«A auto-evidência é o campo do saber inquestionavelmente certo. A perda da auto-evidência abala este campo: sei cada vez menos, por isso tenho opiniões diferentes. /No "caso normal" da modernização não preciso mais decidir-me se estou disposto a sacrificar a minha vida por razões de fé ou por meras opiniões. O conhecimento inquestionavelmente seguro dissolve-se num conjunto de opiniões unidas de modo livre, sem mais o carácter de agregado muito constrangedor. Interpretações firmes da realidade tornam-se hipóteses. Convicções tornam-se questões de gosto. Preceitos tornam-se sugestões. Estas mudanças na consciência criam a impressão de certa superficialidade». (Peter L. Berger & Thomas Luckmann) Não me lembro de ter aprendido fenomenologia durante o curso: tenho uma vaga memória de ter escutado umas noções não menos vagas sobre Husserl e Merleau-Ponty, mas, como já os conhecia, ocupava o meu tempo a ler os meus mestres da Escola de Frankfurt, interrompendo as aulas para colocar questões que embaraçavam a professora e a reduziam à sua mais triste mediocridade, com o olhar perdido algures no horizonte. No entanto, redescobri novos livros de Merleau-Ponty, sobretudo os que eram omitidos nas aulas: introduzi o marxismo, mais precisamente clarifiquei a passagem da fenomenologia transcendental para a fenomenologia existencial e a síntese operada por Sartre e Merleau-Ponty entre fenomenologia e marxismo, mas a professora continuava a seguir as velhas e bolorentas folhas da sua pastinha de textos. Mudei de táctica e passei a discutir dois textos de Merleau-Ponty: "O Filósofo e a Sociologia" e "De Mauss a Claude Lévi-Strauss", que completava sem o nomear com as obras de Alfred Schutz (Ver foto). Devo acrescentar que, na altura, «picava» outra professora que queria ser mais revolucionária do que eu, trazendo para os debates da aula uma outra figura: Vilfredo Pareto. E foi numa dessas confluências caóticas de pensamentos que surgiu no meu espírito a ideia de levar até ao fim a redução fenomenológica, a qual mais tarde vai orientar a leitura que fiz de uma obra de Heidegger: "Kant e o Problema da Metafísica". Entre estes dois momentos vitais, há as aulas de neuro-anatomia, onde o professor me forçava a fazer uso dos meus conhecimentos de fenomenologia e de filosofia da mente: o resultado final foi a redução da ontologia a uma neuro-logia, com recurso à teoria (matemática) dos grafos. Esta redução é provavelmente a realização mais fascinante da minha vida académica: agradava aos professores de Medicina, mas irritava os professores de Filosofia que nunca compreenderam a leitura que fazia da fenomenologia, já sob a influência do estruturalismo e de uma figura incontornável: Louis Althusser que aburguesou facilmente o meu marxismo. Eu era nesse tempo um materialista convicto e usava teorias neurobiológicas fortes para renovar o materialismo: movia-me no âmbito do programa da biologia molecular e das neurociências. Mas deixei marca na Faculdade de Filosofia: uma ou outra molécula pardacenta tentou estabelecer contactos com professores da Faculdade de Medicina, como se estes não me colocassem a par do teor dos contactos: o nosso tema preferido nas conversas de bar ou mesmo nas aulas de genética das populações eram as moléculas filosóficas, as nossas batatas deslumbradas. A minha fenomenologia da célula já era computacional - aprendi programação nas aulas de genética - e hoje procuramos resolver esse problema com programas informáticos sofisticados. Porém, não foi a célula e a sua complexidade que me fizeram moderar o ritmo, mas a memória e a fisiologia do descanso: passei a defender um neuro-reducionismo moderado, fortemente apoiado na biologia das adições. É muito difícil desmentir tanto a versão forte e dura da neuro-redução, como a sua versão moderada: o suporte empírico foi minuciosamente escolhido para evidenciar a força dos modelos propostos. Porém, como fui eu que os elaborei, usando-os de modo complementar em função da natureza dos fenómenos analisados, descobri um terceiro modelo que supera os anteriores conservando-os. E é este último modelo que uso sem o explicitar para repensar a Filosofia. Nos centros de pesquisa científica e tecnológica, da genética molecular até às neurociências moleculares, passando pela bioquímica e pelo genoma, as comunidades científicas anseiam pelo regresso da Grande Filosofia: precisamos de teorias unificadas e sintéticas, pensadas de modo a articular as diversas áreas do conhecimento. Quando formulei o procedimento da neuro-redução, eu já conhecia a fenomenologia social da vida quotidiana de Alfred Schutz. A tradição fenomenológica é internamente diversificada: as abordagens filosóficas de Scheler, Heidegger, Schutz, Merleau-Ponty e Sartre não seguem necessariamente o mesmo caminho que Husserl percorreu. A maior parte dos fenomenólogos posteriores a Husserl renunciou ao desejo de produzir uma filosofia transcendental e voltou-se, num movimento da essência para a existência, para a experiência humana do mundo da vida. Husserl procurou estabelecer um esquema filosófico capaz de transcender o conhecimento empírico: a noção fundamental desse esquema é a de que toda a consciência é intencional no sentido que Franz Brentano lhe atribuiu. A intencionalidade da consciência significa que ela é sempre dirigida para objectos: não podemos apreender um suposto substrato de consciência enquanto tal, mas somente a consciência de algo. Para Brentano, todas as nossas experiências, tais como aparecem no fluxo do nosso pensamento, referem-se necessariamente a objectos experimentados: o pensamento, o temor, a fantasia ou a recordação só existem - respectivamente - como pensamento do objecto pensado, temor do objecto temido, fantasia do objecto desejado ou imaginado e recordação do objecto recordado. O carácter intencional de todas as nossas cogitações supõe uma distinção entre o acto de pensar e o objecto ao qual este acto se refere, entre o acto de perceber e o percebido, entre o cogitare e o cogitatum, enfim entre a noesis e o noema: a intencionalidade é o tema fundamental da investigação fenomenológica, que Husserl utiliza para radicalizar o conceito cartesiano do fluxo das cogitações. Nesta perspectiva, a epistemologia - a teoria do conhecimento - implica a ontologia: o conhecimento implica o ser e o «objectivo» só tem o significado que a consciência lhe atribui quando se dirige a ele. O carácter intencional das cogitações permite a Husserl radicalizar o conceito cartesiano de Ego. O método cartesiano exige uma mudança de atitude do homem perante o mundo, mediante a qual deixa de aceitar ingenuamente a existência do mundo tal como é: o carácter indubitável do ego cogitans só pode ser restabelecido mediante a dúvida filosófica. Descartes descobriu o âmbito da subjectividade transcendental como domínio da certeza, mas abandona-o logo a seguir quando identifica o ego com mens sive animus sive intellectus: o ego que só pode ser descoberto quando se separa do mundo e reflecte sobre ele é substituído pela alma ou mente humana dentro do mundo. A meditação cartesiana de Husserl inicia-se com a crítica fenomenológica desta identificação operada por Descartes. Para estabelecer o âmbito puro da consciência, Husserl elaborou o procedimento da redução fenomenológica: a fenomenologia não nega a existência do mundo externo, mas decide por razões meramente analíticas suspender a crença na sua existência. Por outras palavras, a fenomenologia abstém-se intencional e sistematicamente de todo o juízo a respeito da existência do mundo externo, colocando-o «entre parêntesis» ou efectuando a redução fenomenológica, de modo a ir mais além da atitude natural do homem que vive num mundo que aceita sem questionar: a passagem da atitude natural para a atitude filosófica visa alcançar um nível de certeza indubitável e revelar a esfera purificada da consciência, na qual se baseiam todas as nossas crenças, e a partir da qual podemos voltar à esfera mundana, na medida em que todas as nossas descobertas dentro da esfera aprioristicamente reduzida serão válidas na esfera mundana da nossa vida no mundo. Com o uso do método da epoché, Husserl demonstrou que era possível atingir uma esfera de consciência purificada: a subjectividade transcendental mais não é do que a esfera auto-suficiente de experiência fora do tempo e do espaço. A redução transcendental permite produzir verdades não-empíricas, apodícticas, a priori, que são universalmente válidas e livres de pressupostos. Além disso, constituem um baluarte seguro contra a dúvida céptica, o historicismo, o psicologismo, o relativismo e o irracionalismo político. Para evitar o idealismo subjectivo e a sua cilada solipsista, Husserl transformou a fenomenologia numa egologia transcendental: o mundo inteiro é conservado dentro da esfera reduzida - atingida pela redução - como correlato intencional da minha vida consciente. Os objectos intencionais não são as coisas do mundo externo tal como existem e tal como são realmente, mas os fenómenos tal como aparecem na esfera reduzida do ego purificado. Alfred Schutz procurou articular a fenomenologia husserliana e a sociologia compreensiva de Max Weber, com o objectivo de constituir a fenomenologia como alicerce seguro para a construção de uma ciência total do comportamento social. Apesar de prestar homenagem ao ego transcendental, Schutz incide todo o seu esforço teórico na elaboração de uma fenomenologia social da vida quotidiana: a intersubjectividade aparece - simultâneamente - como um problema filosófico e um problema sociológico, que só pode ser esclarecido à luz da atitude natural. A preocupação pela atitude natural leva Schutz a inverter a epoché de Husserl: «o homem da atitude natural também utiliza uma epoché específica, aliás muito distinta da que é usada pelo fenomenólogo. Não suspende a crença no mundo externo e nos seus objectos; pelo contrário, suspende a dúvida na sua existência. O que coloca entre parêntesis é a dúvida de que o mundo e os seus objectos possam ser diferentes daquilo que lhe parecem ser. Propomo-nos denominar esta epoché, a epoché da atitude natural» (Schutz). Com esta inversão da epoché husserliana, Schutz abandona definitivamente o projecto de uma filosofia sem pressupostos. Em vez de enfrentar o problema husserliano de como o ego transcendental se converte em ego empírico, Schutz pressupõe que os agentes humanos se defrontam uns com os outros num mundo já constituído, significativo e intersubjectivo. O mundo da vida quotidiana ou do senso comum é, para os homens, a realidade suprema: os homens assumem nesta esfera da realidade a postura do senso comum, ou seja, a atitude natural. O carácter intersubjectivo deste mundo da vida quotidiana desembaraça a fenomenologia do problema da existência do outro, porque nele a existência dos outros é dada como certa: a reciprocidade de perspectivas que assumimos na vida quotidiana garante-nos a certeza da existência dos outros. A nossa experiência do outro ocorre ao mesmo tempo em que o Outro faz a sua experiência de nós: os homens orientam-se utilizando tipificações - os tipos ideais de Max Weber ou as instituições de Arnold Gehlen, através das quais se efectuam interacções significativas. Tal como o Husserl da Crise das Ciências Europeias, Schutz concede o primado ao mundo da vida (Lebenswelt) como ponto de referência e fundamento de sentido para toda a experiência humana e para as teorias científicas que a humanidade constrói. Para Schutz, as construções de segunda ordem elaboradas pelas ciências sociais baseiam-se nas construções de primeira ordem que são usadas no mundo da vida quotidiana: os conceitos de segunda ordem remetem para as noções de primeira ordem que os agentes usam para construírem um mundo social dotado de significação. As ciências sociais enquanto contextos de significado efectuam uma tradução de ida e de volta entre as suas próprias construções teóricas e o acervo de conhecimento prévio - à mão - disponível e em uso nos contextos de significado da vida quotidiana, de modo a obedecer ao princípio da adequabilidade: os cientistas sociais devem observar acções e acontecimentos significativos típicos e coordená-los com modelos construídos de agentes típicos, os homunculi de Schutz. Deste modo, as ciências sociais evitam a reificação, elaborando sistemas conceptuais analíticos de acção social dotados de anonimidade máxima e baseados em experiências reais. A fenomenologia social estuda os modos como os seres humanos vivenciam o mundo da vida quotidiana, dotando as suas actividades de significado. Thomas Luckmann definiu-a como uma proto-sociologia que «revela as estruturas universais e invariáveis da existência humana em todos os tempos e lugares». A pretensão da fenomenologia social à universalidade tem sido severamente criticada, em especial por Norbert Elias: Schutz esboçou as precondições para a investigação científica nas ciências sociais, sem ter fornecido descrições empíricas de sociedades concretas e ter abordado os problemas do poder e da dominação. O cunho individualista da fenomenologia de Husserl reaparece na noção schutziana de sociedade como sendo constituída em círculos concêntricos em torno de si próprio: «Somente com referência a mim adquire o seu sentido específico essa relação com Outros que designo mediante a palavra "Nós". Com referência a Nós, cujo centro sou eu, os Outros estão na posição de "Vós", e com referência a Vós, que por sua vez se referem a mim, terceiras partes estão na posição de "Eles". O meu mundo social, com os alter egos que contém, está ordenado, comigo como centro, em associados (Umwelt), contemporâneos (Mitwelt), predecessores (Vorwelt) e sucessores (Folgewelt), mediante o qual eu e as minhas diferentes atitudes para com os Outros instituímos estas múltiplas relações. Tudo isto é efectuado em diversos graus de intimidade e anonimidade» (Schutz). O fantasma do solipsismo que atormenta a fenomenologia e a sua solução - a auto-experiência universal do ego transcendental - foram severamente censurados pelas fenomenologias existenciais de Sartre e de Merleau-Ponty que se voltaram para a ontologia, usando o conceito heideggeriano de ser-no-mundo para descrever a união pré-teórica dos seres humanos em sociedade. No entanto, na obra póstuma As Estruturas do Mundo da Vida, publicada por Luckmann (1974), o próprio Schutz corrige a sua noção inicial de agente individual como o «adulto plenamente consciente», mediante a elaboração de uma fenomenologia genética: escutando os fundadores da sociologia, tais como Karl Marx e Émile Durkheim, Schutz reconhece que os adultos foram crianças que aprenderam a partir de uma cultura preexistente através da socialização, entendida como o processo mediante o qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade: «Desde o início a criança desenvolve uma interacção não apenas com o seu próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros seres humanos. A biografia do indivíduo é, desde o nascimento (até à morte), a história das suas relações com outras pessoas» (Peter L. Berger & Brigitte Berger). Esta nova abordagem - a construção social da realidade - foi posteriormente retomada por Peter L. Berger, Thomas Luckmann, Hansfried Kellner e Brigitte Berger, além de ter influenciado a etnometodologia de Harold Garfinkel. J Francisco Saraiva de Sousa
CyberPhilosophy
Um novo campo da investigação filosófica.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
sábado, 12 de junho de 2010
Henri Lefebvre e a Revolução Urbana
«A sociedade urbana nasce sobre as ruínas da cidade». (Henri Lefebvre)
1. A hipótese que guia os estudos de Henri Lefebvre sobre o fenómeno urbano e a nova racionalidade urbana é muito simples: a história da sociedade mais não é do que um movimento para a sua progressiva urbanização, de resto impulsionada pela industrialização. A urbanização completa da sociedade constitui um objecto digno de análise científica e, ao mesmo tempo, o objectivo primordial de uma nova praxis política. As dimensões temporal e espacial do fenómeno urbano são estudadas mediante a articulação diacrónica da sequência dialéctica de três épocas da história social - a agrícola, a industrial e a urbana - e dos tipos históricos de cidade. O primeiro tipo de cidade depende do poder que actua como uma entidade estranha e hostil ao mercado. A cidade política (1) é marcada pela heterotopia do mercado e dos grupos sociais que praticam a arte do comércio. Num determinado momento de ruptura, o mercado vence o fórum público e a cidade política é suplantada pela cidade comercial (2): o espaço de encontro de pessoas e de coisas, ou melhor, o lugar da troca que se tornou a função urbana por excelência. A cidade comercial deixa de estar isolada do território exterior, subordina a si todo o território que a circunda, incluindo o campo, e rompe a relação directa que unia o homem à natureza. Surge uma nova forma social que, com a transformação do capital comercial em capital industrial, cede o lugar à cidade industrial (3): a indústria situa-se perto das fontes de energia e, por isso, é parcialmente indiferente à cidade, usando-a como um instrumento que submete ao seu próprio desenvolvimento. O corporativismo da cidade comercial não resiste ao choque da industrialização: a indústria representa a anti-cidade que invade todo o espaço urbano até o fazer estalar. Depois da industrialização, o crescimento extensivo da cidade e a proliferação do espaço urbano - o tecido urbano - conduzem à dissolução da cidade: as periferias, os subúrbios e as cidades satélites representam o espaço material concreto de uma nova fase histórica - a era da sociedade urbana (4) preparada pela cidade industrial. Com a elaboração do conceito de sociedade urbana dotado de uma dimensão planetária, Lefebvre começa a afastar-se das análises de Marx, Engels e Weber: a industrialização produziu, após um certo crescimento, a urbanização integral que já não pode ser reduzida à questão do alojamento ou da habitação estudada por Engels. A crise da cidade é mundial e implica toda a sociedade numa crise de transformação crítica: a própria indústria é submetida à urbanização que provocou e a explosão/implosão da cidade levará à revolução urbana e esta desembocará na nova era do urbano e do fim da história.
