«Sem o homem, nada poderia ser pensado e transmitido». (Ernst Bloch) A filosofia só se emancipou da teologia no século XVII, quando Descartes avançou com a fórmula: «O homem é uma máquina na qual reside um espírito imortal». Este esquema dualista cartesiano mostrou-se eficaz para a organização dualista de todas as ciências: as ciências do espírito e as ciências da natureza, mas a filosofia não se tornou ateia. É certo que o corpo foi interpretado no sentido das ciências naturais recentemente descobertas, como um corpo entre outros corpos, mas o espírito não foi desligado dos argumentos teológicos, até porque Descartes nunca impugnou o tema da criação. Isto significa que a tese da teologia, segundo a qual o homem é obra de Deus, criado de um modo imediato, unindo a um corpo material uma alma espiritual, individual e imortal, não sofreu grandes sobressaltos, coexistindo quase pacificamente com os métodos dos biólogos, dos fisiólogos e dos químicos aplicados ao estudo do corpo. Mas a alma humana era estudada pela psicologia e as suas manifestações eram estudadas pela linguística, pela lógica e por outras ciências do espírito. O idealismo alemão interrompeu esta evolução por um curto período de tempo: Kant, Fichte, Hegel e Schelling não filosofaram como dualistas, mas como "espiritualistas" no sentido de terem espiritualizado completamente o homem, e alguns deles voltaram a aproximar a filosofia da teologia, embora a fenomenologia hegeliana possa ser interpretada como uma secularização da antropologia judaico-cristã. Schopenhaeur foi dualista. Apenas os discípulos de Esquerda de Hegel, em particular Feuerbach e Marx, conseguiram emancipar a antropologia filosófica da teologia e, nessa luta contra a prisão teológica, Darwin teve uma palavra muito decisiva, sobretudo quando afirma que o homem descende de um «macaco».
Contudo, o contributo destes e de outros pensadores, tais como Nietzsche, é demasiado conhecido e, por isso, preferimos falar daquele que tem sido considerado como o verdadeiro fundador da antropologia filosófica: Max Scheler (1874-1928), cuja obra Die Stellung des Menschen im Kosmos foi publicada precisamente no ano da sua morte, em 1928. Com efeito, esta obra introduziu uma mudança radical no modo como coloca o problema do homem: o homem já não é interpretado na sua relação com Deus, mas na diferença essencial entre o homem e o animal. Ao colocar a diferença entre o homem e o animal no centro da discussão antropológica, Scheler é levado a distinguir duas maneiras de ser, voltando assim à indagação do problema biológico do homem, abandonado durante muito tempo aos cuidados de zoólogos e de médicos na qualidade de «antropologia física» ou, como se prefere hoje dizer, de »antropologia biológica». Scheler defendeu que no que distingue o homem dos animais mais inteligentes (inteligência, fantasia, memória, capacidade de selecção, uso de ferramentas) somente existe uma diferença de grau, mas não uma diferença essencial, o que parece estar demasiado próximo da nossa moderna visão do assunto. Para Scheler, o princípio especificamente humano que constitui a diferença essencial seria um princípio oposto à vida, a que chamou espírito. A essência do espírito foi definida pela sua capacidade de desligar-se da pressão do biológico e de libertar-se da dependência da vida. Assim, o homem como ser portador de espírito já não está determinado pelos seus instintos e já não se adapta ao seu meio ambiente como um animal. Ele é capaz de elevar o meio ambiente à objectividade e, portanto, capaz de distanciar-se desse meio dado. Isto significa que o princípio especificamente humano é precisamente esta objectividade, esta liberdade de origem interna, esta possibilidade do conhecimento e da acção humanos de ser determinados pelo modo de ser das coisas, tenham ou não valor biológico. Assim, Scheler pode afirmar que o homem tem o «mundo», tem uma esfera aberta de coisas, e