«A auto-evidência é o campo do saber inquestionavelmente certo. A perda da auto-evidência abala este campo: sei cada vez menos, por isso tenho opiniões diferentes. /No "caso normal" da modernização não preciso mais decidir-me se estou disposto a sacrificar a minha vida por razões de fé ou por meras opiniões. O conhecimento inquestionavelmente seguro dissolve-se num conjunto de opiniões unidas de modo livre, sem mais o carácter de agregado muito constrangedor. Interpretações firmes da realidade tornam-se hipóteses. Convicções tornam-se questões de gosto. Preceitos tornam-se sugestões. Estas mudanças na consciência criam a impressão de certa superficialidade». (Peter L. Berger & Thomas Luckmann) Não me lembro de ter aprendido fenomenologia durante o curso: tenho uma vaga memória de ter escutado umas noções não menos vagas sobre Husserl e Merleau-Ponty, mas, como já os conhecia, ocupava o meu tempo a ler os meus mestres da Escola de Frankfurt, interrompendo as aulas para colocar questões que embaraçavam a professora e a reduziam à sua mais triste mediocridade, com o olhar perdido algures no horizonte. No entanto, redescobri novos livros de Merleau-Ponty, sobretudo os que eram omitidos nas aulas: introduzi o marxismo, mais precisamente clarifiquei a passagem da fenomenologia transcendental para a fenomenologia existencial e a síntese operada por Sartre e Merleau-Ponty entre fenomenologia e marxismo, mas a professora continuava a seguir as velhas e bolorentas folhas da sua pastinha de textos. Mudei de táctica e passei a discutir dois textos de Merleau-Ponty: "O Filósofo e a Sociologia" e "De Mauss a Claude Lévi-Strauss", que completava sem o nomear com as obras de Alfred Schutz (Ver foto). Devo acrescentar que, na altura, «picava» outra professora que queria ser mais revolucionária do que eu, trazendo para os debates da aula uma outra figura: Vilfredo Pareto. E foi numa dessas confluências caóticas de pensamentos que surgiu no meu espírito a ideia de levar até ao fim a redução fenomenológica, a qual mais tarde vai orientar a leitura que fiz de uma obra de Heidegger: "Kant e o Problema da Metafísica". Entre estes dois momentos vitais, há as aulas de neuro-anatomia, onde o professor me forçava a fazer uso dos meus conhecimentos de fenomenologia e de filosofia da mente: o resultado final foi a redução da ontologia a uma neuro-logia, com recurso à teoria (matemática) dos grafos. Esta redução é provavelmente a realização mais fascinante da minha vida académica: agradava aos professores de Medicina, mas irritava os professores de Filosofia que nunca compreenderam a leitura que fazia da fenomenologia, já sob a influência do estruturalismo e de uma figura incontornável: Louis Althusser que aburguesou facilmente o meu marxismo. Eu era nesse tempo um materialista convicto e usava teorias neurobiológicas fortes para renovar o materialismo: movia-me no âmbito do programa da biologia molecular e das neurociências. Mas deixei marca na Faculdade de Filosofia: uma ou outra molécula pardacenta tentou estabelecer contactos com professores da Faculdade de Medicina, como se estes não me colocassem a par do teor dos contactos: o nosso tema preferido nas conversas de bar ou mesmo nas aulas de genética das populações eram as moléculas filosóficas, as nossas batatas deslumbradas. A minha fenomenologia da célula já era computacional - aprendi programação nas aulas de genética - e hoje procuramos resolver esse problema com programas informáticos sofisticados. Porém, não foi a célula e a sua complexidade que me fizeram moderar o ritmo, mas a memória e a fisiologia do descanso: passei a defender um neuro-reducionismo moderado, fortemente apoiado na biologia das adições. É muito difícil desmentir tanto a versão forte e dura da neuro-redução, como a sua versão moderada: o suporte empírico foi minuciosamente escolhido para evidenciar a força dos modelos propostos. Porém, como fui eu que os elaborei, usando-os de modo complementar em função da natureza dos fenómenos analisados, descobri um terceiro