O esboço de Lefebvre da evolução da cidade através do tempo histórico contrasta com a visão mais pessimista e quase kafkiana apresentada por Lewis Mumford que retoma a interpretação de Patrick Geddes do ciclo urbano de crescimento da aldeia (eópolis) à megalópolis e à necrópolis: "(O) mundo metropolitano é, portanto, um mundo onde a carne e o sangue são menos reais do que o papel, a tinta e o celulóide. É um mundo em que as grandes massas humanas, incapazes de ter contacto directo com meios de vida mais satisfatórios, passam a viver por procuração, ora como leitores, ora como espectadores, ora como observadores passivos. Assim vivendo, ano após ano, de segunda mão, desligados da natureza que está fora deles e não menos desligados da natureza íntima, não admira que se afastem cada vez mais das funções da vida, até mesmo do pensamento, para as máquinas que os seus inventores criaram. Neste ambiente desordenado, apenas as máquinas têm uma parte dos atributos da vida, ao passo que os seres humanos são progressivamente reduzidos a um feixe de reflexos, sem impulso próprio de saída nem meta autónoma: o homem behaviorista" (L. Mumford). A crítica da vida quotidiana de Lefebvre tinha mostrado que a exploração do homem pelo homem, a heterodirecção e a apatia política constituíam aspectos endémicos da vida quotidiana dos habitantes da metrópole: as condições da urbanização capitalista mutilam a personalidade, inibem a formação comunitária, minam a ocupação e o envolvimento sociais e conduzem à apatia, à alienação, à ilegalidade e à criminalidade. Como resultado da segregação social e de outros mecanismos de manipulação e de controle, os indivíduos das metrópoles afastam-se uns dos outros no espaço e, deste afastamento, resulta a dissolução das relações sociais. Num estudo empírico de uma pequena cidade denominada Middletown, Robert Lynd & Helen Lynd observaram uma apatia política idêntica à exibida pelos habitantes das grandes cidades: indiferença generalizada e fraca propensão para as responsabilidades públicas. Além disso, a corrupção política em si não afectava os cidadãos de Middletown. Para eles, a política local era um jogo da trapaça e, por isso, recusavam entrar no jogo das autoridades municipais e dos magistrados locais. Os teóricos do urbanismo estão de acordo quando afirmam que o destino do mundo ocidental tem sido o empobrecimento da vida pública, a falta de participação na vida política, a intelectualização e a racionalização impulsionadas pela economia monetária e o desencantamento do mundo. No entanto, os marxistas que recorreram ao conceito de hegemonia de Gramsci tendem a destacar o papel das cidades como "centros de dominação" da burguesia (Frank), esquecendo que o espaço urbano também promove experiências intensificadas de individualidade, a diferença e a liberdade, como mostraram Baudelaire, Edgar Poe, Benjamin e Simmel. A grande cidade é vista como o lar da burguesia nacional, regional ou internacional, cujos elos e alianças fortalecem a cadeia da expropriação do território satélite para a metrópole dominante, ao mesmo tempo que inibem a consciência de classe dos oprimidos e explorados, desviando-os da sua missão histórica: lutar por um mundo melhor. Por isso, Fromm, Marcuse, Mills, A.G. Frank e Fannon não vêem na urbanização uma condição indispensável para a transformação qualitativa da sociedade. Ciente das contradições profundas da vida urbana, Lefebvre vai noutra direcção: Marx e Engels possibilitam uma interpretação correcta da problemática urbana, até porque Marx valorizou de modo implícito a cidade como sujeito da história; a cidade não só permitiu o surgimento do capitalismo (Pirenne), como também facilitou a divisão do trabalho. A cidade é simultaneamente produto e produtora, no sentido de permitir e facilitar a acumulação e a circulação do capital. A cidade capitalista que cresceu extensivamente à escala planetária transporta no seu seio as sementes da sua negação: a cidade do capital anulou as diferenças entre cidade e campo e, da sua dissolução, resultará a afirmação do urbano. A sociedade urbana - ainda virtual - será, na perspectiva de Lefebvre, uma sociedade socialista democrática ou associativa.
O conceito de sociedade urbana e a sua realidade compreendem um conjunto de problemas - a problemática urbana, que exige uma nova teoria capaz de a dominar e de uma praxis urbana capaz de a orientar. A estratégia urbana que reconcilia conhecimento crítico e praxis permite desvelar a ordem que se esconde na desordem urbana, mas, para atingir essa inteligibilidade, deve proceder à crítica das diversas versões da ideologia urbanística e romper com as abordagens fragmentárias do fenómeno urbano. Henri Lefebvre procurou elaborar, ao longo de diversas obras dedicadas à questão urbana, uma filosofia do urbano e não uma mera sociologia urbana, trabalhando as diferenças que distinguem a sua teoria das teorias fragmentárias, tais como a funcionalista, a de Spengler, a de Tönnies, a de Simmel, a de Weber e a de Wirth, ou mesmo a de certos marxistas, tais como Fromm, Marcuse, Mills e Fannon. Cada um dos teóricos do urbanismo teve (e tem) o seu modelo de cidade ideal: a cidade medieval serviu de modelo à solidariedade orgânica (Durkheim), à fusão da vida pública e da vida privada (Weber) ou à organização comunitária (Tönnies). Ora, segundo Lefebvre, estes modelos que anseiam pelo retorno à antiga comunidade citadina grega ou medieval, bem como os modelos que pretendem optimizar a industrialização e as suas consequências ou que deploram a alienação da sociedade industrial, constituem meras variantes da ideologia urbanística. Para pensar o urbano na sua totalidade não-fragmentada em movimento e transformá-lo, Lefebvre ajusta o conhecimento e a praxis política numa única estratégia - a estratégia urbana, com o recurso à utopia e à imaginação. A estratégia do conhecimento visa a crítica radical do urbanismo, da sua ambiguidade e das suas contradições, tendo como objectivo primordial a elaboração de uma ciência do fenómeno urbano, enquanto a estratégia política procura colocar a problemática urbana na vida política ou, pelo menos, na agenda política, de modo a defender a auto-gestão generalizada e o direito à cidade: a sociedade urbana do futuro - a realidade urbana integral como receptáculo do valor de uso, gérmen de um predomínio virtual e de uma revalorização do uso - concretizará o domínio da liberdade e a afirmação de um novo humanismo, através da conversão da vida quotidiana na cidade em obra, apropriação e valor de uso. A cidade entendida como centralidade tem sido degradada e destruída pelo capitalismo, e esta degradação urbana deve-se fundamentalmente ao conflito entre o valor de uso e o valor de troca. A cidade e a realidade urbana sempre dependeram e dependem do valor de uso, mas o domínio do valor de troca e a generalização da mercadoria produzidos pela industrialização tendem a destruir, subordinando-as, a cidade e a realidade urbana: a degradação da estrutura social da cidade deve-se não só à busca privada de lucro e à especulação imobiliária, mas também ao entendimento analítico que uniformiza e reduz a cidade a uma mera adição de elementos unifuncionais, sem levar em conta nas suas projecções o carácter afuncional do urbano, isto é, a confrontação e o contraste entre o funcional e o gratuito. O urbano é, para Lefebvre, o resultado da combinação de três traços interligados: o transfuncional - representado pelos monumentos, expressão da criatividade colectiva e da tensão utopista da cidade, o multifuncional - expresso pelas ruas e outras artérias, os fundamentos da sociabilidade e do teatro espontâneo, e o lúdico - o momento omnipresente e difundido no espaço urbano para além do tempo e do comportamento recreativo pós-laborais. O entendimento analítico de tipo funcionalista ou racionalista mina o substrato da espontaneidade social, sem o qual as estruturas arquitectónicas e urbanísticas projectadas e construídas perdem o valor recreativo, gratuito e lúdico que caracteriza essencialmente o urbano. A linguagem da arquitectura pós-moderna (Charles Jencks) exemplifica facilmente não tanto a morte da arquitectura moderna que morreu em St. Louis, Missouri, no dia 15 de Julho de 1972, às 3.32 da tarde, quando os módulos do projecto Pruitt-Igoe foram dinamitados, mas a contracção do espaço lúdico-urbano - o palco da espontaneidade social, levada ao extremo com a terrível invenção dos condomínios fechados e dos grandes centros comerciais que roubam vida, animação, comércio ou mesmo segurança às ruas nocturnas das baixas das grandes cidades (Cf. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol).
Na actual situação de desordem urbana, o espaço perdeu o seu carácter de indiferença, o qual derivava da sua função residual de mero contentor de objectos produzidos pelo sistema industrial: a cidade-exposição, a cidade das galerias de Baudelaire e de Benjamin, que, em Portugal, deixou marca nos projectos das galerias da cidade do Porto e no seu Palácio de Cristal. O desenvolvimento social das forças produtivas determina a produção social do espaço, aliás um facto histórico antigo: as classes dominantes - as actuais classes dirigentes - plasmaram sempre o seu espaço urbano, com o objectivo de exercer um controle político eficaz sobre as classes dominadas. Mas o desenvolvimento capitalista das forças produtivas usa actualmente o espaço para produzir mais-valias. O capitalismo apropriou-se das cidades históricas, manipulando-as em função das suas própria exigências económicas, políticas e culturais e transformando-as em centros de decisões e de benefícios privados: o espaço urbano - vias de comunicação e edifícios - é objecto não só da especulação imobiliária, como também do consumo produtivo que emprega uma grande quantidade de força de trabalho. A nova estratégia do capital revela-se no tipo de expansão irracional, desordenada e caótica do tecido urbano: os arredores e as periferias que se multiplicam em torno dos centros históricos possuem uma baixa composição orgânica de capital e, por isso, promovem a formação de mais-valias chorudas. Para Lefebvre, o urbanismo que preside a esta formação e divisão do espaço urbano é uma ideologia manipuladora que encobre essa nova estratégia do capital, dissimulando a sua finalidade real. A acção urbanística projectada e planeada oprime os utentes da cidade, esquece as suas necessidades sociais, e, dado ser vítima do fetichismo do espaço, ilude-se quando cria espaço, com o pretenso objectivo de controlar cada vez melhor a qualidade de vida e de produzir novas relações sociais entre os habitantes da cidade. A "mitologia do arquitecto" (Cf. Aldo Rossi, Leonardo Benevolo) usada para dissimular a sua função real acaba por revelar o carácter de classe do urbanismo ou os interesses que o movem: as obras arquitectónicas e urbanísticas limitam efectivamente a prática do valor de uso. O uso foi reduzido em todo o território pelo desenvolvimento do valor de troca e do mundo das mercadorias. O urbanismo mais não é do que a superstrutura ideológica da sociedade tecnoburocrática de consumo dirigido, que organiza o espaço habitado à luz de uma racionalidade que afirma a neutralidade de um espaço que é, em última análise, espaço político. O espaço adquire um valor de troca e converte-se em mercadoria que, tal como outras mercadorias, bens e serviços, pode ser trocada no mercado: os lugares adquirem um preço que se relaciona directamente com o seu custo-tempo de produção. A projecção de habitações, a construção de edifícios ou mesmo outras escalas da organização do território - infraestruturas, auto-estradas, serviços públicos, ambientes naturais -, obedecem à mesma economia política do espaço, cujo plano geral diz obedecer a exigências técnicas quando, na verdade, está ao serviço do capital. Prisioneiros deste plano geral, os arquitectos e os urbanistas são meros funcionários de um sistema burocrático, obrigados a reduzir a realidade que pretendem representar à imagem dominante - e superiormente imposta - do habitat. Os habitantes das cidades não escapam a este controle central e, como seres reduzidos a corpos segregados, deslocados e condensados, são forçados a viver em nome de uma quantificação racional que é, em última instância, económica e financeira.
2. «"Nós, os berlinenses, escreve Hessel, temos de habitar mais ainda a nossa cidade". A sua intenção é a de que a frase seja literalmente entendida, não tanto no que se refere às casas, mas mais no que às ruas diz respeito. Pois estas são a casa do ser eternamente inquieto e em movimento que vive, aprende, conhece e pensa tanto entre as paredes das casas como qualquer indivíduo no abrigo das suas quatro paredes. Para as massas - e é com elas que vive o flâneur -, as tabuletas brilhantes e esmaltadas das lojas são adornos tão bons como os quadros a óleo no salão burguês, e até melhores; as empenas cegas são as suas secretárias, os quiosques de jornais as suas bibliotecas, os marcos de correio os seus bronzes, os bancos o seu boudoir e a esplanada a varanda de onde essas massas observam a azáfama da sua casa. No gradeamento onde os trabalhadores do asfalto penduram os casacos fica o seu vestíbulo, e o portão que leva à rua através do enfiamento dos pátios é a entrada nos aposentos da cidade». (Walter Benjamin)
O urbanismo é a maneira de conceber e de realizar as cidades e, como tal, está associado ao aparecimento do Estado moderno que transformou as cidades em capitais de Estado ou, pelo menos, em suportes do poder central. Isto significa que o urbanismo faz parte integrante de uma concepção de poder. Ilustres figuras mundiais converteram a arquitectura em "ciência política" através das "ciências económicas" (especulação financeira e imobiliária). O projecto da construção de Washington, apresentado por Pierre-Charles L'Enfant em 1771, era, em muitos aspectos, um imponente plano barroco: a localização dos edifícios públicos, as avenidas imponentes, as abordagens axiais, a escala monumental e o verde envolvente reflectiam a ideologia barroca do poder político. Em 1853, o barão Haussmann assumiu oficialmente a ideia de reconstruir a cidade de Paris que lhe foi confiada pelo imperador Napoleão III: grande parte da malha urbana medieval e renascentista de Paris foi demolida para dar lugar a artérias rectas que ligavam o centro da cidade aos distritos. A "geometria urbana" de Haussmann e da sua equipa dividiu Paris em três redes: a primeira rede incidiu sobre o labirinto de vielas que remonta à antiga cidade medieval, concentrando-se na região próxima do rio Sena, de modo a rectificar o seu traçado e a adaptá-lo às carruagens e à locomoção dirigida; a segunda rede, situada entre o centro e a periferia, foi subordinada à administração municipal; e a terceira rede criou as intercessões entre as principais artérias urbanas que davam acesso à cidade, bem como as ligações entre as duas outras redes. Na sua descrição da cultura parisiense do século XIX, W. Benjamin deu especial ênfase às arcadas (galerias) e aos telhados, onde pulsava a vida circulante da cidade: a multidão foi politicamente dividida e os indivíduos convidados a mergulhar numa excitação frenética nessas pequenas passagens cobertas, nas suas lojas e nos seus cafés. A construção de Washington e a transformação de Paris, às quais poderíamos acrescentar a reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa destruída pelo Terramoto de 1755, a modernização de Berlim no tempo de Frederico I ou a construção de Regent's Park e de Regent Street em Londres, expressam na arquitectura das capitais a linguagem do poder da cidade barroca: a linguagem do despotismo ou da oligarquia centralizada, personificada num Estado nacional, bem como uma nova linguagem ideológica derivada da física mecanicista, cujos postulados fundamentais já tinham sido lançados pelos exércitos e pelos mosteiros. Lei, ordem e uniformidade constituem os traços essenciais da cidade barroca: a lei confirma a situação vigente e assegura a posição dominante das classes privilegiadas; a ordem é uma ordem mecânica que sujeita os súbditos ao príncipe reinante, contra a antiga ordem baseada no sangue, na vizinhança ou nas finalidades de parentesco; e a uniformidade impõe a dominação impessoal do burocrata que, com a sua papelada e os seus processos, regulariza e sistematiza a colecta de impostos.
