que giram na "órbita de Deus" (G. Junqueiro), sonhando a própria essência do mundo, de modo a libertar-se do nada que o aflige na sua condição mortal de suspenso do abismo e a ampliar o mundo através da sua actividade de transcendência, acrescentando-lhe o mundo da cultura. Esta "concepção existencial do homem", a do homem universal, simultaneamente físico e metafísico, sem o qual o mundo permaneceria como abismado numa absoluta inexistência, inconsciente de si mesmo, não se conforma com o "conceito puramente científico da Existência" produzido pela ciência na era da técnica: a noção da existência contida "numa balança ou entre os ponteiros dum compasso", como se pudesse ser objecto de cálculos matemáticos. Ao tratar o homem como um mero antropóide, o darwinismo aliena a existência humana da sua essência e da sua finalidade, impedindo-a de atingir o seu sentido pessoal e colectivo da vida. A concepção existencial do homem, exposta no "Regresso ao Paraíso" (1912), corresponde à verdadeira filosofia, isto é, à filosofia poética, que permite assimilar o mundo a nós, sem no entanto o desnaturar. A recepção portuense de Nietzsche não é alheia a Pascoaes: Zaratustra anunciou à multidão que "o homem é uma corda amarrada entre o animal e o super-homem - uma corda por cima de um abismo. Um perigoso passar para a outra banda, um perigoso estremecer e ficar parado". A grandeza do homem reside no facto de ser uma ponte e não um fim: "aquilo de que se pode gostar no homem é que ele é uma travessia e um afundamento". Pascoaes retém a noção de ponte ou de travessia: o homem é uma ponte entre o antropóide e o Sagrado, uma ponte que se ergue no "abismo sem fundo" e que o homem deve atravessar para encontrar o sentido da sua vida. Ou, nas palavras do poeta Pascoaes: "A alma, em virtude da sua força activa de esperança, visa o Futuro, - o Incriado; e em virtude da sua força passiva de lembrança, apenas encontra o Passado ou a Natureza criada, imenso espectro evidente nas suas formas endurecidas e mortas. O Universo é o cadáver de Deus, a estátua fria e inerte da Esperança. As estrelas gelaram-lhe na face, como antigas lágrimas que já não encerram dor alguma. O sol é um riso de metal caindo sobre um globo de ferro. A alma fulge na escuridão absoluta. Canta no silêncio absoluto. Por baixo dela jaz o fantasma do Passado; por cima a noite silenciosa do Futuro. E ela própria é passado e futuro, invocação e desejo. Ausente de si mesma no que há-de ser e no que foi, ou vê espectros da Morte materializados, ou sombras por encarnar da Vida. O Presente divino, a Realidade em si, a Esperança imaterializável, Deus, excepcionalmente vislumbrados, fogem à sua clara e constante percepção. No mundo sensível só há futuro e passado. O movimento abstracto da esperança (tempo futuro) mal se concretiza, é lembrança, movimento inerte, matéria (tempo passado). A cada acção criadora da esperança (espaço e tempo futuro) corresponde a sua paralisação para trás em formas criadas (tempo e espaço passado)". (Publicado aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
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