«Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés. «Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés. «Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
«Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
«Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
«Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...» (Mário de Sá-Carneiro)
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...» (Mário de Sá-Carneiro)
A Filosofia que habita a linguagem, juntamente com a poesia, tem sido avessa à meditação da chamada "poesia confessional", talvez por temer dispersar-se nas linguagens plurais dos mais diversos eus singulares e dos seus mundos próprios. No entanto, este receio e pudor filosóficos não se justificam, primeiro, porque, como mostrou Hegel, o indivíduo é mediado pelo universal e vice-versa, e, segundo, porque a lingua(gem) usada pelo poeta é uma objectividade que, a-propriada pelo poeta e pelos seus leitores, serve de mediador entre o indivíduo e a sociedade, configurando as emoções subjectivas e, como meio de expressão dos conceitos, produzindo "a relação indispensável com o colectivo e a realidade social" (Adorno). A essência da poesia não se esgota na mera expressão da subjectividade ou na mera expressão da sociedade: a poesia é a "experiência" do processo dialéctico através do qual o indivíduo e a sociedade se constituem um ao outro e se determinam reciprocamente. Nessa experiência, a lingua(gem) a-propriada cria mundos que falam uma voz própria, a voz do poeta, cujo eu se esquece de si no interior da língua, tornando-se plenamente presente. Toda a poesia abre e instaura uma expansão de sentido no mundo já significado e, como epifania de mundo, consagra um mundo que nos arranca do nosso próprio mundo, oferecendo-nos um novo espaço, bem como a oportunidade de habitar o mundo que fundou. O pensamento filosófico procura elucidar os mundos poéticos, deixando-os falar no seu dizer originário. Mário de Sá-Carneiro quis ser escutado e compreendido: "Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda" ("Caranguejola"). Ou, nas palavras de Paul Celan: "O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção - decerto nem sempre muito esperançada - de um dia dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho - têm um rumo".
O poema de Mário de Sá-Carneiro, citado em epigrafe, intitula-se "Feminina" e, nele, o poeta "confessa" um desejo secreto: Mário de Sá-Carneiro "queria ser uma mulher", não uma mulher qualquer, mas um determinado tipo de mulher, a mulher fatal que excitasse todos os homens que a olhassem e que tivesse muitos amantes, enganando-os a todos, até mesmo o amante predilecto. Porém, o poeta, sendo homem e vivendo numa determinada sociedade, sabe bem que estes seus "enleios" e "fantasmas" não podem ser desculpados num homem: as noções sociais de homem e de masculinidade incorporadas pelo poeta vedam-lhe o acesso público e real a esse desejo secreto, do qual toda a sua poesia é uma bela poetização. Embora não seja nomeada, a sociedade está presente nessa "dispersão" interior do eu poético que revela o conflito interior, o antagonismo entre o desejo de ser mulher e a sociedade incorporada e interiorizada que proíbe a sua manifestação e a sua realização: a grande ausente, a sociedade amputadora, fala do interior do eu, como a sua consciência moral, segredando-lhe: "O teu desejo não pode ser desculpado no homem que és". O conflito do eu consigo mesmo reflecte, no labirinto interior, azul anímico, o antagonismo do indivíduo e da sociedade, em cuja dialéctica se joga a identidade. Se a socialização fosse completamente triunfante e bem sucedida, o problema da identidade, o surgimento na consciência da pergunta "Quem sou eu?", não existiria: a identidade seria dissolvida na simetria completa entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, o eu seria a sociedade e a sociedade, o eu, o que constitui uma impossibilidade antropológica. A socialização nunca é totalmente bem sucedida e, em todas as sociedades, emergem assimetrias e rupturas entre a realidade objectiva e a realidade subjectiva, que permitem às pessoas conceberem-se a si mesmas em termos de "profundidades ocultas" ou de um jogo de identidades, sem o qual o individualismo e a inovação não seriam possíveis. Qualquer humano é potencialmente um traidor de si mesmo, no sentido de poder trair, num determinado momento da vida, um dos seus múltiplos eus, públicos ou privados. Sá-Carneiro pensou esta traição de si mesmo como crime: o crime não é somente o acto de trair o "eu" que lhe é socialmente atribuído pela socialização primária - "Tu és um homem e deves comportar-te como homem em todas as circunstâncias da tua vida" - e confirmado pelos outros significativos e generalizados (G.H. Mead) no decorrer da conversação quotidiana, mas também e fundamentalmente trair o seu "eu mais íntimo", aquele que não se deixa colonizar pelo mundo estabelecido, com o qual discorda. Aceitar o eu socialmente atribuído e agir em conformidade com os papéis adequados é trair o eu secreto, e escutar este último e abrir-lhe as portas da vida é trair o "eu público": em qualquer uma destas circunstâncias e opções de escolha, o homem é sempre um traidor de si mesmo, e, por isso, Mário de Sá-Carneiro é levado, desde os poemas de juventude, a definir o homem como um "criminoso": "Eu quero ser um criminoso, /Se ter amor é um crime". Aos olhos da sociedade heterosexista, ter amor não é um crime, desde que o indivíduo se conforme aos papéis sexuais e de género que lhe são atribuídos, identificando-se com eles, mas, quando não há essa identificação, devido a um acidente biográfico, social ou biológico, o amor que deseja e procura desvia-o da "tirania da normalidade" (Espinosa), tornando-se um crime numa dupla-circunstância: por um lado, no caso desse amor revelar-se, um crime contra os padrões sociais que regularizam as relações sexuais, e, por outro lado, no caso de não se revelar, um crime que o indivíduo comete contra "um Outro que eu não posso acorrentar" ("Ângulo"), a sua identidade subjectivamente real. Os crimes diferenciam-se pela "distância" ("Distante Melodia") em relação a esse "Outro", o mais próximo de si mesmo e o mais escondido dos outros, que, no poema "Abrigo", deseja ser mulher de Paris: "Paris - meu lobo e amigo... /- Quisera dormir contigo, /Ser todo a tua mulher".
Como homem, com uma identidade socialmente atribuída, logo à nascença, e marcada por um acidente anatómico, a visibilidade do falo, que colide com a sua mais secreta identidade subjectivamente real, Mário de Sá-Carneiro é um "fantasma", isto é, um "emigrado" de si mesmo, mais precisamente desse "Outro que não posso acorrentar" por ser demasiado íntimo, próximo e real: a identidade subjectivamente real torna-se uma identidade de fantasia, objectivada não só dentro da sua consciência, mas também, numa forma transfigurada, como desejo de ser mulher, na sua poesia. O poema "Como Eu Não Possuo" revela o confronto interior desses dois mundos discordantes:
«Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
«Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente! «Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo. «Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem me estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!... «Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?... «Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua.