Na cidade do Porto, devido às reacções negativas dos produtores de vinho às regras impostas pela Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, o Marquês de Pombal nomeou o seu primo, João d'Almada (1757-1786), como governador militar que, acumulando estas funções com as de governador civil, se empenhou na construção de uma cidade moderna, onde o comércio, a indústria e os negócios pudessem prosperar. Em 1758, João d'Almada criou a Junta de Trabalhos Públicos do Porto, com o objectivo de transformar radicalmente a antiga urbe medieval confinada dentro da muralha fernandina e de planear o crescimento e o embelezamento da nova cidade. Financiada por um imposto sobre a produção de vinho que lhe era dado mensalmente pela Companhia Geral, a Junta deparou-se com alguns obstáculos, entre os quais a Igreja Católica e os proprietários fundiários. Este obstáculo só foi superado quando, em 1769, foi aplicada ao Porto a "legislação de excepção" que, ao condicionar o direito de propriedade ao interesse colectivo definido pelo Estado, permitiu a substituição da antiga estrutura fundiária pelo novo loteamento "regular". O Porto que resulta da intervenção urbanística dos Almadas - o filho, Francisco d'Almada e Mendonça (1786-1804), sucedeu-lhe mais tarde - abrange a urbanização de vastas áreas situadas a norte - até à Rua da Boavista - da muralha fernandina e a alteração substancial do tecido urbano medieval, de modo a articular a cidade medieval com a cidade moderna. O seu desenvolvimento levou à destruição das muralhas que atrofiavam o burgo medieval: foram abertas duas ruas - a dos Clérigos e a de Santo António (actual 31 de Janeiro) - que se unem na Praça Nova (actual Praça da Liberdade) e a muralha que a limitava pelo sul foi demolida em 1788, sendo edificado no seu lugar o Palácio das Cardosas. Ora, todas as obras urbanísticas dos Almadas foram realizadas por um gabinete que centraliza e orienta os trabalhos, dispondo de verbas próprias obtidas através de impostos extraordinários e de uma legislação de excepção. Em termos de arquitectura, a moderna cidade do Porto era, no século XVIII, marcadamente barroca. Em 1725, Nicolau Nasoni foi encarregado de embelezar a Sé, acabando por projectar inúmeras igrejas e palácios da cidade do Porto e arredores. Porém, as grandes extensões urbanizadas tiveram tempo suficiente para afinar um novo estilo tipicamente portuense: um estilo neoclássico especial que, devido à acção do cônsul J. Whitehead - amigo de João d'Almada -, reflecte influências inglesas. Os dois estilos portuenses do século XVIII podem ser exemplicados pela Torre da Igreja dos Clérigos (1754-1763), de Nasoni, e o Hospital de Santo António (1770), de John Carr. O crescimento da cidade do Porto continua num ritmo excelente até meados do século XIX, mas a partir de determinado momento a influência francesa começa a manifestar-se na construção de boulevards: a Avenida dos Aliados procura ser uma réplica dos Champs Elisées. Em 1891, C. Pezarat apresentou uma proposta para unir a Praça da Liberdade com a Praça da Trindade através de uma avenida-jardim. Porém, a Câmara Municipal dirigida por Elísio de Melo só aprova esse projecto em 1915: as obras iniciaram-se com a demolição do edifício da Câmara em 1916 e só ficaram concluídas em 1956, com a inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho. Durante esse longo período multiplicaram-se os Passeios Públicos, as avenidas, os jardins, as esplanadas abertas (Fontainhas, Virtudes e Massarelos), as alamedas e os espaços verdes. Os jardins da Cordoaria, do Palácio de Cristal e do Passeio Alegre (Foz) foram desenhados por E. David (alemão) em 1865. A alta burguesia portuense foi fixada numa área (1882) dotada de grande qualidade arquitectónica e monumental. Nos espaços abertos da Cidade Invicta que sonham arquitectónica e organizativamente para a frente, desabrochou a maior iniciativa cultural portuguesa: a "Renascença Portuguesa".
Esta visão política da arquitectura da cidade é compatível com a abordagem marxista mais ortodoxa que destaca o papel do sistema urbano na geração de lucro para o capital industrial: o capitalismo industrial tendeu a desmantelar toda a estrutura social da vida urbana e a assentá-la sobre a base impessoal do dinheiro e do lucro. A urbanização capitalista gerou, além da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais e regionais, uma imensa teia de alienação obscura: o capitalismo molda tanto a forma e a organização das cidades como a consciência dos seus habitantes. À dimensão económica do urbanismo, Lefebvre acrescenta a dimensão ideológica: as desigualdades sociais e regionais geradas pelo capitalismo e encapsuladas nas cidades tendem a ser amplamente aceites ou ignoradas pelos cidadãos. O pensamento urbanístico contemporâneo é um pensamento aridamente tecnológico ou tecnomórfico, destituído de imaginação e de perspectiva utópica: os chamados especialistas do território produziram uma ideologia de adaptação que transforma os habitantes da cidade em seres apáticos, não-participativos, preguiçosos, frustrados, indiferentes e profundamente alienados da casa, do bairro e da cidade. Os seus projectos não só estão afastados da vida quotidiana, como também negam o espaço urbano aos seus utentes citadinos. Lefebvre procura formular uma teoria alternativa do urbanismo capaz de rasgar esse véu ideológico que ofusca uma compreensão clara e transparente da vida urbana, explicando a estruturação do espaço económico e social urbano pelos processos associados com a acumulação de capital. Qual é a alternativa proposta por Lefebvre para derrubar a alienação produzida pela urbanização capitalista? A restituição ao indivíduo do poder de decisão sobre o seu ambiente quotidiano: eis a resposta ingénua dada por Lefebvre. A arquitectura da cidade comporta uma prática específica, parcial e especializada, ligada à vida quotidiana, que realiza os espaços sociais adequados à estrutura da sociedade estabelecida e à sua reprodução. Esta orientação social imposta à arquitectura faz com que a sua prática oscile entre o esplendor monumental - os monumentos são lugares do poder, onde o fálico se une ao político e a verticalidade simboliza o poder, como mostra a arquitectura da Cidade Invicta - e o cinismo do habitat, forçando-a a contribuir activa e abertamente para a reprodução das relações sociais capitalistas. A arquitectura tem isolado - ao longo da história do homem - o espaço por meio de paredes, subtraindo-o à natureza, para o preencher com símbolos religiosos e políticos e com dispositivos técnicos que correspondam à ordem estabelecida. Porém, a arquitectura deveria produzir, pelo menos no nosso tempo, um espaço subtraído enquanto tal aos poderes vigentes, um espaço apropriado a relações sociais libertas dos constrangimentos da ordem capitalista: a restituição do poder de decisão aos cidadãos é vista como uma recuperação ou revitalização da vida quotidiana, mais precisamente como a sua libertação do espaço programado do Poder, dos seus dispositivos de vigilância e da sua repartição espacial da dominação.
A proposta de política urbana alternativa preconizada por Lefebvre enuncia-se numa única expressão: o direito à cidade. Este direito diz respeito a todos os habitantes enquanto sujeitos que se envolvem em interacções sociais dentro do quadro urbano e afirmam a exigência de uma presença activa e da sua participação. A base do direito à cidade não é contractual nem natural: ela relaciona-se directamente com um traço essencial do espaço urbano, a sua centralidade. Toda a realidade urbana possui um centro. Pouco importa que esse centro seja comercial, económico, financeiro, administrativo, técnico, simbólico, lúdico, informacional, comunicacional ou político; o importante é que não pode existir realidade urbana sem um centro: a centralidade revela a essência da dimensão urbana. A cidade é, segundo Lefebvre, "a forma do encontro e da conexão de todos os elementos da vida social, desde os frutos da terra até aos símbolos e às obras denominadas culturais. A dimensão urbana manifesta-se no próprio seio do processo negativo da dispersão, da segregação, como exigência de encontro, de reunificação, de informação". Na dialéctica da centralidade, a saturação conduz a outra centralidade, ao mesmo tempo que expulsa os elementos excedentários ou segregados do antigo centro para a periferia. O direito à cidade é o direito à centralidade, isto é, o direito a não ser convertido em periferia. Excluir grupos ou indivíduos do urbano é, em última análise, excluí-los da civilização ou mesmo da sociedade. A exclusão urbana é, pois, exclusão social. O direito à cidade legitima a recusa da exclusão urbana: a recusa de ser afastado da realidade urbana e da sua centralidade pela organização burocrática discriminatória. O direito à cidade é um direito de todos os cidadãos e, como direito dos homens à centralidade, não só anuncia a crise inevitável dos centros dominantes de decisão que, estando fundados na segregação e na discriminação, excluem os indivíduos ou os grupos estigmatizados que não participam nos privilégios políticos, fixando-os e isolando-os nas periferias, como também garante o direito ao encontro e à reunião: os lugares e os objectos urbanos devem responder à "necessidade" de vida social e de um centro, bem como às necessidades lúdicas e ao desejo. O direito à cidade visa constituir ou reconstituir uma unidade espaço-temporal, reconduzindo à unidade dialéctica aquilo que foi fragmentado e pulverizado pela urbanização capitalista.
Ora, para ser cumprido e realizado, o direito à cidade precisa ser objecto de conhecimento crítico das condições da sua realização. Como já vimos, a lógica económica da sociedade capitalista obedece a uma ideologia consumista, tosca e sem horizonte ou perspectiva futura: os cidadãos vivem alheados da vida urbana e dos seus centros de decisão. Os cidadãos devem tomar consciência dessa alienação para poderem assumir a tarefa da transformação urbana qualitativa, a qual exige como condição um forte crescimento da riqueza social. Dado desconfiar da intervenção do Estado - um Estado de classe, como diz Manuel Castells - neste processo de emancipação urbana e de transformação profunda das relações sociais, Lefebvre permanece prisioneiro da lógica económica que critica, porque, se não for o Estado - mesmo sendo um Estado de classe - a garantir essa criação de riqueza social tão necessária para a transformação urbana qualitativa, então esse papel compete à própria sociedade civil e à iniciativa privada. A centralidade é intrinsecamente conflitual: a centralização total reúne poder, riqueza e conhecimento numa zona territorial restrita, e a sua superação decorre da própria saturação do centro operada pela cidade capitalista que possibilitou a sua extensão espacial e a sua afirmação. A oportunidade de mudança social qualitativa depende da própria condensação social da cidade e das suas contradições internas, das quais a mais importante é talvez a contracção do espaço. A tendência para concentrar todos os centros de decisão numa zona territorial restringida suscita a escassez de espaço nessa zona. Embora não seja estranha às relações sociais de produção e de reprodução capitalistas, a penúria de espaço constitui uma contradição do espaço - uma contradição entre a abundância do passado histórico e a escassez do presente - que abre caminho a novas possibilidades sociais e históricas, em especial ao processo de apropriação individual e colectiva do espaço urbano que visa realizar uma sociedade emancipada e liberta da alienação. É certo que a noção lefebvriana de sociedade urbana enquanto sociedade aliviada do peso da repressão dos desejos instintivos do homem é ainda uma utopia, mas trata-se de uma utopia possível, no sentido de poder vir a ser realizada, tal como sucede momentaneamente nos períodos de tensão revolucionária ou na Festa do S. João do Porto e nas Celebrações das Vitórias do FCPorto, quando os cidadãos saem para as ruas, onde se entregam a práticas lúdicas e de socialização intensa, rompendo com as hierarquias sociais e sobrepondo o valor de uso do espaço urbano ao seu valor de troca. Porém, o capitalismo tem mostrado ser um sistema capaz de absorver as crises e de as usar como fases de racionalização e de adaptação, fazendo as suas "leis" conformarem-se a outros tipos de formação social. Lefebvre acreditava que a violência e as contradições sociais que acompanham o crescimento arrogante do capitalismo preparavam o caminho para a irrupção da sociedade urbana: a sua obra mais não é do que a renovação do projecto marxista de uma revolução da organização industrial, complementado com um projecto de revolução urbana.
3. «A burguesia submeteu o campo à cidade. Ela fez surgir enormes cidades; ela aumentou prodigiosa-mente a população das cidades à custa das do campo, arrancando assim uma grande parte da população ao embrutecimento da vida rural. Da mesma maneira que submeteu o campo à cidade, ela sujeitou os países bárbaros aos países civilizados, as nações de camponeses às nações burguesas, o Oriente ao Ocidente. /A burguesia elimina, cada vez mais, a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Ela aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade num pequeno número de mãos. A consequência fatal destas mudanças foi a centralização política. Províncias independentes ou apenas federadas entre si, tendo interesses, leis, governos, tarifas alfandegárias diferentes, foram agrupadas e fundidas numa única nação, sob um único governo, sob uma única lei, com um só interesse nacional de classe, por detrás de uma única barreira alfandegária». (Marx/Engels)
A última obra de Henri Lefebvre dedicada ao estudo do fenómeno urbano é, à primeira vista, desconcertante, porque parece deslocar, fazendo-a desaparecer, a cidade em proveito do espaço, com o surgimento de novas temáticas, tais como a ecologia, a exaltação da natureza ou a função do Estado. Porém, esta mudança de direcção é mais aparente do que real: a obra não só faz um balanço crítico das obras anteriores, como também avança com a formulação de uma teoria unitária que articula, unificando-os, três espaços diferentes, a saber, o espaço físico, o espaço mental e o espaço social. Para levar a cabo esta tarefa, Lefebvre começa por eliminar a distância entre o espaço ideal, dependente de categorias mentais e lógico-matemáticas, e o espaço real da prática social, recorrendo a conceitos universais oriundos da Filosofia e não das ciências particulares. O conceito de produção do espaço é o universal concreto escolhido por Lefebvre e, como tal, constitui o centro da sua nova teoria unificada que é, na sua essência, uma teoria da mudança social ou uma ciência prática do espaço urbano: "A problemática do espaço compreende a problemática do urbano (a cidade, a sua expansão) e do quotidiano (o consumo programado) e substitui assim a problemática da industrialização, mas sem a eliminar, visto que as relações sociais preexistentes subsistem e o novo problema é precisamente o da reprodução". À praxis industrial sucede a praxis urbana, cuja missão histórica é realizar plenamente a sociedade urbana, não já definida em termos de mera apropriação colectiva e individual da natureza, mas sim em termos de segunda natureza. Lefebvre atribui um papel importante aos intelectuais no movimento revolucionário urbano, destacando a tricotomia habitantes-artistas-autoridades em vez da classe operária. As elites intelectuais - filósofos, artistas, literatos e cientistas - devem indicar às massas a impossibilidade de viver num espaço gerido pelas leis da massificação e pelos critérios restritivos da quantidade, de modo a induzir um espírito de mudança enraizado na dimensão espacial e temporal da vida quotidiana - o mundo da vida de Husserl, Schutz e Habermas -, capaz de construir o urbano como obra (de arte) e de modelar a sociedade segundo os seus desejos ou segundo o seu Desejo.
A construção teórica de Lefebvre funda-se no princípio de que "o espaço é um produto social". Este princípio do espaço como produção social já está presente nas obras de Marx, Engels, Alfred Weber (irmão de Max Weber), Simmel e Lukács, onde a vida urbana não é explicada em função da forma espacial da cidade, mas sim em função dos efeitos dos padrões de mobilidade social: a fragmentação e a diversidade da vida urbana, bem como o movimento, a diversidade de estímulos e as apropriações visuais dos lugares, constituem aspectos centrais da experiência do espaço urbano. A análise de Marx da acumulação capitalista mostra que esta se baseia na aniquilação do espaço pelo tempo, o que produziu transformações profundas na agricultura, na indústria e na população ao longo do tempo e do espaço. No entanto, coube a Durkheim elaborar uma teoria social do espaço, mediante a impugnação da concepção kantiana do espaço como um meio vago e indeterminado. A sua teoria compreende basicamente dois elementos: Dado que numa determinada sociedade todos os seus membros têm representações semelhantes do espaço, a causa dessas representações espaciais é de natureza social (1), e essas representações espaciais espelham quase literalmente, pelo menos em alguns casos, o padrão dominante de organização social (2). As categorias do entendimento - escreve Durkheim - "não só vêm da sociedade, como as próprias coisas que exprimem são sociais. Não somente foi a sociedade que as instituiu, como são aspectos diferentes do ser social que lhes serve de conteúdo: a categoria de género começou por ser indistinta do conceito de grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da categoria de tempo; o espaço ocupado pela sociedade é que forneceu a matéria da categoria de espaço; a força colectiva é que foi o protótipo do conceito de força motriz, elemento essencial da categoria de causalidade. No entanto, as categorias não são feitas para serem aplicadas unicamente ao reino social, elas estendem-se à realidade inteira". Da Escola Durkheimiana destacam-se os trabalhos teóricos de Marcel Mauss (sociedade esquimó), Lucien Lévy-Bruhl (povos primitivos), Jean Cazeneuve (locais sagrados), Maurice Halbwachs (memória colectiva), Robert Herz (predominância da mão direita), Marcel Granet (chineses) e J. Chelhod (árabes), entre tantos outros, que ajudaram a clarificar a noção colectiva de espaço nos tipos mais diversos de organização social.