modelo que supera os anteriores conservando-os. E é este último modelo que uso sem o explicitar para repensar a Filosofia. Nos centros de pesquisa científica e tecnológica, da genética molecular até às neurociências moleculares, passando pela bioquímica e pelo genoma, as comunidades científicas anseiam pelo regresso da Grande Filosofia: precisamos de teorias unificadas e sintéticas, pensadas de modo a articular as diversas áreas do conhecimento. Quando formulei o procedimento da neuro-redução, eu já conhecia a fenomenologia social da vida quotidiana de Alfred Schutz. A tradição fenomenológica é internamente diversificada: as abordagens filosóficas de Scheler, Heidegger, Schutz, Merleau-Ponty e Sartre não seguem necessariamente o mesmo caminho que Husserl percorreu. A maior parte dos fenomenólogos posteriores a Husserl renunciou ao desejo de produzir uma filosofia transcendental e voltou-se, num movimento da essência para a existência, para a experiência humana do mundo da vida. Husserl procurou estabelecer um esquema filosófico capaz de transcender o conhecimento empírico: a noção fundamental desse esquema é a de que toda a consciência é intencional no sentido que Franz Brentano lhe atribuiu. A intencionalidade da consciência significa que ela é sempre dirigida para objectos: não podemos apreender um suposto substrato de consciência enquanto tal, mas somente a consciência de algo. Para Brentano, todas as nossas experiências, tais como aparecem no fluxo do nosso pensamento, referem-se necessariamente a objectos experimentados: o pensamento, o temor, a fantasia ou a recordação só existem - respectivamente - como pensamento do objecto pensado, temor do objecto temido, fantasia do objecto desejado ou imaginado e recordação do objecto recordado. O carácter intencional de todas as nossas cogitações supõe uma distinção entre o acto de pensar e o objecto ao qual este acto se refere, entre o acto de perceber e o percebido, entre o cogitare e o cogitatum, enfim entre a noesis e o noema: a intencionalidade é o tema fundamental da investigação fenomenológica, que Husserl utiliza para radicalizar o conceito cartesiano do fluxo das cogitações. Nesta perspectiva, a epistemologia - a teoria do conhecimento - implica a ontologia: o conhecimento implica o ser e o «objectivo» só tem o significado que a consciência lhe atribui quando se dirige a ele. O carácter intencional das cogitações permite a Husserl radicalizar o conceito cartesiano de Ego. O método cartesiano exige uma mudança de atitude do homem perante o mundo, mediante a qual deixa de aceitar ingenuamente a existência do mundo tal como é: o carácter indubitável do ego cogitans só pode ser restabelecido mediante a dúvida filosófica. Descartes descobriu o âmbito da subjectividade transcendental como domínio da certeza, mas abandona-o logo a seguir quando identifica o ego com mens sive animus sive intellectus: o ego que só pode ser descoberto quando se separa do mundo e reflecte sobre ele é substituído pela alma ou mente humana dentro do mundo. A meditação cartesiana de Husserl inicia-se com a crítica fenomenológica desta identificação operada por Descartes. Para estabelecer o âmbito puro da consciência, Husserl elaborou o procedimento da redução fenomenológica: a fenomenologia não nega a existência do mundo externo, mas decide por razões meramente analíticas suspender a crença na sua existência. Por outras palavras, a fenomenologia abstém-se intencional e sistematicamente de todo o juízo a respeito da existência do mundo externo, colocando-o «entre parêntesis» ou efectuando a redução fenomenológica, de modo a ir mais além da atitude natural do homem que vive num mundo que aceita sem questionar: a passagem da atitude natural para a atitude filosófica visa alcançar um nível de certeza indubitável e revelar a esfera purificada da consciência, na qual se baseiam todas as nossas crenças, e a partir da qual podemos voltar à esfera mundana, na medida em que todas as nossas descobertas dentro da esfera aprioristicamente reduzida