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!... «Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria... «Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante... «De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo». Todos os humanos que o rodeiam possuem alguma coisa, mas ele, Mário de Sá-Carneiro, parece ser o único que nada possui, até "mesmo quando enlaço". "Castrado de alma" e sem saber fixar-se e vincular-se a outro humano, homem ou mulher, afunda-se na sua dor: não é como os outros e, no mundo destes outros que possuem, ele é um emigrado, um estranho ou um clandestino num mundo heterosexista, no seio do qual não pode esperar por alguém por causa da sua "delicadeza" ("Caranguejola"). O desejo da mulher que vai na rua é "desejo errado", porque o que o poeta deseja possuir não é a mulher como ser-outro, complemento de si mesmo, mas a sua "carne estilizada" no seu próprio corpo: Mário de Sá-Carneiro só vibraria "se fosse aqueles seios transtornados" e "se fosse aquele sexo aglutinante". Na posse imaginária da mulher, o poeta quer ser e sentir "aquilo que estrebucho e não possuo", isto é, "quer (simplesmente) ser mulher": possuir seios transbordantes e aguçados e possuir, em vez do pénis, uma vagina. A dor em que se afunda, sem conseguir ascender ao céu - ser mulher - ou descer ao lodo - ser homossexual -, é o rasgo da dilaceração ou, como diz o poeta, castração de alma, a alma amputada, no sentido que é dito neste poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, /Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio /Que vai de mim para o Outro». A dor dilacera e dispersa a alma, diferenciando-a e cortando-a em pedaços, as diversas identidades de Mário de Sá-Carneiro. Mas, ao rasgar a sua unidade anímica e ao diferenciá-la, a dor reúne e articula o que foi separado pelo rasgo e pelo corte. A alma do poeta habita a dor, onde encontra o seu suporte - o "pilar" - no "intermédio": a "ponte", o "labirinto" ou a "escada" entre duas identidades, uma socialmente atribuída, o "desejo errado" - ser homem heterossexual -, e outra - ser mulher heterossexual - poetizada para enfrentar a identidade não-assumida aberta e publicamente: a homossexualidade passiva. Mário de Sá-Carneiro poetiza o entre, o intermédio: o desejo de ser mulher, a identidade transexual como recurso poético e ficcional para resolver a sua dispersão interior. Porém, a identidade ficcionada elaborada para reunir a dispersão interior produz um outro corte mais profundo que não cicatriza: rasga a sua unidade com o corpo que, ao "espelho", a nega como "fantasiada guerra" ou "fantasia alada". Alguns versos de dois poemas revelam o desconforto com o próprio corpo. Nos poemas "Crise Lamentável" e "O Fantasma", o poeta, além de revelar desconforto de género, confessa um desejo de mudança corporal: "Gostava tanto de mexer na vida, /De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe... /E não há forma: cada vez perdida /Mais a destreza de saber pegar-lhe. /(...) /"Que tudo em mim é fantasia alada, /Um crime ou bem que nunca se comete: /E sempre o Oiro em chumbo se derrete /Por meu Azar ou minha Zoina suada..." (Crise Lamentável). "O que farei na vida - o Emigrado /Astral após que fantasiada guerra -/Quando este Oiro por fim cair por Terra, /Que ainda é oiro, embora esverdinhado?" (O Fantasma).
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente! «Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu.
Falta-me unção pra me afundar no lodo. «Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem me estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!... «Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?... «Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua.
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!... «Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria... «Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante... «De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo». Todos os humanos que o rodeiam possuem alguma coisa, mas ele, Mário de Sá-Carneiro, parece ser o único que nada possui, até "mesmo quando enlaço". "Castrado de alma" e sem saber fixar-se e vincular-se a outro humano, homem ou mulher, afunda-se na sua dor: não é como os outros e, no mundo destes outros que possuem, ele é um emigrado, um estranho ou um clandestino num mundo heterosexista, no seio do qual não pode esperar por alguém por causa da sua "delicadeza" ("Caranguejola"). O desejo da mulher que vai na rua é "desejo errado", porque o que o poeta deseja possuir não é a mulher como ser-outro, complemento de si mesmo, mas a sua "carne estilizada" no seu próprio corpo: Mário de