Sem abdicar da sua marcação marxista, Lefebvre utiliza o conceito de produção de espaço no sentido hegeliano, para designar o processo pelo qual os homens, enquanto seres humanos, produzem e reproduzem a sua vida, a sua história e a sua consciência: não existe nada na história e na sociedade que não tenha sido produzido pelos homens. A própria natureza, tal como se apresenta na vida social aos órgãos dos sentidos, foi transformada e produzida pela acção humana. Tomado neste sentido mais alargado, o princípio da produção do espaço tem implicações de grande alcance, uma das quais é o desaparecimento irreversível do espaço-natureza. A visão lefebvriana da natureza não é instrumental: a dominação total da natureza operada pelo capitalismo é claramente condenada. A tarefa não é dominar a natureza, mas transformá-la num símbolo que acompanha a sua destruição real, de modo a podermos salvá-la e, ao mesmo tempo, participar na conjura contra ela. Anthony Giddens considera que a nossa sociedade vive para lá do fim da natureza, não no sentido do mundo físico e dos processos físicos terem deixado de existir, mas no sentido de existirem poucos aspectos do ambiente natural que nos rodeia que não tenham sido afectados e modificados pela intervenção do homem, porque, como mostrou Lefebvre, a natureza foi reduzida ao longo da história humana a "matéria-prima" sobre a qual actuaram as sociedades e os respectivos modos de produção para produzir o seu espaço. Cada sociedade produz o seu espaço e este espaço inclui as relações sociais de reprodução e as relações de produção. O neocapitalismo moderno complexifica o espaço social, dotando-o de uma tripla-relação: a reprodução biológica, a reprodução da força de trabalho e a reprodução das relações sociais de produção. O espaço entendido como produto de um processo produtivo tem uma história: história da sua produção, das suas formas e das suas representações determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Numa primeira aproximação, Lefebvre elabora uma sequência de cinco tipos de espaço que, mais tarde, especifica em função da periodização histórica dos modos de produção: o espaço absoluto, o espaço histórico, o espaço abstracto, o espaço contraditório e o espaço diferencial. O espaço absoluto é o lugar natural pré-seleccionado pela sua consagração, mediante a qual é transformado em símbolo ou em parte de um rito: as forças políticas que ocupam esse espaço consagrado apropriam-se, administrando-a, da produção daqueles que criaram o espaço. Sacerdotes, escribas, guerreiros e príncipes usurpam o espaço e dominam os camponeses e os artesãos. As contradições inerentes às relações sociais de produção conduzem à passagem para outro modo de produção e o espaço-comunidade de sangue dá lugar ao espaço histórico, um espaço relativizado e animado por um sujeito colectivo: a cidade histórica ocidental. A actividade produtiva separa-se da reprodução que perpetua a vida social e torna-se escrava da abstracção: trabalho social abstracto, espaço abstracto. O espaço abstracto - enquanto espaço produzido pelo capitalismo - não se define apenas pelo desaparecimento das árvores, pelo distanciamento da natureza, pelos vazios estatais ou militares, pelas praças-encruzilhadas ou pelos centros comerciais onde confluem as mercadorias, o dinheiro e os automóveis, mas sobretudo pela sua abstracção que esconde, no seu sistema reticular, a vigilância do poder político: "O capitalismo ressurgente do século XVII tratou terrenos, quarteirões, ruas e avenidas como unidades abstractas destinadas à compra e venda, desprezando os usos históricos, as condições topográficas ou as necessidades sociais" (Lewis Mumford). A uniformidade absoluta dos lotes resulta da equiparação do valor da terra ao do dinheiro. O espaço social moderno é usado pelas classes dirigentes como instrumento polivalente para desmembrar e dispersar as classes dominadas e para controlar e regular a sociedade através da organização tecnocrática dos fluxos económicos, financeiros e sociais que definem a cidade moderna. A divisão social e técnica do trabalho é plasmada nesse espaço urbano, complexo e quotidiano, que assegura, em grande medida, a reprodução das relações de produção, dissociando o desejo e as necessidades e fornecendo à classe média representações tranquilizadoras que lhe garantem um lugar rotulado e assegurado. No entanto, no seio desse espaço urbano abstracto emergem novas contradições, das quais a mais importante é a contradição existente entre a possibilidade teórica de controlar globalmente o desenvolvimento do espaço e o seu parcelamento dependente das leis da economia de mercado. Deste modo, o espaço de contradição antecipa o espaço diferencial como antítese do espaço abstracto.
A história social do espaço urbano esboçada por Lefebvre faz corresponder aproximadamente, de modo imperfeito, cada tipo de espaço urbano a um determinado modo de produção, seguindo a periodização histórica dos modos de produção de Marx: ao comunismo primitivo corresponde o espaço analógico, ao modo de produção antigo ou esclavagista o espaço cosmológico, ao modo de produção medieval ou feudal o espaço simbólico, ao modo de produção capitalista o espaço homogéneo e fragmentado, sendo a transição do feudalismo para o capitalismo realizada pelo espaço perspectiva do Renascimento, e, finalmente, ao socialismo o espaço diferencial. O espaço analógico é o espaço ocupado pelas comunidades primitivas que adoptam o organismo humano como modelo inspirador da construção do seu espaço quotidiano. No modo de produção antigo, a cidade ou um dos seus monumentos expressam e reproduzem a ordem cósmica. O espaço da cidade medieval apresenta-se como um espaço cheio de símbolos religiosos e o mesmo pode ser dito do espaço perspectiva do Renascimento. O capitalismo gera um espaço homogéneo e fragmentado: homogéneo, porque tudo nele é equivalente e objecto de troca, e fragmentado, porque está dividido em pedaços e parcelas que se vendem segundo os critérios estabelecidos pela renda do solo. O habitat moderno gera alienação e desigualdades sociais. As tensões relacionadas com a satisfação incompleta das necessidades e do Desejo crescem a um tal ritmo que a multitude visível de objectos e a multitude invisível das necessidades ocupam todo o espaço. A sociedade moderna perdeu a utopia da apropriação colectiva da natureza como condição indispensável da apropriação individual. A natureza, força produtiva e produto das sociedades anteriores, transforma-se continuamente graças ao trabalho do homem. A sociedade capitalista domina e devasta a natureza. O espaço dominado define-se por oposição ao espaço apropriado: o espaço dominado é um espaço natural transformado pela técnica e pela política em função da ideia de centralidade total imposta pelas autoridades estatais (técnicos, planificadores), enquanto o espaço apropriado é um espaço natural modificado para servir as necessidades e as possibilidades de um grupo social que se apropria dele. O resultado desta estratégia de dominação técnica e política é o bloqueamento do desenvolvimento histórico do espaço urbano. A cidade transforma-se em lugar de violência e a centralidade total expulsa os deserdados para as periferias, ao mesmo tempo que alimenta o movimento de fuga para a natureza. O espaço diferencial manifesta-se neste espaço capitalista como uma tendência ou uma possibilidade que ainda não está plenamente realizada, embora se insinue em todos os níveis da vida urbana: a casa, a escola, o bairro e a cidade revelam diferenças que o espaço abstracto procura encobrir e ocultar. O espaço diferencial reúne o que está dividido, nomeadamente o público e o privado, demolindo as separações que exprimem o domínio de um espaço sobre outro espaço, como sucede com a separação entre o centro e a periferia. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa
1. A hipótese que guia os estudos de Henri Lefebvre sobre o fenómeno urbano e a nova racionalidade urbana é muito simples: a história da sociedade mais não é do que um movimento para a sua progressiva urbanização, de resto impulsionada pela industrialização. A urbanização completa da sociedade constitui um objecto digno de análise científica e, ao mesmo tempo, o objectivo primordial de uma nova praxis política. As dimensões temporal e espacial do fenómeno urbano são estudadas mediante a articulação diacrónica da sequência dialéctica de três épocas da história social - a agrícola, a industrial e a urbana - e dos tipos históricos de cidade. O primeiro tipo de cidade depende do poder que actua como uma entidade estranha e hostil ao mercado. A cidade política (1) é marcada pela heterotopia do mercado e dos grupos sociais que praticam a arte do comércio. Num determinado momento de ruptura, o mercado vence o fórum público e a cidade política é suplantada pela cidade comercial (2): o espaço de encontro de pessoas e de coisas, ou melhor, o lugar da troca que se tornou a função urbana por excelência. A cidade comercial deixa de estar isolada do território exterior, subordina a si todo o território que a circunda, incluindo o campo, e rompe a relação directa que unia o homem à natureza. Surge uma nova forma social que, com a transformação do capital comercial em capital industrial, cede o lugar à cidade industrial (3): a indústria situa-se perto das fontes de energia e, por isso, é parcialmente indiferente à cidade, usando-a como um instrumento que submete ao seu próprio desenvolvimento. O corporativismo da cidade comercial não resiste ao choque da industrialização: a indústria representa a anti-cidade que invade todo o espaço urbano até o fazer estalar. Depois da industrialização, o crescimento extensivo da cidade e a proliferação do espaço urbano - o tecido urbano - conduzem à dissolução da cidade: as periferias, os subúrbios e as cidades satélites representam o espaço material concreto de uma nova fase histórica - a era da sociedade urbana (4) preparada pela cidade industrial. Com a elaboração do conceito de sociedade urbana dotado de uma dimensão planetária, Lefebvre começa a afastar-se das análises de Marx, Engels e Weber: a industrialização produziu, após um certo crescimento, a urbanização integral que já não pode ser reduzida à questão do alojamento ou da habitação estudada por Engels. A crise da cidade é mundial e implica toda a sociedade numa crise de transformação crítica: a própria indústria é submetida à urbanização que provocou e a explosão/implosão da cidade levará à revolução urbana e esta desembocará na nova era do urbano e do fim da história.
O esboço de Lefebvre da evolução da cidade através do tempo histórico contrasta com a visão mais pessimista e quase kafkiana apresentada por Lewis Mumford que retoma a interpretação de Patrick Geddes do ciclo urbano de crescimento da aldeia (eópolis) à megalópolis e à necrópolis: "(O) mundo metropolitano é, portanto, um mundo onde a carne e o sangue são menos reais do que o papel, a tinta e o celulóide. É um mundo em que as grandes massas humanas, incapazes de ter contacto directo com meios de vida mais satisfatórios, passam a viver por procuração, ora como leitores, ora como espectadores, ora como observadores passivos. Assim vivendo, ano após ano, de segunda mão, desligados da natureza que está fora deles e não menos desligados da natureza íntima, não admira que se afastem cada vez mais das funções da vida, até mesmo do pensamento, para as máquinas que os seus inventores criaram. Neste ambiente desordenado, apenas as máquinas têm uma parte dos atributos da vida, ao passo que os seres humanos são progressivamente reduzidos a um feixe de reflexos, sem impulso próprio de saída nem meta autónoma: o homem behaviorista" (L. Mumford). A crítica da vida quotidiana de Lefebvre tinha mostrado que a exploração do homem pelo homem, a heterodirecção e a apatia política constituíam aspectos endémicos da vida quotidiana dos habitantes da metrópole: as condições da urbanização capitalista mutilam a personalidade, inibem a formação comunitária, minam a ocupação e o envolvimento sociais e conduzem à apatia, à alienação, à ilegalidade e à criminalidade. Como resultado da segregação social e de outros mecanismos de manipulação e de controle, os indivíduos das metrópoles afastam-se uns dos outros no espaço e, deste afastamento, resulta a dissolução das relações sociais. Num estudo empírico de uma pequena cidade denominada Middletown, Robert Lynd & Helen Lynd observaram uma apatia política idêntica à exibida pelos habitantes das grandes cidades: indiferença generalizada e fraca propensão para as responsabilidades públicas. Além disso, a corrupção política em si não afectava os cidadãos de Middletown. Para eles, a política local era um jogo da trapaça e, por isso, recusavam entrar no jogo das autoridades municipais e dos magistrados locais. Os teóricos do urbanismo estão de acordo quando afirmam que o destino do mundo ocidental tem sido o empobrecimento da vida pública, a falta de participação na vida política, a intelectualização e a racionalização impulsionadas pela economia monetária e o desencantamento do mundo. No entanto, os marxistas que recorreram ao conceito de hegemonia de Gramsci tendem a destacar o papel das cidades como "centros de dominação" da burguesia (Frank), esquecendo que o espaço urbano também promove experiências intensificadas de individualidade, a diferença e a liberdade, como mostraram Baudelaire, Edgar Poe, Benjamin e Simmel. A grande cidade é vista como o lar da burguesia nacional, regional ou internacional, cujos elos e alianças fortalecem a cadeia da expropriação do território satélite para a metrópole dominante, ao mesmo tempo que inibem a consciência de classe dos oprimidos e explorados, desviando-os da sua missão histórica: lutar por um mundo melhor. Por isso, Fromm, Marcuse, Mills, A.G. Frank e Fannon não vêem na urbanização uma condição indispensável para a transformação qualitativa da sociedade. Ciente das contradições profundas da vida urbana, Lefebvre vai noutra direcção: Marx e Engels possibilitam uma interpretação correcta da problemática urbana, até porque Marx valorizou de modo implícito a cidade como sujeito da história; a cidade não só permitiu o surgimento do capitalismo (Pirenne), como também facilitou a divisão do trabalho. A cidade é simultaneamente produto e produtora, no sentido de permitir e facilitar a acumulação e a circulação do capital. A cidade capitalista que cresceu extensivamente à escala planetária transporta no seu seio as sementes da sua negação: a cidade do capital anulou as diferenças entre cidade e campo e, da sua dissolução, resultará a afirmação do urbano. A sociedade urbana - ainda virtual - será, na perspectiva de Lefebvre, uma sociedade socialista democrática ou associativa.
O conceito de sociedade urbana e a sua realidade compreendem um conjunto de problemas - a problemática urbana, que exige uma nova teoria capaz de a dominar e de uma praxis urbana capaz de a orientar. A estratégia urbana que reconcilia conhecimento crítico e praxis permite desvelar a ordem que se esconde na desordem urbana, mas, para atingir essa inteligibilidade, deve proceder à crítica das diversas versões da ideologia urbanística e romper com as abordagens fragmentárias do fenómeno urbano. Henri Lefebvre procurou elaborar, ao longo de diversas obras dedicadas à questão urbana, uma filosofia do urbano e não uma mera sociologia urbana, trabalhando as diferenças que distinguem a sua teoria das teorias fragmentárias, tais como a funcionalista, a de Spengler, a de Tönnies, a de Simmel, a de Weber e a de Wirth, ou mesmo a de certos marxistas, tais como Fromm, Marcuse, Mills e Fannon. Cada um dos teóricos do urbanismo teve (e tem) o seu modelo de cidade ideal: a cidade medieval serviu de modelo à solidariedade orgânica (Durkheim), à fusão da vida pública e da vida privada (Weber) ou à organização comunitária (Tönnies). Ora, segundo Lefebvre, estes modelos que anseiam pelo retorno à antiga comunidade citadina grega ou medieval, bem como os modelos que pretendem optimizar a industrialização e as suas consequências ou que deploram a alienação da sociedade industrial, constituem meras variantes da ideologia urbanística. Para pensar o urbano na sua totalidade não-fragmentada em movimento e transformá-lo, Lefebvre ajusta o conhecimento e a praxis política numa única estratégia - a estratégia urbana, com o recurso à utopia e à imaginação. A estratégia do conhecimento visa a crítica radical do urbanismo, da sua ambiguidade e das suas contradições, tendo como objectivo primordial a elaboração de uma ciência do fenómeno urbano, enquanto a estratégia política procura colocar a problemática urbana na vida política ou, pelo menos, na agenda política, de modo a defender a auto-gestão generalizada e o direito à cidade: a sociedade urbana do futuro - a realidade urbana integral como receptáculo do valor de uso, gérmen de um predomínio virtual e de uma revalorização do uso - concretizará o domínio da liberdade e a afirmação de um novo humanismo, através da conversão da vida quotidiana na cidade em obra, apropriação e valor de uso. A cidade entendida como centralidade tem sido degradada e destruída pelo capitalismo, e esta degradação urbana deve-se fundamentalmente ao conflito entre o valor de uso e o valor de troca. A cidade e a realidade urbana sempre dependeram e dependem do valor de uso, mas o domínio do valor de troca e a generalização da mercadoria produzidos pela industrialização tendem a destruir, subordinando-as, a cidade e a realidade urbana: a degradação da estrutura social da cidade deve-se não só à busca privada de lucro e à especulação imobiliária, mas também ao entendimento analítico que uniformiza e reduz a cidade a uma mera adição de elementos unifuncionais, sem levar em conta nas suas projecções o carácter afuncional do urbano, isto é, a confrontação e o contraste entre o funcional e o gratuito. O urbano é, para Lefebvre, o resultado da combinação de três traços interligados: o transfuncional - representado pelos monumentos, expressão da criatividade colectiva e da tensão utopista da cidade, o multifuncional - expresso pelas ruas e outras artérias, os fundamentos da sociabilidade e do teatro espontâneo, e o lúdico - o momento omnipresente e difundido no espaço urbano para além do tempo e do comportamento recreativo pós-laborais. O entendimento analítico de tipo funcionalista ou racionalista mina o substrato da espontaneidade social, sem o qual as estruturas arquitectónicas e urbanísticas projectadas e construídas perdem o valor recreativo, gratuito e lúdico que caracteriza essencialmente o urbano. A linguagem da arquitectura pós-moderna (Charles Jencks) exemplifica facilmente não tanto a morte da arquitectura moderna que morreu em St. Louis, Missouri, no dia 15 de Julho de 1972, às 3.32 da tarde, quando os módulos do projecto Pruitt-Igoe foram dinamitados, mas a contracção do espaço lúdico-urbano - o palco da espontaneidade social, levada ao extremo com a terrível invenção dos condomínios fechados e dos grandes centros comerciais que roubam vida, animação, comércio ou mesmo segurança às ruas nocturnas das baixas das grandes cidades (Cf. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol).