serão válidas na esfera mundana da nossa vida no mundo. Com o uso do método da epoché, Husserl demonstrou que era possível atingir uma esfera de consciência purificada: a subjectividade transcendental mais não é do que a esfera auto-suficiente de experiência fora do tempo e do espaço. A redução transcendental permite produzir verdades não-empíricas, apodícticas, a priori, que são universalmente válidas e livres de pressupostos. Além disso, constituem um baluarte seguro contra a dúvida céptica, o historicismo, o psicologismo, o relativismo e o irracionalismo político. Para evitar o idealismo subjectivo e a sua cilada solipsista, Husserl transformou a fenomenologia numa egologia transcendental: o mundo inteiro é conservado dentro da esfera reduzida - atingida pela redução - como correlato intencional da minha vida consciente. Os objectos intencionais não são as coisas do mundo externo tal como existem e tal como são realmente, mas os fenómenos tal como aparecem na esfera reduzida do ego purificado. Alfred Schutz procurou articular a fenomenologia husserliana e a sociologia compreensiva de Max Weber, com o objectivo de constituir a fenomenologia como alicerce seguro para a construção de uma ciência total do comportamento social. Apesar de prestar homenagem ao ego transcendental, Schutz incide todo o seu esforço teórico na elaboração de uma fenomenologia social da vida quotidiana: a intersubjectividade aparece - simultâneamente - como um problema filosófico e um problema sociológico, que só pode ser esclarecido à luz da atitude natural. A preocupação pela atitude natural leva Schutz a inverter a epoché de Husserl: «o homem da atitude natural também utiliza uma epoché específica, aliás muito distinta da que é usada pelo fenomenólogo. Não suspende a crença no mundo externo e nos seus objectos; pelo contrário, suspende a dúvida na sua existência. O que coloca entre parêntesis é a dúvida de que o mundo e os seus objectos possam ser diferentes daquilo que lhe parecem ser. Propomo-nos denominar esta epoché, a epoché da atitude natural» (Schutz). Com esta inversão da epoché husserliana, Schutz abandona definitivamente o projecto de uma filosofia sem pressupostos. Em vez de enfrentar o problema husserliano de como o ego transcendental se converte em ego empírico, Schutz pressupõe que os agentes humanos se defrontam uns com os outros num mundo já constituído, significativo e intersubjectivo. O mundo da vida quotidiana ou do senso comum é, para os homens, a realidade suprema: os homens assumem nesta esfera da realidade a postura do senso comum, ou seja, a atitude natural. O carácter intersubjectivo deste mundo da vida quotidiana desembaraça a fenomenologia do problema da existência do outro, porque nele a existência dos outros é dada como certa: a reciprocidade de perspectivas que assumimos na vida quotidiana garante-nos a certeza da existência dos outros. A nossa experiência do outro ocorre ao mesmo tempo em que o Outro faz a sua experiência de nós: os homens orientam-se utilizando tipificações - os tipos ideais de Max Weber ou as instituições de Arnold Gehlen, através das quais se efectuam interacções significativas. Tal como o Husserl da Crise das Ciências Europeias, Schutz concede o primado ao mundo da vida (Lebenswelt) como ponto de referência e fundamento de sentido para toda a experiência humana e para as teorias científicas que a humanidade constrói. Para Schutz, as construções de segunda ordem elaboradas pelas ciências sociais baseiam-se nas construções de primeira ordem que são usadas no mundo da vida quotidiana: os conceitos de segunda ordem remetem para as noções de primeira ordem que os agentes usam para construírem um mundo social dotado de significação. As ciências sociais enquanto contextos de significado efectuam uma tradução de ida e de volta entre as suas próprias construções teóricas e o acervo de conhecimento prévio - à mão - disponível e em uso nos contextos de significado da vida quotidiana, de modo a obedecer ao princípio da adequabilidade: os