Sá-Carneiro só vibraria "se fosse aqueles seios transtornados" e "se fosse aquele sexo aglutinante". Na posse imaginária da mulher, o poeta quer ser e sentir "aquilo que estrebucho e não possuo", isto é, "quer (simplesmente) ser mulher": possuir seios transbordantes e aguçados e possuir, em vez do pénis, uma vagina. A dor em que se afunda, sem conseguir ascender ao céu - ser mulher - ou descer ao lodo - ser homossexual -, é o rasgo da dilaceração ou, como diz o poeta, castração de alma, a alma amputada, no sentido que é dito neste poema: «Eu não sou eu nem sou o outro, /Sou qualquer coisa de intermédio: /Pilar da ponte de tédio /Que vai de mim para o Outro». A dor dilacera e dispersa a alma, diferenciando-a e cortando-a em pedaços, as diversas identidades de Mário de Sá-Carneiro. Mas, ao rasgar a sua unidade anímica e ao diferenciá-la, a dor reúne e articula o que foi separado pelo rasgo e pelo corte. A alma do poeta habita a dor, onde encontra o seu suporte - o "pilar" - no "intermédio": a "ponte", o "labirinto" ou a "escada" entre duas identidades, uma socialmente atribuída, o "desejo errado" - ser homem heterossexual -, e outra - ser mulher heterossexual - poetizada para enfrentar a identidade não-assumida aberta e publicamente: a homossexualidade passiva. Mário de Sá-Carneiro poetiza o entre, o intermédio: o desejo de ser mulher, a identidade transexual como recurso poético e ficcional para resolver a sua dispersão interior. Porém, a identidade ficcionada elaborada para reunir a dispersão interior produz um outro corte mais profundo que não cicatriza: rasga a sua unidade com o corpo que, ao "espelho", a nega como "fantasiada guerra" ou "fantasia alada". Alguns versos de dois poemas revelam o desconforto com o próprio corpo. Nos poemas "Crise Lamentável" e "O Fantasma", o poeta, além de revelar desconforto de género, confessa um desejo de mudança corporal: "Gostava tanto de mexer na vida, /De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe... /E não há forma: cada vez perdida /Mais a destreza de saber pegar-lhe. /(...) /"Que tudo em mim é fantasia alada, /Um crime ou bem que nunca se comete: /E sempre o Oiro em chumbo se derrete /Por meu Azar ou minha Zoina suada..." (Crise Lamentável). "O que farei na vida - o Emigrado /Astral após que fantasiada guerra -/Quando este Oiro por fim cair por Terra, /Que ainda é oiro, embora esverdinhado?" (O Fantasma).
O verdadeiro eu do poeta está fechado hermeticamente no armário e, como não conseguiu "estender pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés", entregou-se desesperadamente a uma "fantasiada guerra" que é "resgatada" na poesia: Mário de Sá-Carneiro procurou habitar poeticamente a sua verdadeira identidade, embora numa forma transfigurada, mas não encontrou quietude e serenidade e a sua alma peregrina e "vagabunda", mergulhada e atormentada no "cismar" ("Escala") consigo mesma e na "divagação" ("Manucure"), não se transfigurou em alma azul, capaz de operar a transformação desejada: "E eu que sou o rei de toda esta incoerência, /Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la /E giro até partir... /Mas tudo me resvala /Em bruma e sonolência" ("A Queda"). No poema "Dispersão", fala da perda: "Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, /E hoje, quando me sinto, /É com saudade de mim. /Passei pela minha vida /Um astro doido a sonhar. /Na ânsia de ultrapassar, /Nem dei pela minha vida... /Para mim é sempre ontem, /Não tenho amanhã nem hoje: /O tempo que aos outros foge /Cai sobre mim feito ontem". As "catedrais de Ser-Eu" ruíram todas, quais ilusões lunares e copulares do Mário, e, como nenhuma das suas vidas, a real e a idealizada numa figura de papel, lhe agradavam, Mário de Sá-Carneiro entrou numa profunda crise de angústia, uma "crise lamentável", que o conduziu ao suicídio prematuro, perpetrado no Hotel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Este acto de antecipação voluntária da morte certa, no qual Mário de Sá-Carneiro afirma plenamente a sua liberdade poética, constitui a acusação derradeira da sociedade heterosexista e fechada que nega aos seus membros a possibilidade de viverem de acordo com o seu mais íntimo eu e as suas aspirações a ser mundo na abertura do mundo comum. A ânsia do poeta é a ânsia por uma sociedade (eroticamente) plural, onde cada um possa habitar sem angústia o seu verdadeiro mundo subjectivo e nele encontrar a serenidade e a quietude da alma azul: o início originário de um novo mundo. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Estão já agendados mais 2 posts para este mês: ambos dedicados à poesia. :)
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