Na actual situação de desordem urbana, o espaço perdeu o seu carácter de indiferença, o qual derivava da sua função residual de mero contentor de objectos produzidos pelo sistema industrial: a cidade-exposição, a cidade das galerias de Baudelaire e de Benjamin, que, em Portugal, deixou marca nos projectos das galerias da cidade do Porto e no seu Palácio de Cristal. O desenvolvimento social das forças produtivas determina a produção social do espaço, aliás um facto histórico antigo: as classes dominantes - as actuais classes dirigentes - plasmaram sempre o seu espaço urbano, com o objectivo de exercer um controle político eficaz sobre as classes dominadas. Mas o desenvolvimento capitalista das forças produtivas usa actualmente o espaço para produzir mais-valias. O capitalismo apropriou-se das cidades históricas, manipulando-as em função das suas própria exigências económicas, políticas e culturais e transformando-as em centros de decisões e de benefícios privados: o espaço urbano - vias de comunicação e edifícios - é objecto não só da especulação imobiliária, como também do consumo produtivo que emprega uma grande quantidade de força de trabalho. A nova estratégia do capital revela-se no tipo de expansão irracional, desordenada e caótica do tecido urbano: os arredores e as periferias que se multiplicam em torno dos centros históricos possuem uma baixa composição orgânica de capital e, por isso, promovem a formação de mais-valias chorudas. Para Lefebvre, o urbanismo que preside a esta formação e divisão do espaço urbano é uma ideologia manipuladora que encobre essa nova estratégia do capital, dissimulando a sua finalidade real. A acção urbanística projectada e planeada oprime os utentes da cidade, esquece as suas necessidades sociais, e, dado ser vítima do fetichismo do espaço, ilude-se quando cria espaço, com o pretenso objectivo de controlar cada vez melhor a qualidade de vida e de produzir novas relações sociais entre os habitantes da cidade. A "mitologia do arquitecto" (Cf. Aldo Rossi, Leonardo Benevolo) usada para dissimular a sua função real acaba por revelar o carácter de classe do urbanismo ou os interesses que o movem: as obras arquitectónicas e urbanísticas limitam efectivamente a prática do valor de uso. O uso foi reduzido em todo o território pelo desenvolvimento do valor de troca e do mundo das mercadorias. O urbanismo mais não é do que a superstrutura ideológica da sociedade tecnoburocrática de consumo dirigido, que organiza o espaço habitado à luz de uma racionalidade que afirma a neutralidade de um espaço que é, em última análise, espaço político. O espaço adquire um valor de troca e converte-se em mercadoria que, tal como outras mercadorias, bens e serviços, pode ser trocada no mercado: os lugares adquirem um preço que se relaciona directamente com o seu custo-tempo de produção. A projecção de habitações, a construção de edifícios ou mesmo outras escalas da organização do território - infraestruturas, auto-estradas, serviços públicos, ambientes naturais -, obedecem à mesma economia política do espaço, cujo plano geral diz obedecer a exigências técnicas quando, na verdade, está ao serviço do capital. Prisioneiros deste plano geral, os arquitectos e os urbanistas são meros funcionários de um sistema burocrático, obrigados a reduzir a realidade que pretendem representar à imagem dominante - e superiormente imposta - do habitat. Os habitantes das cidades não escapam a este controle central e, como seres reduzidos a corpos segregados, deslocados e condensados, são forçados a viver em nome de uma quantificação racional que é, em última instância, económica e financeira.
2. «"Nós, os berlinenses, escreve Hessel, temos de habitar mais ainda a nossa cidade". A sua intenção é a de que a frase seja literalmente entendida, não tanto no que se refere às casas, mas mais no que às ruas diz respeito. Pois estas são a casa do ser eternamente inquieto e em movimento que vive, aprende, conhece e pensa tanto entre as paredes das casas como qualquer indivíduo no abrigo das suas quatro paredes. Para as massas - e é com elas que vive o flâneur -, as tabuletas brilhantes e esmaltadas das lojas são adornos tão bons como os quadros a óleo no salão burguês, e até melhores; as empenas cegas são as suas secretárias, os quiosques de jornais as suas bibliotecas, os marcos de correio os seus bronzes, os bancos o seu boudoir e a esplanada a varanda de onde essas massas observam a azáfama da sua casa. No gradeamento onde os trabalhadores do asfalto penduram os casacos fica o seu vestíbulo, e o portão que leva à rua através do enfiamento dos pátios é a entrada nos aposentos da cidade». (Walter Benjamin)
O urbanismo é a maneira de conceber e de realizar as cidades e, como tal, está associado ao aparecimento do Estado moderno que transformou as cidades em capitais de Estado ou, pelo menos, em suportes do poder central. Isto significa que o urbanismo faz parte integrante de uma concepção de poder. Ilustres figuras mundiais converteram a arquitectura em "ciência política" através das "ciências económicas" (especulação financeira e imobiliária). O projecto da construção de Washington, apresentado por Pierre-Charles L'Enfant em 1771, era, em muitos aspectos, um imponente plano barroco: a localização dos edifícios públicos, as avenidas imponentes, as abordagens axiais, a escala monumental e o verde envolvente reflectiam a ideologia barroca do poder político. Em 1853, o barão Haussmann assumiu oficialmente a ideia de reconstruir a cidade de Paris que lhe foi confiada pelo imperador Napoleão III: grande parte da malha urbana medieval e renascentista de Paris foi demolida para dar lugar a artérias rectas que ligavam o centro da cidade aos distritos. A "geometria urbana" de Haussmann e da sua equipa dividiu Paris em três redes: a primeira rede incidiu sobre o labirinto de vielas que remonta à antiga cidade medieval, concentrando-se na região próxima do rio Sena, de modo a rectificar o seu traçado e a adaptá-lo às carruagens e à locomoção dirigida; a segunda rede, situada entre o centro e a periferia, foi subordinada à administração municipal; e a terceira rede criou as intercessões entre as principais artérias urbanas que davam acesso à cidade, bem como as ligações entre as duas outras redes. Na sua descrição da cultura parisiense do século XIX, W. Benjamin deu especial ênfase às arcadas (galerias) e aos telhados, onde pulsava a vida circulante da cidade: a multidão foi politicamente dividida e os indivíduos convidados a mergulhar numa excitação frenética nessas pequenas passagens cobertas, nas suas lojas e nos seus cafés. A construção de Washington e a transformação de Paris, às quais poderíamos acrescentar a reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa destruída pelo Terramoto de 1755, a modernização de Berlim no tempo de Frederico I ou a construção de Regent's Park e de Regent Street em Londres, expressam na arquitectura das capitais a linguagem do poder da cidade barroca: a linguagem do despotismo ou da oligarquia centralizada, personificada num Estado nacional, bem como uma nova linguagem ideológica derivada da física mecanicista, cujos postulados fundamentais já tinham sido lançados pelos exércitos e pelos mosteiros. Lei, ordem e uniformidade constituem os traços essenciais da cidade barroca: a lei confirma a situação vigente e assegura a posição dominante das classes privilegiadas; a ordem é uma ordem mecânica que sujeita os súbditos ao príncipe reinante, contra a antiga ordem baseada no sangue, na vizinhança ou nas finalidades de parentesco; e a uniformidade impõe a dominação impessoal do burocrata que, com a sua papelada e os seus processos, regulariza e sistematiza a colecta de impostos.
Na cidade do Porto, devido às reacções negativas dos produtores de vinho às regras impostas pela Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, o Marquês de Pombal nomeou o seu primo, João d'Almada (1757-1786), como governador militar que, acumulando estas funções com as de governador civil, se empenhou na construção de uma cidade moderna, onde o comércio, a indústria e os negócios pudessem prosperar. Em 1758, João d'Almada criou a Junta de Trabalhos Públicos do Porto, com o objectivo de transformar radicalmente a antiga urbe medieval confinada dentro da muralha fernandina e de planear o crescimento e o embelezamento da nova cidade. Financiada por um imposto sobre a produção de vinho que lhe era dado mensalmente pela Companhia Geral, a Junta deparou-se com alguns obstáculos, entre os quais a Igreja Católica e os proprietários fundiários. Este obstáculo só foi superado quando, em 1769, foi aplicada ao Porto a "legislação de excepção" que, ao condicionar o direito de propriedade ao interesse colectivo definido pelo Estado, permitiu a substituição da antiga estrutura fundiária pelo novo loteamento "regular". O Porto que resulta da intervenção urbanística dos Almadas - o filho, Francisco d'Almada e Mendonça (1786-1804), sucedeu-lhe mais tarde - abrange a urbanização de vastas áreas situadas a norte - até à Rua da Boavista - da muralha fernandina e a alteração substancial do tecido urbano medieval, de modo a articular a cidade medieval com a cidade moderna. O seu desenvolvimento levou à destruição das muralhas que atrofiavam o burgo medieval: foram abertas duas ruas - a dos Clérigos e a de Santo António (actual 31 de Janeiro) - que se unem na Praça Nova (actual Praça da Liberdade) e a muralha que a limitava pelo sul foi demolida em 1788, sendo edificado no seu lugar o Palácio das Cardosas. Ora, todas as obras urbanísticas dos Almadas foram realizadas por um gabinete que centraliza e orienta os trabalhos, dispondo de verbas próprias obtidas através de impostos extraordinários e de uma legislação de excepção. Em termos de arquitectura, a moderna cidade do Porto era, no século XVIII, marcadamente barroca. Em 1725, Nicolau Nasoni foi encarregado de embelezar a Sé, acabando por projectar inúmeras igrejas e palácios da cidade do Porto e arredores. Porém, as grandes extensões urbanizadas tiveram tempo suficiente para afinar um novo estilo tipicamente portuense: um estilo neoclássico especial que, devido à acção do cônsul J. Whitehead - amigo de João d'Almada -, reflecte influências inglesas. Os dois estilos portuenses do século XVIII podem ser exemplicados pela Torre da Igreja dos Clérigos (1754-1763), de Nasoni, e o Hospital de Santo António (1770), de John Carr. O crescimento da cidade do Porto continua num ritmo excelente até meados do século XIX, mas a partir de determinado momento a influência francesa começa a manifestar-se na construção de boulevards: a Avenida dos Aliados procura ser uma réplica dos Champs Elisées. Em 1891, C. Pezarat apresentou uma proposta para unir a Praça da Liberdade com a Praça da Trindade através de uma avenida-jardim. Porém, a Câmara Municipal dirigida por Elísio de Melo só aprova esse projecto em 1915: as obras iniciaram-se com a demolição do edifício da Câmara em 1916 e só ficaram concluídas em 1956, com a inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho. Durante esse longo período multiplicaram-se os Passeios Públicos, as avenidas, os jardins, as esplanadas abertas (Fontainhas, Virtudes e Massarelos), as alamedas e os espaços verdes. Os jardins da Cordoaria, do Palácio de Cristal e do Passeio Alegre (Foz) foram desenhados por E. David (alemão) em 1865. A alta burguesia portuense foi fixada numa área (1882) dotada de grande qualidade arquitectónica e monumental. Nos espaços abertos da Cidade Invicta que sonham arquitectónica e organizativamente para a frente, desabrochou a maior iniciativa cultural portuguesa: a "Renascença Portuguesa".
Esta visão política da arquitectura da cidade é compatível com a abordagem marxista mais ortodoxa que destaca o papel do sistema urbano na geração de lucro para o capital industrial: o capitalismo industrial tendeu a desmantelar toda a estrutura social da vida urbana e a assentá-la sobre a base impessoal do dinheiro e do lucro. A urbanização capitalista gerou, além da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais e regionais, uma imensa teia de alienação obscura: o capitalismo molda tanto a forma e a organização das cidades como a consciência dos seus habitantes. À dimensão económica do urbanismo, Lefebvre acrescenta a dimensão ideológica: as desigualdades sociais e regionais geradas pelo capitalismo e encapsuladas nas cidades tendem a ser amplamente aceites ou ignoradas pelos cidadãos. O pensamento urbanístico contemporâneo é um pensamento aridamente tecnológico ou tecnomórfico, destituído de imaginação e de perspectiva utópica: os chamados especialistas do território produziram uma ideologia de adaptação que transforma os habitantes da cidade em seres apáticos, não-participativos, preguiçosos, frustrados, indiferentes e profundamente alienados da casa, do bairro e da cidade. Os seus projectos não só estão afastados da vida quotidiana, como também negam o espaço urbano aos seus utentes citadinos. Lefebvre procura formular uma teoria alternativa do urbanismo capaz de rasgar esse véu ideológico que ofusca uma compreensão clara e transparente da vida urbana, explicando a estruturação do espaço económico e social urbano pelos processos associados com a acumulação de capital. Qual é a alternativa proposta por Lefebvre para derrubar a alienação produzida pela urbanização capitalista? A restituição ao indivíduo do poder de decisão sobre o seu ambiente quotidiano: eis a resposta ingénua dada por Lefebvre. A arquitectura da cidade comporta uma prática específica, parcial e especializada, ligada à vida quotidiana, que realiza os espaços sociais adequados à estrutura da sociedade estabelecida e à sua reprodução. Esta orientação social imposta à arquitectura faz com que a sua prática oscile entre o esplendor monumental - os monumentos são lugares do poder, onde o fálico se une ao político e a verticalidade simboliza o poder, como mostra a arquitectura da Cidade Invicta - e o cinismo do habitat, forçando-a a contribuir activa e abertamente para a reprodução das relações sociais capitalistas. A arquitectura tem isolado - ao longo da história do homem - o espaço por meio de paredes, subtraindo-o à natureza, para o preencher com símbolos religiosos e políticos e com dispositivos técnicos que correspondam à ordem estabelecida. Porém, a arquitectura deveria produzir, pelo menos no nosso tempo, um espaço subtraído enquanto tal aos poderes vigentes, um espaço apropriado a relações sociais libertas dos constrangimentos da ordem capitalista: a restituição do poder de decisão aos cidadãos é vista como uma recuperação ou revitalização da vida quotidiana, mais precisamente como a sua libertação do espaço programado do Poder, dos seus dispositivos de vigilância e da sua repartição espacial da dominação.
A proposta de política urbana alternativa preconizada por Lefebvre enuncia-se numa única expressão: o direito à cidade. Este direito diz respeito a todos os habitantes enquanto sujeitos que se envolvem em interacções sociais dentro do quadro urbano e afirmam a exigência de uma presença activa e da sua participação. A base do direito à cidade não é contractual nem natural: ela relaciona-se directamente com um traço essencial do espaço urbano, a sua centralidade. Toda a realidade urbana possui um centro. Pouco importa que esse centro seja comercial, económico, financeiro, administrativo, técnico, simbólico, lúdico, informacional, comunicacional ou político; o importante é que não pode existir realidade urbana sem um centro: a centralidade revela a essência da dimensão urbana. A cidade é, segundo Lefebvre, "a forma do encontro e da conexão de todos os elementos da vida social, desde os frutos da terra até aos símbolos e às obras denominadas culturais. A dimensão urbana manifesta-se no próprio seio do processo negativo da dispersão, da segregação, como exigência de encontro, de reunificação, de informação". Na dialéctica da centralidade, a saturação conduz a outra centralidade, ao mesmo tempo que expulsa os elementos excedentários ou segregados do antigo centro para a periferia. O direito à cidade é o direito à centralidade, isto é, o direito a não ser convertido em periferia. Excluir grupos ou indivíduos do urbano é, em última análise, excluí-los da civilização ou mesmo da sociedade. A exclusão urbana é, pois, exclusão social. O direito à cidade legitima a recusa da exclusão urbana: a recusa de ser afastado da realidade urbana e da sua centralidade pela organização burocrática discriminatória. O direito à cidade é um direito de todos os cidadãos e, como direito dos homens à centralidade, não só anuncia a crise inevitável dos centros dominantes de decisão que, estando fundados na segregação e na discriminação, excluem os indivíduos ou os grupos estigmatizados que não participam nos privilégios políticos, fixando-os e isolando-os nas periferias, como também garante o direito ao encontro e à reunião: os lugares e os objectos urbanos devem responder à "necessidade" de vida social e de um centro, bem como às necessidades lúdicas e ao desejo. O direito à cidade visa constituir ou reconstituir uma unidade espaço-temporal, reconduzindo à unidade dialéctica aquilo que foi fragmentado e pulverizado pela urbanização capitalista.