que está «aberto ao mundo». O homem pode objectivar-se a si mesmo e possui autoconsciência. Esta auto-objectivação (ou auto-alienação) e o tomar distância (ou colocar-se de lado), capacitam-no para reprimir os seus próprios impulsos e tendências e, portanto, resistir a si mesmo e aos seus próprios fenómenos vitais. Isto faz potencialmente dele um ser moral, ou seja, um ser que «diz não» à sua própria vida e que é capaz de uma conduta ascética, mediante a repressão ou o controle dos seus impulsos. É através desta autonegação que o espírito ganha a sua energia, sobretudo quando Scheler parece encarar o espírito, pelo menos nos últimos anos da sua vida, como um adversário da vida. A título de resumo, podemos sintetizar os resultados de Scheler nas seguintes teses: 1. delineou sobre o fundo da vida animal a tese da abertura do homem ao mundo;
2. afirmou que o anímico, isto é, a sensibilidade, a fantasia, a memória, o sentimento, etc., eram fenómenos vitais não essencialmente distintos dos fenómenos propriamente biológicos;
3. afirmou que o espírito significava a capacidade de libertar-se das pressões biológicas e, deste modo, de elevar-se acima do meio ambiente. Contudo, embora convincente, a antropologia de Scheler limita-se a deslocar o dualismo, o qual já não se estabelece entre o corpo e a alma, mas entre o espírito e o «corpo animado», chegando ao extremo ao opor o espírito à vida e reconhecendo a sobrevivência da pessoa humana para além da morte. A sua concepção de homem ainda é claramente «centrada» e este centro a partir do qual o homem executa os actos conscientes através dos quais objectiva o mundo, o seu corpo e a sua alma, não faz parte deste mundo. Assim, o espírito não é apenas algo distinto da vida, mas também algo distinto do mundo, que poderá estar relacionado com o corpo e a alma humanos num "Além" sobre o qual Scheler não disse nada. «O homem é, diz Scheler, o ser superior a si próprio e ao mundo». Ora, este dualismo renovado de Scheler foi superado por dois dos seus discípulos: Plessner e Gehlen, sobre os quais já falámos noutros posts. J Francisco Saraiva de Sousa
Contudo, o contributo destes e de outros pensadores, tais como Nietzsche, é demasiado conhecido e, por isso, preferimos falar daquele que tem sido considerado como o verdadeiro fundador da antropologia filosófica: Max Scheler (1874-1928), cuja obra Die Stellung des Menschen im Kosmos foi publicada precisamente no ano da sua morte, em 1928. Com efeito, esta obra introduziu uma mudança radical no modo como coloca o problema do homem: o homem já não é interpretado na sua relação com Deus, mas na diferença essencial entre o homem e o animal. Ao colocar a diferença entre o homem e o animal no centro da discussão antropológica, Scheler é levado a distinguir duas maneiras de ser, voltando assim à indagação do problema biológico do homem, abandonado durante muito tempo aos cuidados de zoólogos e de médicos na qualidade de «antropologia física» ou, como se prefere hoje dizer, de »antropologia biológica». Scheler defendeu que no que distingue o homem dos animais mais inteligentes (inteligência, fantasia, memória, capacidade de selecção, uso de ferramentas) somente existe uma diferença de grau, mas não uma diferença essencial, o que parece estar demasiado próximo da nossa moderna visão do assunto. Para Scheler, o princípio especificamente humano que constitui a diferença essencial seria um princípio oposto à vida, a que chamou espírito. A essência do espírito foi definida pela sua capacidade de desligar-se da pressão do biológico e de libertar-se da dependência da vida. Assim, o homem como ser portador de espírito já não está determinado pelos seus instintos e já não se adapta ao seu meio ambiente como um animal. Ele é capaz de elevar o meio ambiente à objectividade e, portanto, capaz de distanciar-se desse meio dado. Isto significa que o princípio especificamente humano é precisamente