cientistas sociais devem observar acções e acontecimentos significativos típicos e coordená-los com modelos construídos de agentes típicos, os homunculi de Schutz. Deste modo, as ciências sociais evitam a reificação, elaborando sistemas conceptuais analíticos de acção social dotados de anonimidade máxima e baseados em experiências reais. A fenomenologia social estuda os modos como os seres humanos vivenciam o mundo da vida quotidiana, dotando as suas actividades de significado. Thomas Luckmann definiu-a como uma proto-sociologia que «revela as estruturas universais e invariáveis da existência humana em todos os tempos e lugares». A pretensão da fenomenologia social à universalidade tem sido severamente criticada, em especial por Norbert Elias: Schutz esboçou as precondições para a investigação científica nas ciências sociais, sem ter fornecido descrições empíricas de sociedades concretas e ter abordado os problemas do poder e da dominação. O cunho individualista da fenomenologia de Husserl reaparece na noção schutziana de sociedade como sendo constituída em círculos concêntricos em torno de si próprio: «Somente com referência a mim adquire o seu sentido específico essa relação com Outros que designo mediante a palavra "Nós". Com referência a Nós, cujo centro sou eu, os Outros estão na posição de "Vós", e com referência a Vós, que por sua vez se referem a mim, terceiras partes estão na posição de "Eles". O meu mundo social, com os alter egos que contém, está ordenado, comigo como centro, em associados (Umwelt), contemporâneos (Mitwelt), predecessores (Vorwelt) e sucessores (Folgewelt), mediante o qual eu e as minhas diferentes atitudes para com os Outros instituímos estas múltiplas relações. Tudo isto é efectuado em diversos graus de intimidade e anonimidade» (Schutz). O fantasma do solipsismo que atormenta a fenomenologia e a sua solução - a auto-experiência universal do ego transcendental - foram severamente censurados pelas fenomenologias existenciais de Sartre e de Merleau-Ponty que se voltaram para a ontologia, usando o conceito heideggeriano de ser-no-mundo para descrever a união pré-teórica dos seres humanos em sociedade. No entanto, na obra póstuma As Estruturas do Mundo da Vida, publicada por Luckmann (1974), o próprio Schutz corrige a sua noção inicial de agente individual como o «adulto plenamente consciente», mediante a elaboração de uma fenomenologia genética: escutando os fundadores da sociologia, tais como Karl Marx e Émile Durkheim, Schutz reconhece que os adultos foram crianças que aprenderam a partir de uma cultura preexistente através da socialização, entendida como o processo mediante o qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade: «Desde o início a criança desenvolve uma interacção não apenas com o seu próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros seres humanos. A biografia do indivíduo é, desde o nascimento (até à morte), a história das suas relações com outras pessoas» (Peter L. Berger & Brigitte Berger). Esta nova abordagem - a construção social da realidade - foi posteriormente retomada por Peter L. Berger, Thomas Luckmann, Hansfried Kellner e Brigitte Berger, além de ter influenciado a etnometodologia de Harold Garfinkel. J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Eu precisava achar este lugar...
OBrigada Athena!
J. Francisco,
Seguindo seu blog autêntico!
Seja bem-vinda a este espaço! :)
Sim, é verdade que não tenho publicado nada de novo aqui: o tempo escasseia... Mas vez ou outra venho aqui.
Igor, é vasta a sua abordagem, comprovando se Pensamento e Visão Holísticos. Sabe, tenho 3 livros escritos e disponibilizados - EgoCiência e SerCiência-Ensaios; EgoCiência e SerCiência - Em busca de conexões quânticas e EgoCiência e SerCiência versus Algumas questões humanas. Apesar de serem simples, eles vão além na busca de entendimento do animal humano. Vejo a essência da Física Quântica como o caminho mais verdadeiro para o que é chamado de autoconhecimento.
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