Ora, para ser cumprido e realizado, o direito à cidade precisa ser objecto de conhecimento crítico das condições da sua realização. Como já vimos, a lógica económica da sociedade capitalista obedece a uma ideologia consumista, tosca e sem horizonte ou perspectiva futura: os cidadãos vivem alheados da vida urbana e dos seus centros de decisão. Os cidadãos devem tomar consciência dessa alienação para poderem assumir a tarefa da transformação urbana qualitativa, a qual exige como condição um forte crescimento da riqueza social. Dado desconfiar da intervenção do Estado - um Estado de classe, como diz Manuel Castells - neste processo de emancipação urbana e de transformação profunda das relações sociais, Lefebvre permanece prisioneiro da lógica económica que critica, porque, se não for o Estado - mesmo sendo um Estado de classe - a garantir essa criação de riqueza social tão necessária para a transformação urbana qualitativa, então esse papel compete à própria sociedade civil e à iniciativa privada. A centralidade é intrinsecamente conflitual: a centralização total reúne poder, riqueza e conhecimento numa zona territorial restrita, e a sua superação decorre da própria saturação do centro operada pela cidade capitalista que possibilitou a sua extensão espacial e a sua afirmação. A oportunidade de mudança social qualitativa depende da própria condensação social da cidade e das suas contradições internas, das quais a mais importante é talvez a contracção do espaço. A tendência para concentrar todos os centros de decisão numa zona territorial restringida suscita a escassez de espaço nessa zona. Embora não seja estranha às relações sociais de produção e de reprodução capitalistas, a penúria de espaço constitui uma contradição do espaço - uma contradição entre a abundância do passado histórico e a escassez do presente - que abre caminho a novas possibilidades sociais e históricas, em especial ao processo de apropriação individual e colectiva do espaço urbano que visa realizar uma sociedade emancipada e liberta da alienação. É certo que a noção lefebvriana de sociedade urbana enquanto sociedade aliviada do peso da repressão dos desejos instintivos do homem é ainda uma utopia, mas trata-se de uma utopia possível, no sentido de poder vir a ser realizada, tal como sucede momentaneamente nos períodos de tensão revolucionária ou na Festa do S. João do Porto e nas Celebrações das Vitórias do FCPorto, quando os cidadãos saem para as ruas, onde se entregam a práticas lúdicas e de socialização intensa, rompendo com as hierarquias sociais e sobrepondo o valor de uso do espaço urbano ao seu valor de troca. Porém, o capitalismo tem mostrado ser um sistema capaz de absorver as crises e de as usar como fases de racionalização e de adaptação, fazendo as suas "leis" conformarem-se a outros tipos de formação social. Lefebvre acreditava que a violência e as contradições sociais que acompanham o crescimento arrogante do capitalismo preparavam o caminho para a irrupção da sociedade urbana: a sua obra mais não é do que a renovação do projecto marxista de uma revolução da organização industrial, complementado com um projecto de revolução urbana.
3. «A burguesia submeteu o campo à cidade. Ela fez surgir enormes cidades; ela aumentou prodigiosa-mente a população das cidades à custa das do campo, arrancando assim uma grande parte da população ao embrutecimento da vida rural. Da mesma maneira que submeteu o campo à cidade, ela sujeitou os países bárbaros aos países civilizados, as nações de camponeses às nações burguesas, o Oriente ao Ocidente. /A burguesia elimina, cada vez mais, a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Ela aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade num pequeno número de mãos. A consequência fatal destas mudanças foi a centralização política. Províncias independentes ou apenas federadas entre si, tendo interesses, leis, governos, tarifas alfandegárias diferentes, foram agrupadas e fundidas numa única nação, sob um único governo, sob uma única lei, com um só interesse nacional de classe, por detrás de uma única barreira alfandegária». (Marx/Engels)
A última obra de Henri Lefebvre dedicada ao estudo do fenómeno urbano é, à primeira vista, desconcertante, porque parece deslocar, fazendo-a desaparecer, a cidade em proveito do espaço, com o surgimento de novas temáticas, tais como a ecologia, a exaltação da natureza ou a função do Estado. Porém, esta mudança de direcção é mais aparente do que real: a obra não só faz um balanço crítico das obras anteriores, como também avança com a formulação de uma teoria unitária que articula, unificando-os, três espaços diferentes, a saber, o espaço físico, o espaço mental e o espaço social. Para levar a cabo esta tarefa, Lefebvre começa por eliminar a distância entre o espaço ideal, dependente de categorias mentais e lógico-matemáticas, e o espaço real da prática social, recorrendo a conceitos universais oriundos da Filosofia e não das ciências particulares. O conceito de produção do espaço é o universal concreto escolhido por Lefebvre e, como tal, constitui o centro da sua nova teoria unificada que é, na sua essência, uma teoria da mudança social ou uma ciência prática do espaço urbano: "A problemática do espaço compreende a problemática do urbano (a cidade, a sua expansão) e do quotidiano (o consumo programado) e substitui assim a problemática da industrialização, mas sem a eliminar, visto que as relações sociais preexistentes subsistem e o novo problema é precisamente o da reprodução". À praxis industrial sucede a praxis urbana, cuja missão histórica é realizar plenamente a sociedade urbana, não já definida em termos de mera apropriação colectiva e individual da natureza, mas sim em termos de segunda natureza. Lefebvre atribui um papel importante aos intelectuais no movimento revolucionário urbano, destacando a tricotomia habitantes-artistas-autoridades em vez da classe operária. As elites intelectuais - filósofos, artistas, literatos e cientistas - devem indicar às massas a impossibilidade de viver num espaço gerido pelas leis da massificação e pelos critérios restritivos da quantidade, de modo a induzir um espírito de mudança enraizado na dimensão espacial e temporal da vida quotidiana - o mundo da vida de Husserl, Schutz e Habermas -, capaz de construir o urbano como obra (de arte) e de modelar a sociedade segundo os seus desejos ou segundo o seu Desejo.
A construção teórica de Lefebvre funda-se no princípio de que "o espaço é um produto social". Este princípio do espaço como produção social já está presente nas obras de Marx, Engels, Alfred Weber (irmão de Max Weber), Simmel e Lukács, onde a vida urbana não é explicada em função da forma espacial da cidade, mas sim em função dos efeitos dos padrões de mobilidade social: a fragmentação e a diversidade da vida urbana, bem como o movimento, a diversidade de estímulos e as apropriações visuais dos lugares, constituem aspectos centrais da experiência do espaço urbano. A análise de Marx da acumulação capitalista mostra que esta se baseia na aniquilação do espaço pelo tempo, o que produziu transformações profundas na agricultura, na indústria e na população ao longo do tempo e do espaço. No entanto, coube a Durkheim elaborar uma teoria social do espaço, mediante a impugnação da concepção kantiana do espaço como um meio vago e indeterminado. A sua teoria compreende basicamente dois elementos: Dado que numa determinada sociedade todos os seus membros têm representações semelhantes do espaço, a causa dessas representações espaciais é de natureza social (1), e essas representações espaciais espelham quase literalmente, pelo menos em alguns casos, o padrão dominante de organização social (2). As categorias do entendimento - escreve Durkheim - "não só vêm da sociedade, como as próprias coisas que exprimem são sociais. Não somente foi a sociedade que as instituiu, como são aspectos diferentes do ser social que lhes serve de conteúdo: a categoria de género começou por ser indistinta do conceito de grupo humano; é o ritmo da vida social que está na base da categoria de tempo; o espaço ocupado pela sociedade é que forneceu a matéria da categoria de espaço; a força colectiva é que foi o protótipo do conceito de força motriz, elemento essencial da categoria de causalidade. No entanto, as categorias não são feitas para serem aplicadas unicamente ao reino social, elas estendem-se à realidade inteira". Da Escola Durkheimiana destacam-se os trabalhos teóricos de Marcel Mauss (sociedade esquimó), Lucien Lévy-Bruhl (povos primitivos), Jean Cazeneuve (locais sagrados), Maurice Halbwachs (memória colectiva), Robert Herz (predominância da mão direita), Marcel Granet (chineses) e J. Chelhod (árabes), entre tantos outros, que ajudaram a clarificar a noção colectiva de espaço nos tipos mais diversos de organização social.
Sem abdicar da sua marcação marxista, Lefebvre utiliza o conceito de produção de espaço no sentido hegeliano, para designar o processo pelo qual os homens, enquanto seres humanos, produzem e reproduzem a sua vida, a sua história e a sua consciência: não existe nada na história e na sociedade que não tenha sido produzido pelos homens. A própria natureza, tal como se apresenta na vida social aos órgãos dos sentidos, foi transformada e produzida pela acção humana. Tomado neste sentido mais alargado, o princípio da produção do espaço tem implicações de grande alcance, uma das quais é o desaparecimento irreversível do espaço-natureza. A visão lefebvriana da natureza não é instrumental: a dominação total da natureza operada pelo capitalismo é claramente condenada. A tarefa não é dominar a natureza, mas transformá-la num símbolo que acompanha a sua destruição real, de modo a podermos salvá-la e, ao mesmo tempo, participar na conjura contra ela. Anthony Giddens considera que a nossa sociedade vive para lá do fim da natureza, não no sentido do mundo físico e dos processos físicos terem deixado de existir, mas no sentido de existirem poucos aspectos do ambiente natural que nos rodeia que não tenham sido afectados e modificados pela intervenção do homem, porque, como mostrou Lefebvre, a natureza foi reduzida ao longo da história humana a "matéria-prima" sobre a qual actuaram as sociedades e os respectivos modos de produção para produzir o seu espaço. Cada sociedade produz o seu espaço e este espaço inclui as relações sociais de reprodução e as relações de produção. O neocapitalismo moderno complexifica o espaço social, dotando-o de uma tripla-relação: a reprodução biológica, a reprodução da força de trabalho e a reprodução das relações sociais de produção. O espaço entendido como produto de um processo produtivo tem uma história: história da sua produção, das suas formas e das suas representações determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. Numa primeira aproximação, Lefebvre elabora uma sequência de cinco tipos de espaço que, mais tarde, especifica em função da periodização histórica dos modos de produção: o espaço absoluto, o espaço histórico, o espaço abstracto, o espaço contraditório e o espaço diferencial. O espaço absoluto é o lugar natural pré-seleccionado pela sua consagração, mediante a qual é transformado em símbolo ou em parte de um rito: as forças políticas que ocupam esse espaço consagrado apropriam-se, administrando-a, da produção daqueles que criaram o espaço. Sacerdotes, escribas, guerreiros e príncipes usurpam o espaço e dominam os camponeses e os artesãos. As contradições inerentes às relações sociais de produção conduzem à passagem para outro modo de produção e o espaço-comunidade de sangue dá lugar ao espaço histórico, um espaço relativizado e animado por um sujeito colectivo: a cidade histórica ocidental. A actividade produtiva separa-se da reprodução que perpetua a vida social e torna-se escrava da abstracção: trabalho social abstracto, espaço abstracto. O espaço abstracto - enquanto espaço produzido pelo capitalismo - não se define apenas pelo desaparecimento das árvores, pelo distanciamento da natureza, pelos vazios estatais ou militares, pelas praças-encruzilhadas ou pelos centros comerciais onde confluem as mercadorias, o dinheiro e os automóveis, mas sobretudo pela sua abstracção que esconde, no seu sistema reticular, a vigilância do poder político: "O capitalismo ressurgente do século XVII tratou terrenos, quarteirões, ruas e avenidas como unidades abstractas destinadas à compra e venda, desprezando os usos históricos, as condições topográficas ou as necessidades sociais" (Lewis Mumford). A uniformidade absoluta dos lotes resulta da equiparação do valor da terra ao do dinheiro. O espaço social moderno é usado pelas classes dirigentes como instrumento polivalente para desmembrar e dispersar as classes dominadas e para controlar e regular a sociedade através da organização tecnocrática dos fluxos económicos, financeiros e sociais que definem a cidade moderna. A divisão social e técnica do trabalho é plasmada nesse espaço urbano, complexo e quotidiano, que assegura, em grande medida, a reprodução das relações de produção, dissociando o desejo e as necessidades e fornecendo à classe média representações tranquilizadoras que lhe garantem um lugar rotulado e assegurado. No entanto, no seio desse espaço urbano abstracto emergem novas contradições, das quais a mais importante é a contradição existente entre a possibilidade teórica de controlar globalmente o desenvolvimento do espaço e o seu parcelamento dependente das leis da economia de mercado. Deste modo, o espaço de contradição antecipa o espaço diferencial como antítese do espaço abstracto.
A história social do espaço urbano esboçada por Lefebvre faz corresponder aproximadamente, de modo imperfeito, cada tipo de espaço urbano a um determinado modo de produção, seguindo a periodização histórica dos modos de produção de Marx: ao comunismo primitivo corresponde o espaço analógico, ao modo de produção antigo ou esclavagista o espaço cosmológico, ao modo de produção medieval ou feudal o espaço simbólico, ao modo de produção capitalista o espaço homogéneo e fragmentado, sendo a transição do feudalismo para o capitalismo realizada pelo espaço perspectiva do Renascimento, e, finalmente, ao socialismo o espaço diferencial. O espaço analógico é o espaço ocupado pelas comunidades primitivas que adoptam o organismo humano como modelo inspirador da construção do seu espaço quotidiano. No modo de produção antigo, a cidade ou um dos seus monumentos expressam e reproduzem a ordem cósmica. O espaço da cidade medieval apresenta-se como um espaço cheio de símbolos religiosos e o mesmo pode ser dito do espaço perspectiva do Renascimento. O capitalismo gera um espaço homogéneo e fragmentado: homogéneo, porque tudo nele é equivalente e objecto de troca, e fragmentado, porque está dividido em pedaços e parcelas que se vendem segundo os critérios estabelecidos pela renda do solo. O habitat moderno gera alienação e desigualdades sociais. As tensões relacionadas com a satisfação incompleta das necessidades e do Desejo crescem a um tal ritmo que a multitude visível de objectos e a multitude invisível das necessidades ocupam todo o espaço. A sociedade moderna perdeu a utopia da apropriação colectiva da natureza como condição indispensável da apropriação individual. A natureza, força produtiva e produto das sociedades anteriores, transforma-se continuamente graças ao trabalho do homem. A sociedade capitalista domina e devasta a natureza. O espaço dominado define-se por oposição ao espaço apropriado: o espaço dominado é um espaço natural transformado pela técnica e pela política em função da ideia de centralidade total imposta pelas autoridades estatais (técnicos, planificadores), enquanto o espaço apropriado é um espaço natural modificado para servir as necessidades e as possibilidades de um grupo social que se apropria dele. O resultado desta estratégia de dominação técnica e política é o bloqueamento do desenvolvimento histórico do espaço urbano. A cidade transforma-se em lugar de violência e a centralidade total expulsa os deserdados para as periferias, ao mesmo tempo que alimenta o movimento de fuga para a natureza. O espaço diferencial manifesta-se neste espaço capitalista como uma tendência ou uma possibilidade que ainda não está plenamente realizada, embora se insinue em todos os níveis da vida urbana: a casa, a escola, o bairro e a cidade revelam diferenças que o espaço abstracto procura encobrir e ocultar. O espaço diferencial reúne o que está dividido, nomeadamente o público e o privado, demolindo as separações que exprimem o domínio de um espaço sobre outro espaço, como sucede com a separação entre o centro e a periferia. (Publicado aqui.)