esta objectividade, esta liberdade de origem interna, esta possibilidade do conhecimento e da acção humanos de ser determinados pelo modo de ser das coisas, tenham ou não valor biológico. Assim, Scheler pode afirmar que o homem tem o «mundo», tem uma esfera aberta de coisas, e que está «aberto ao mundo». O homem pode objectivar-se a si mesmo e possui autoconsciência. Esta auto-objectivação (ou auto-alienação) e o tomar distância (ou colocar-se de lado), capacitam-no para reprimir os seus próprios impulsos e tendências e, portanto, resistir a si mesmo e aos seus próprios fenómenos vitais. Isto faz potencialmente dele um ser moral, ou seja, um ser que «diz não» à sua própria vida e que é capaz de uma conduta ascética, mediante a repressão ou o controle dos seus impulsos. É através desta autonegação que o espírito ganha a sua energia, sobretudo quando Scheler parece encarar o espírito, pelo menos nos últimos anos da sua vida, como um adversário da vida. A título de resumo, podemos sintetizar os resultados de Scheler nas seguintes teses: 1. delineou sobre o fundo da vida animal a tese da abertura do homem ao mundo;
2. afirmou que o anímico, isto é, a sensibilidade, a fantasia, a memória, o sentimento, etc., eram fenómenos vitais não essencialmente distintos dos fenómenos propriamente biológicos;
3. afirmou que o espírito significava a capacidade de libertar-se das pressões biológicas e, deste modo, de elevar-se acima do meio ambiente. Contudo, embora convincente, a antropologia de Scheler limita-se a deslocar o dualismo, o qual já não se estabelece entre o corpo e a alma, mas entre o espírito e o «corpo animado», chegando ao extremo ao opor o espírito à vida e reconhecendo a sobrevivência da pessoa humana para além da morte. A sua concepção de homem ainda é claramente «centrada» e este centro a partir do qual o homem executa os actos conscientes através dos quais objectiva o mundo, o seu corpo e a sua alma, não faz parte deste mundo. Assim, o espírito não é apenas algo distinto da vida, mas também algo distinto do mundo, que poderá estar relacionado com o corpo e a alma humanos num "Além" sobre o qual Scheler não disse nada. «O homem é, diz Scheler, o ser superior a si próprio e ao mundo». Ora, este dualismo renovado de Scheler foi superado por dois dos seus discípulos: Plessner e Gehlen, sobre os quais já falámos noutros posts. J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
Bom post Francisco!
Pelo que aprendi ao ler o teu post (não conheço bem Scheler) embora continue uma visão meio sobre-natural do Homem, existe uma reflexão da distinção deste com o animal. Ao contrário do modelo cientifico actual há bastantes semelhanças, Scheler faz uma clara (ou não tão clara) divisão entre estes. Daí a necessidade do sentimentos religioso. Esse pensamento abstracto do qual o Homem é capaz também vem da noção que este tem de Tempo em oposição aos animais que tem noção de espaço. O Homem consegue pela mente viajar no tempo por exemplo, reflectir sobre o passado e futuro. O animal apenas consegue explorar o espaço das coisas.
Abraço, bom 2008
Sim, a necessidade do sentimento religioso, um aspecto muito negligenciado pela filosofia contemporânea, o que nos desarma face aos novos desafios do nosso tempo.
Scheler tem o seu momento fortemente "idealista", de resto legítimo, mas coloca a questão da distinção entre o animal e o humano, de um modo que pode ser retomado e alterado em função dos novos conhecimentos adquiridos. estou muito decidido a clarificar a antropologia filosófica e dá-la a conhecer, pelo menos aqui... alguns esboços.
O espaço e o tempo devem ser estudados novamente e ser colocados no centro da reflexão filosófica a diversos níveis, para além do antropológico.
O sentimento religioso, a simpatia, a ética, a sociologia do conhecimento, enfim a fenomenologia de Scheler merecem mais atenção. :)
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