J Francisco Saraiva de Sousa
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sexta-feira, 2 de abril de 2010
Max Horkheimer: Crítica da Razão Instrumental
«Hoje a ideia de maioria, privada dos seus fundamentos racionais, assumiu um aspecto completamente irracional. Toda a ideia filosófica, ética e política - tendo sido cortado o cordão umbilical que ligava essas ideias às suas origens históricas - tende a tornar-se o núcleo de uma nova mitologia, e esta é uma das razões pela qual o avanço do iluminismo tende a reverter, até certo ponto, para a superstição e a paranóia. O princípio da maioria, na forma de veredictos populares sobre todo e qualquer assunto, implementado por toda a espécie de escrutínios e modernas formas de comunicação, tornou-se a força soberana à qual o pensamento tem de prover. É um novo deus, não no sentido em que os arautos das grandes revoluções o conceberam, isto é, como um poder de resistência à injustiça existente, mas como um poder de resistência a qualquer coisa que não se acomode. Quanto mais o julgamento do povo é manipulado por todo o tipo de interesses, mais a maioria é apresentada como árbitro na vida cultural. Presume-se que justifique os representantes da cultura em todos os seus domínios, até os produtos da arte e da literatura popular que enganam as massas. Quanto mais a propaganda científica faz da opinião pública um simples instrumento de forças obscuras, mais a opinião pública surge como um substituto da razão. Esse ilusório triunfo do progresso democrático consome a substância intelectual da qual tem vivido a democracia». (Max Horkheimer) Uma visão de conjunto da evolução da teoria crítica - a expressão forjada por Horkheimer nos anos 30 do século XX para designar o marxismo visto como uma filosofia da não-identidade - e do percurso histórico da Escola de Frankfurt é-nos dada por Martin Jay, Rolf Wiggershaus, David Held, Paul-Laurent Assoun, Zoltán Tar, Eugene Lunn, Terry Eagleton, Stephen Eric Bronner, Christoph Türcke e Fredric Jameson. A criação oficial do Institut für Socialforschung (Instituto de Pesquisa Social) teve lugar no dia 3 de Fevereiro de 1923, por um decreto do Ministério da Educação, na base de um acordo com a Gesellschaft für Socialforschung (Sociedade para a Investigação Social). O seu primeiro director indigitado foi Carl Grünberg e a sua revista chamava-se Archiv, sendo em 1932 substituída pela Zeitschrift für Socialforschung. Em 1931, Horkheimer reorganiza o Instituto de Pesquisa Social e imprime-lhe uma nova orientação teórica e um novo projecto político: a sociologia é substituída pela Filosofia Social. Surge assim a teoria crítica como uma tentativa teórica original, cujo manifesto é o artigo de Horkheimer - Teoria Tradicional e Teoria Crítica, publicado na Zeitschrift, em 1937. A teoria crítica é basicamente uma criação de Max Horkheimer (1895-1973). Os pensadores mais ilustres da Escola de Frankfurt são, além do seu fundador, Theodor W. Adorno (1903-1969), Herbert Marcuse (1898-1978), Walter Benjamin (1892-1940) e Erich Fromm (1900-1980), aos quais podemos acrescentar Ernst Bloch (1885-1977) e Jürgen Habermas. Outros nomes menos conhecidos são Franz Borkenau, Kurt Albert Gerlach, Henryk Grossmann, Otto Kirchheimer, Mira Komarovski, Siegfried Kracauer, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Friedrich Pollock, Andries Sternheim, Félix Weil e Karl August Wittfogel. Nesta hora de despertar do pesadelo neoliberal, é preciso reconstruir a teoria crítica e esta reconstrução exige não só o repúdio da ética do discurso de Karl Otto Apel e Jürgen Habermas, mas sobretudo a construção de uma nova utopia, em diálogo produtivo com Marx e os textos seminais da Escola de Frankfurt. Na Primavera de 1944 (Fevereiro e Março), Horkheimer realizou cinco palestras públicas na Universidade de Colúmbia, das quais resultou a publicação em 1947 do seu livro Eclipse of Reason, onde apresenta as suas ideias sobre a dialéctica do esclarecimento. Em 1947, Horkheimer e Adorno publicaram Dialektik der Aufklärung. A análise crítica da Dialéctica do Esclarecimento fornece-nos todos os instrumentos teóricos necessários para compreender a crise profunda da Modernidade: Horkheimer e Adorno generalizam a crítica marxista da história das sociedades de classes na direcção de uma crítica fundamental e total da história do pensamento ocidental e da sua praxis, entendida como a lógica de uma dominação universal da natureza e do homem. A radicalização da crítica justifica-se pelo facto da dominação da natureza estar a assumir formas não económicas: a visão do mundo natural como um campo de controle e de manipulação humana implica a dominação do próprio homem e do mundo humano. O Iluminismo já não pode ser visto unicamente como o correlato cultural da burguesia em ascensão, mas deve ser alargado de modo a incluir o espectro completo do pensamento ocidental ou mesmo do pensamento em geral. A razão toma assim a sua dimensão histórico-filosófica, de modo a poder pensar como entrou num conflito tão radical consigo própria. Com esta crítica radical da razão que entra em conflito consigo mesma no seio da história, a teoria crítica converte-se numa nova Filosofia da História que desmonta a mitologia da Modernidade capitalista: «o próprio mito é já razão e a razão volta a ser mitologia». O ideal de dominar a natureza, cujos traços já se encontram na astúcia de Ulisses e até mesmo no Génesis, sela o destino da razão instrumental e da autoridade: a vocação emancipatória da razão cede à barbárie. A razão instrumentaliza-se ao transformar a natureza em instrumento, enquanto a natureza procura vingar-se periodicamente contra essa sujeição instrumental. Porém, a revolta da natureza acaba por ser integrada no sistema capitalista, como seu mecanismo de perpetuação, paralisando a crítica e a praxis radical de transformação do mundo. Horkheimer e Adorno usam o princípio marxista da troca como conceito-chave para compreender a sociedade ocidental na sua evolução histórica, o que lhes permite ligar a racionalização de Weber ao conceito de reificação de Lukács. À radicalização da crítica deveria corresponder uma praxis radical e era essa a intenção da Escola de Frankfurt: a razão (Vernunft) - o conceito nuclear da teoria crítica - significa a reconciliação das contradições, incluindo a contradição entre homem e natureza. Após criticar severamente as teorias da identidade absoluta, sem no entanto negar a separação do sujeito e do objecto, Horkheimer destaca a importância da razão objectiva como um antídoto a ser usado contra o império reificado da razão subjectiva instrumentalizada: «Os dois conceitos de razão não representam duas vias separadas e independentes da mente, embora a sua oposição represente uma verdadeira antinomia. A tarefa da filosofia não é lançar teimosamente um contra o outro, mas promover a crítica recíproca dos dois conceitos e, deste modo, se for possível, preparar na esfera intelectual a conciliação dos dois na realidade» (Horkheimer). O Eclipse da Razão de Horkheimer compreende cinco capítulos - Meios e Fins (I), Panaceias em Conflito (II), A Revolta da Natureza (III), Ascensão e Declínio do Indivíduo (IV) e Sobre o Conceito de Filosofia (V). O objectivo da análise realizada por Horkheimer é explicitar, numa perspectiva imanente, o conceito de racionalidade subjacente à nossa cultura, a fim de «descobrir se esse conceito não contém falhas que o tornam vicioso». Horkheimer descobre uma falha fatal: o conhecimento técnico alarga o horizonte da acção e do pensamento humanos, enquanto a autonomia do indivíduo, a sua capacidade de resistir ao mecanismo de manipulação das massas, o seu poder de imaginação e o seu pensamento independente, sofrem uma regressão substancial. O avanço dos recursos técnicos de informação e a omnipresença do sistema todo-poderoso da indústria cultural implicam um processo de desumanização: «o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objectivo: a ideia de homem». A emergência vitoriosa do neobarbarismo é sintoma da crise da cultura superior do Ocidente: a racionalidade progressista está, na perspectiva de Horkheimer, «a obliterar a própria substância da razão, em nome da qual se apoia a causa do progresso». 1. Meios e Fins. Neste primeiro capítulo, Horkheimer estabelece uma diferenciação entre razão subjectiva - a racionalidade formal de Weber - e razão objectiva - a racionalidade substantiva de Weber, de modo a clarificar o processo de formalização da razão e as suas implicações teóricas e práticas de longo alcance, tais como a perda da força racional dos conceitos, a dissolução da ideia de razão objectiva, a desumanização do pensamento, a dissociação entre as aspirações humanas e as potencialidades da ideia de verdade objectiva, a instrumentalização da actividade, o pluralismo gerador de um traço esquizofrénico na vida moderna, a perda da experiência, a neutralização da mensagem subversiva das obras de arte, a perseguição da filosofia e a estupidificação da razão. A distinção entre razão objectiva e razão subjectiva corresponde à diferenciação feita na Dialéctica do Esclarecimento (Horkheimer e Adorno) entre dois conceitos de esclarecimento: a razão objectiva destaca os fins e a harmonia como um princípio inerente à realidade, enquanto a razão subjectiva se relaciona com os meios e a adequação de procedimentos a propósitos considerados como certos e presumivelmente auto-justificativos, sem questionar a sua racionalidade. A passagem da razão objectiva para a razão subjectiva foi um processo histórico gradual de esvaziamento do conteúdo objectivo de todos os conceitos racionais, do qual resultou finalmente no nosso tempo indigente a impossibilidade de ver a realidade particular como racional per si: «todos os conceitos básicos, esvaziados do seu conteúdo, tornaram-se meros invólucros formais». A subjectivação da razão - reduzida à capacidade de calcular probabilidades e de coordenar os meios correctos para alcançar um determinado objectivo, implica, simultaneamente, a sua formalização e a sua instrumentalização: a razão transforma-se em mero instrumento usado pelo sistema para dominar a natureza e o homem. O eclipse da razão objectiva é, portanto, o triunfo da razão instrumental, cujo significado é retirado da sua ligação a outros fins alheios à racionalidade e cujo valor é determinado pela função operacional que desempenha na dominação da natureza e do homem. Uma actividade só é racional quando serve outro fim ou propósito - o negócio, a saúde, o relaxamento, o descanso, etc., que ajude a recuperar a energia produtiva, e, no que respeita às obras de arte, a formalização da razão manifesta-se como reificação. A reificação resulta da transformação operada pelo aparelho económico capitalista de todos os produtos da actividade humana em mercadorias. Horkheimer destaca o papel desempenhado pelo pragmatismo neste processo de subjectivação da razão: a tese central do pragmatismo - James, Dewey e Peirce - é «a opinião de que uma ideia, um conceito ou uma teoria, mais não são do que um esquema ou plano de acção». A definição da verdade como o sucesso da ideia significa que as nossas ideias são verdadeiras porque as nossas expectativas se cumprem e as nossas acções têm sucesso. O ataque pragmatista à contemplação e ao pensamento especulativo visa glorificar a perícia técnica: o pensamento passa a ser avaliado por algo que não é pensamento - o seu efeito na produção ou o seu impacto sobre o comportamento social. Ao liquidar-se a si mesma, abdicando da sua capacidade para determinar a racionalidade dos fins, a razão capitula perante o sistema social existente, levando ao conformismo: o indivíduo ajusta o seu comportamento à realidade tal como é. Ser racional é, segundo esta perspectiva instrumental, não ser refractário. 2. Panaceias em Conflito. A dialéctica elabora-se e exerce-se na e pela crítica da sociedade estabelecida e das suas ideologias. Sem esses conteúdos objectivos não há propriamente dialéctica: Horkheimer elaborou a teoria crítica através do diálogo e da crítica de outros pensadores - Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson, Dilthey, Weber, Husserl, Heidegger, Scheler, Sartre - e de outras tradições filosóficas - o positivismo, o pragmatismo, a Lebensphilosophie, o existencialismo, o neotomismo, a metafísica, a fenomenologia -, isto é, a génese da teoria crítica foi tão dialéctica como o método que aplicou aos fenómenos sociais. As panaceias em conflito são, neste segundo capítulo, o positivismo, do qual o pragmatismo é uma versão, e o neotomismo: «Tendo perdido a sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjectiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objectivo; no seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterónomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. O seu valor operacional, o seu papel na dominação dos homens e da natureza tornou-se o único critério para a avaliar». Horkheimer encara o pragmatismo como uma expressão do positivismo, porque ambas as correntes do pensamento identificam a filosofia com o cientismo: a apologia da ciência-instrumento vista como a campeã automática do progresso e como glorificação da tecnologia. A crítica do cientismo nestas duas versões complementares é articulada por Horkheimer com a crítica do neotomismo: as duas escolas antagónicas são censuradas pelo facto de bloquearem o pensamento crítico, através de afirmações autoritárias e despóticas. Segundo Horkheimer, cada uma destas filosofias expressa uma verdade, mas, logo a seguir, é levada a distorcê-la e a torná-la exclusiva: o positivismo critica o dogmatismo, anulando o princípio de verdade, em nome do qual a crítica alcança o seu sentido, enquanto o neotomismo defende o princípio de verdade com uma tal rigidez que o transforma no seu oposto. Positivismo e neotomismo têm um carácter heterónomo: o primeiro tende a substituir a razão autónoma pelo automatismo da metodologia científica moderna, o segundo pela autoridade de um dogma. 3. A Revolta da Natureza. A natureza dominada vinga-se periodicamente contra a sua sujeição repressiva, quer sob a forma de rebeliões sociais, quer sob a forma do crime organizado e da perturbação mental. Horkheimer retoma aqui o conceito freudiano de civilização como repressão das exigências dos instintos humanos, ligando-o ao processo histórico da sociedade burguesa que visa a dominação da natureza, para minar a ideia de progresso e a tese iluminista do desencantamento do mundo: «Dado que a subjugação da natureza, dentro e fora do homem, prossegue sem um motivo significativo, a natureza não é efectivamente transcendida ou reconciliada, mas simplesmente reprimida». O processo de repressão provoca reacções violentas por parte da natureza que acossam a civilização desde os seus primórdios. Porém, a moderna civilização burguesa conseguiu integrar e domesticar essas revoltas da natureza, usando-as como mecanismo de perpetuação da sua matriz civilizacional: «Traços típicos da nossa era actual são a manipulação desta revolta pelas forças predominantes da própria civilização e o uso da mesma como um meio de perpetuação das próprias condições que a provocaram e contra as quais insurge. A civilização como irracionalidade racionalizada integra a revolta da natureza como outro meio ou instrumento». Horkheimer analisa o fascismo como o culminar da racionalidade técnica da sociedade capitalista. Com a emergência do fascismo, o iluminismo retrocede à barbárie: o fascismo, compreendido como síntese satânica da razão instrumental e da natureza, encoraja a revolta da natureza do indivíduo e, ao mesmo tempo, suprime-a: «No fascismo moderno, a racionalidade atingiu um ponto em que não se satisfaz simplesmente com a repressão da natureza; a racionalidade agora explora a natureza, incorporando no seu próprio sistema as potencialidades rebeldes da natureza. Os nazis manipularam os desejos reprimidos do povo alemão». A actual crise financeira e económica revela o momento de verdade da teoria do fascismo de Horkheimer e de Marcuse, segundo a qual o totalitarismo é o resultado natural da democracia liberal-burguesa. A teoria de Marx não precisa ser revista para identificar o fascismo: o que se modificou no capitalismo tardio (Werner Sombart) foi a forma de dominação. As posições de comando dispersas em organizações individuais foram substituídas pela dominação totalitária dos interesses particulares sobre toda a sociedade, alterando substancialmente a composição das classes dirigentes. A burocracia foi alargada até adquirir um grau elevado de autonomia. O capitalismo organizou-se e planificou-se com a revolução dos administradores (James Burnham). Independentemente de se reclamarem da Direita ou da Esquerda, os economistas, os gestores, os administradores e os políticos neoliberais comportam-se como fascistas, que organizam e remodelam a população numa colectividade resignada e pronta a servir nas mãos das novas classes dirigentes qualquer objectivo civil e militar. O neoliberalismo que culmina o capitalismo tardio (Spätkapitalismus) à escala global e que produziu a actual crise financeira e económica é, na sua substância, neofascismo, que recorre ao darwinismo para legitimar a sua dominação global. Horkheimer discute diversos aspectos do mecanismo de perpetuação, tais como a interiorização da dominação pelo desenvolvimento do sujeito abstracto, a inversão dialéctica do princípio de dominação pela qual o homem se torna, ele próprio, um instrumento da mesma natureza daquele que domina, e a repressão do impulso mimético, mediante os quais a civilização procura integrar a revolta da natureza no seu próprio sistema, negando o antagonismo do espírito em relação à natureza. Porém, como a ideologia do neoliberalismo decorre do darwinismo incorporado no pragmatismo americano, vamos analisar apenas a situação do homem numa cultura de autopreservação, a partir do darwinismo perspectivado como uma filosofia que pertence à principal corrente derivada do iluminismo - o positivismo - e que reflecte a revolta da natureza contra a razão. Segundo o darwinismo popular - aquele que predomina actualmente na divulgação científica - a sobrevivência do mais apto - o êxito ou sucesso do indivíduo, em linguagem económica neoliberal -, depende da sua capacidade de adaptação às pressões que a sociedade e a economia de mercado exercem sobre ele: a sobrevivência do indivíduo requer a sua transformação num mecanismo que reage a cada momento às situações difíceis de um modo apropriado e, na nossa sociedade industrializada, deliberadamente ajustado. Como a vida social está cada vez mais submetida à racionalização e à planificação, a vida do indivíduo, incluindo os seus impulsos mais ocultos, que outrora constituíam o seu domínio privado, deve adaptar-se às exigências da racionalização e da planificação sociais: «a autopreservação do indivíduo pressupõe o seu ajustamento às exigências de preservação do sistema», do qual não consegue escapar. Ora, a racionalização não resulta da acção de forças anónimas do mercado, mas sim da acção consciente de uma minoria de burocratas e de tecnocratas, que decide em nome da massa de sujeitos, obrigando-os a ajustar as suas vidas e os seus comportamentos a uma realidade que os confronta como algo absoluto e esmagador: aqueles que recusam navegar a onda criada pelas classes dirigentes são automaticamente excluídos. O princípio de realidade estabelecido não permite ao indivíduo - outrora autónomo - confrontá-lo e conformar a realidade com a esfera do ideal: as ideologias foram sistemática e deliberadamente desacreditadas ou omitidas pelo pensamento único, com o objectivo de facilitar a elevação da realidade estabelecida ao status de ideal. O ajustamento é apresentado como o modelo de todos os tipos de comportamento subjectivo e objectivo, privado e público: o triunfo da razão subjectiva é, portanto, o triunfo da realidade unidimensional, para usar o conceito de Marcuse. A minoria de gestores corruptos que levou a cabo a globalização substituiu a selecção natural pela acção racional, mas compreendeu que o conceito de sobrevivência do mais apto é simplesmente a tradução dos conceitos da razão formalizada - e da sua economia neoliberal - na linguagem da história natural. Darwin inverte a metafísica idealista, quando encara a razão como um órgão da natureza. Para a metafísica idealista, o mundo era, de certo modo, um produto da mente, enquanto, para o darwinismo, a mente é um processo da natureza, que abdica da filosofia para lhe dar voz: «a natureza, poderosa e venerável deidade, é governante e não governada». Embora tenha auxiliado a natureza rebelde, libertando-a da tirania do logos, a equiparação darwinista da razão e da natureza é uma falácia típica da era da racionalização instrumental: a equiparação darwinista da razão e da natureza degrada a razão e exalta a natureza bruta como pura vitalidade. Idealismo e materialismo mais não são do que meras versões da racionalidade instrumental: o primeiro deprecia a natureza como força bruta, o segundo louva-a como pura vitalidade, mas ambos bloqueiam a visão da natureza como «um texto a ser interpretado pela filosofia que, se for correctamente lido, revelará uma história de sofrimento infinito». Porém, o darwinismo exige a adaptação incondicional do indivíduo a uma realidade social esmagadora, cuja opacidade não permite questionar e problematizar: o seu conceito de razão como órgão natural, em vez de libertar a razão da sua tendência intrínseca para a dominação e de a investir com maiores possibilidades de conciliação, implica a rejeição de todos os elementos da mente que transcendam a função de adaptação, usando-os como meros instrumentos da autopreservação. A abdicação darwinista do espírito converte a razão em serva da selecção natural. A dialéctica procura uma terceira alternativa que possibilite conciliar a natureza e a razão, para além do materialismo e do idealismo, porque a negação teórica do antagonismo entre espírito e natureza significa, na prática, admitir o princípio da dominação universal da natureza pelo homem. Como escreve Horkheimer: «Somos herdeiros, para o melhor ou o pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se a ambos por um regresso a estágios mais primitivos não alivia a crise permanente que deles resulta. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente». 4. Ascensão e Declínio do Indivíduo. A liquidação da razão acarreta necessariamente a liquidação do indivíduo: «Se a razão é declarada incapaz de determinar os objectivos supremos da vida e deve contentar-se em reduzir tudo o que encontra a um mero instrumento, o seu único objectivo remanescente é apenas a perpetuação da sua actividade de coordenação. Essa actividade era outrora atribuída ao sujeito autónomo. Contudo, o processo de subjectivação afectou todas as categorias filosóficas: em vez de as relativizar e de as preservar numa unidade de pensamento melhor estruturada, reduziu-as ao status de factos a ser catalogados. Isso também é verdadeiro para a categoria do sujeito. A filosofia dialéctica desde os tempos de Kant tentou preservar o transcendentalismo crítico, sobretudo o princípio de que os traços e as categorias fundamentais da nossa compreensão do mundo dependem de factores subjectivos. A consciência da tarefa de determinar as origens subjectivas dos conceitos deve estar presente em cada etapa de definição do objecto. Isso aplica-se tanto às ideias básicas como facto, acontecimento, coisa, objecto, natureza, quanto às relações psicológicas ou sociológicas. Desde o tempo de Kant, o idealismo jamais esqueceu essa exigência da filosofia crítica. Até os neo-hegelianos da corrente espiritualista vêem no ego "a mais alta forma de experiência que nós temos, mas... não uma forma verdadeira", porque a ideia de sujeito é em si mesma um conceito que deve ser relativizado pelo pensamento filosófico. Mas Dewey, que por vezes parece unir-se a Bradley na elevação da experiência à mais elevada posição na metafísica, declara que "o ego ou sujeito da experiência é parte e parcela do curso dos acontecimentos". Segundo Dewey, "o organismo - o ego, o sujeito da acção - é um factor dentro da experiência". E, no entanto, quanto mais a natureza é vista como "uma total mixórdia de substâncias heterogéneas", como meros objectos em relação aos sujeitos humanos, mais o outrora presumivelmente sujeito autónomo é esvaziado de qualquer conteúdo, até se tornar finalmente um mero nome sem nada a denominar. A transformação completa de todos os domínios do ser à condição de meios conduz à liquidação do sujeito que presumivelmente deveria usá-los. Isto dá à moderna sociedade industrializada o seu aspecto niilista. A subjectivação que exalta o sujeito também o condena. /No processo da sua emancipação, o ser humano partilha o destino do resto do seu mundo. A dominação da natureza envolve a dominação do homem. Cada sujeito deve não só participar na sujeição da natureza exterior, humana ou não-humana, como, para o fazer, deve subjugar a natureza em si mesmo. A dominação tornou-se interiorizada por si mesma». Com a entrada da psicanálise no Instituto de Pesquisa Social, termina a era de Grünberg e começa a era de Horkheimer: o recurso à teoria de Freud é fundamental para compreender o mecanismo de perpetuação que integra a revolta da natureza no próprio sistema da civilização ocidental. A interiorização da repressão e a inversão dialéctica do princípio de dominação ajudam a clarificar o destino do indivíduo na cultura da autopreservação. Horkheimer analisa exaustivamente as peripécias da individualidade ao longo da história do Ocidente, isto é, desde a ascensão do indíviduo na Grécia Antiga até ao seu declínio na sociedade moderna. O que interessa aqui destacar é a crise do indivíduo: o antagonismo entre a individualidade e as condições económicas e sociais da sua existência deixou de ser na sociedade de consumo um elemento essencial na construção da própria individualidade. O antagonismo em relação à sociedade, mediante o qual o indivíduo constrói o seu self como projecto, foi completamente suplantado na mente consciente dos indivíduos pelo desejo de adaptação milimétrica à realidade. A mediação do poder social pelo poder sobre as coisas implica o domínio do próprio indivíduo pelas coisas, a perda de traços individuais genuínos, a perda de liberdade e a transformação da sua mente num autómato da razão formalizada. O sistema da indústria cultural ajuda a integrar o indivíduo no sistema de instrumentos, mostrando-lhe o seu caminho na realidade como ela é e como deve ser e será. O liberalismo conduziu, pela via da colonização económica do mundo da vida e do mundo da personalidade, ao conformismo total: a mónada liberal - o símbolo do indivíduo económico atomístico da sociedade burguesa - converteu-se finalmente num tipo social, isto é, numa figura sem rosto e sem personalidade, incapaz de planear o futuro remoto para os seus herdeiros e para si. O indivíduo entregue exlusivamente à tarefa da autopreservação desiste da sua esperança de auto-realização: a sua mente está fechada para o sonho de um mundo basicamente diferente e para os conceitos que, em vez de serem meras classificações ou rótulos de factos e de estatísticas, sejam orientados para a realização verdadeira de um mundo melhor. De certo modo, estes indivíduos de mente fechada e cognitivamente atrofiada são meras projecções astrais da mente do engenheiro, isto é, da mente do industrial em forma tecnológica e economicamente orientada: o comando decidido da mente tecnológica visa transformar «os homens num conjunto de instrumentos sem objectivos próprios». O processo de reificação do homem está praticamente consumado nesta era tecnocrática e economicista: o homem é cada vez mais reduzido a um mero instrumento, avaliado em função de critérios estritamente económicos, tais como a sua produtividade, a sua eficiência e a sua competitividade. Perante este processo que converte o homem em instrumento, o empresário em funcionário, o trabalhador em sindicalista integrado, o político em corrupto deslumbrado, o economista em ladrão profissional, o universitário em burreco diplomado, o magistrado em agitador fascista, o jornalista em criador de intrigas, o professor em incompetente diplomado e o erudito em especialista da opinião pública, e que paralisa a evolução para o humano, a filosofia desespera, porque teme pelo futuro: «Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular (da TV), os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». 5. Sobre o Conceito de Filosofia. Todos os conceitos filosóficos tradicionais estavam enraizados no conceito do universalmente humano da espécie humana, mas a sua formalização levada a cabo pelo cientismo separou-os desse conteúdo humano. Neste sentido, a formalização da razão significa desumanização do pensamento: o ataque positivista à contemplação e o louvor da perícia técnica expressam o triunfo dos meios sobre os fins, ou seja, o triunfo pragmatista da fábrica como protótipo da existência humana, mediante o qual todos os sectores da cultura superior são modelados segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório executivo racionalizado. A Filosofia torna-se assim alvo da perseguição totalitária movida pela mentalidade de engenheiro contra os intelectuais que recusam reduzir a razão a um mero instrumento: «Um homem inteligente não é aquele que pode simplesmente raciocinar com correcção, mas aquele cuja mente está aberta à percepção de conteúdos objectivos, que está apto a receber o impacto das suas estruturas essenciais e a transformá-las em linguagem humana; isto também se aplica à natureza do pensamento como tal e do seu conteúdo objectivo. A neutralização da razão, que a despoja de qualquer relação com o conteúdo objectivo e do seu poder de julgar este último, e que a reduz ao papel de uma agência executiva mais preocupada com o "como" do que com o "porquê", transforma-a cada vez mais num simples mecanismo enfadonho de registar factos. A razão subjectiva perde toda a espontaneidade, produtividade e poder para descobrir e afirmar novas espécies de conteúdo - perde a própria subjectividade. Como uma lâmina de barbear frequentemente afiada, esse "instrumento" torna-se demasiado ténue e, afinal, inadequado até mesmo para dominar as suas tarefas formais». A emancipação do intelecto da vida instintiva não o livra do seu conteúdo concreto. Ao reduzir as suas ligações com este conteúdo, a razão subjectiva atrofia o intelecto e contribui para a crescente estupidificação em curso. Horkheimer opõe ao princípio da dominação da natureza a ideia marxista de reconciliação do homem com a natureza, mas rejeita toda a filosofia que procure afirmar a unidade da natureza e do espírito: o monismo filosófico é censurado pelo facto de servir para entrincheirar e fortificar a ideia de dominação da natureza pelo homem. A dialéctica rejeita tanto o monismo como o dualismo e, nesta dupla-rejeição, resiste à sua própria imobilização: hipostasiar um dos pólos ou dos momentos do processo ou ansiar desesperadamente pela sua resolução final é abdicar da própria dialéctica. Horkheimer reitera a dicotomia metodológica das ciências naturais e das ciências sociais reabsorvidas na e pela Filosofia: as ciências naturais trabalham com fórmulas, enquanto a filosofia reexamina significados. O filósofo, que recusa o temor de que a capacidade de pensar possa ser tolhida de alguma maneira pelo sistema dominante, «não pode falar sobre o homem, o animal, a sociedade, o mundo, a mente, o pensamento, tal como o cientista da natureza fala sobre uma substância química qualquer: o filósofo não possui uma fórmula. Não existe fórmula. A descrição adequada, revelando o significado de qualquer desses conceitos, com todas as suas sombras e interligações com outros conceitos, é ainda uma tarefa prioritária. Aqui, a palavra, com os seus estratos semi-esquecidos de significado e associações, é o princípio director». Estas conexões devem ser repensadas e preservadas nos conceitos, que, longe de sairem limpos e novos em folha das oficinas da produção teórica, são fragmentos de uma verdade total em que se encontra o seu significado: a preocupação fundamental da filosofia é construir a verdade a partir desses fragmentos. Assim, a definição de liberdade é, segundo Horkheimer, a teoria da História e vice-versa. Em polémica com o neopositivismo lógico, Horkheimer repudia a lógica formal, em nome da lógica hegeliana, que «é tanto a lógica do objecto quanto a do sujeito; (que) é uma teoria abrangente das categorias básicas e das relações entre a sociedade, a natureza e a história». Horkheimer atribui à linguagem um papel determinante na compreensão dos fenómenos sociais e na desocultação da verdade, definida como adequação entre o nome e a coisa: «A filosofia é o esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes exactos». Walter Benjamin tinha elaborado uma teoria da linguagem, na base da qual estava a crença de que o mundo tinha sido criado pela palavra de Deus: o acto de criação de Deus é aqui visto como uma concessão ou doação de nomes e o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o dom de nomear. Porém, os nomes do homem e os nomes de Deus não são exactamente os mesmos, porque, com a separação entre o homem e a coisa, se perdeu a adequação absoluta do discurso divino: o discurso humano traz a marca da corrupção que é a lógica formal, mediante a qual o homem nomeia as coisas por meio de abstracções e de generalizações. A tarefa do crítico redentor é precisamente libertar e recuperar essa linguagem de Deus, aprisionada e perdida nos textos humanos, através da descodificação hermenêutica das diversas aproximações inferiores do homem. Embora evite a fundamentação teológica da teoria da linguagem de Benjamin, Horkheimer aceita a noção da corrupção da linguagem «pura» (Karl Krauss): o discurso humano, produzido e difundido pela cultura de massas, tornou-se unidimensional e afirmativo (Marcuse), instrumental e ideológico, e, por isso, na sua condição de instrumento das forças dominantes e obscuras na sociedade administrada, incapaz de expressar a negação, isto é, de escutar a voz de protesto dos oprimidos. Cabe à filosofia chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sondando os testemunhos mudos da linguagem e os estratos da experiência que neles se preservam: «A linguagem reflecte os anseios dos oprimidos e a condição da natureza». A Dialéctica é Filosofia-Mundo e filosofia-mundo negativa, no sentido em que todos os seus conceitos se referem à negação da totalidade antagónica da ordem existente: «O todo é, como escreve Adorno, o não-verdadeiro». Os grandes ideais da civilização ocidental - liberdade, justiça plena, igualdade, fraternidade - são os protestos da natureza contra a sua condição humilhada, perante os quais a filosofia assume duas atitudes: a renúncia à exigência de ser considerada como verdade definitiva e absoluta (1) e a admissão de que as ideias culturais fundamentais têm valores de verdade, que a filosofia pode avaliar, levando em conta o meio social antagónico onde se originam (2). Ao assumir estas duas atitudes, a filosofia opõe-se à ruptura entre as ideias e a realidade: «A filosofia confronta o existente, no seu contexto histórico, com a exigência dos seus princípios conceptuais, a fim de criticar a relação entre ambos e, assim, transcendê-los. A filosofia saca o seu carácter positivo precisamente da acção recíproca destes dois procedimentos negativos». A teoria crítica é geralmente caracterizada como crítica imanente, um procedimento dialéctico que Horkheimer, Benjamin, Adorno e Marcuse usaram de modo ligeiramente distinto. A negação, que exerce um papel fundamental na dialéctica, tem duas faces: (1) negação das pretensões absolutas da ideologia dominante - crítica da ideologia - e (2) negação das exigências imperiosas da realidade estabelecida. A dialéctica debruça-se sobre os valores existentes e insere-os num conjunto teórico que revela a sua relatividade. E, visto que sujeito e objecto, palavra e coisa, não podem ser conciliados nas actuais circunstâncias sociais e económicas, a dialéctica usa o princípio de negação para tentar salvar as verdades relativas do naufrágio dos falsos princípios fundamentais. A essência do pensamento dialéctico reside na compreensão da negatividade e da relatividade da ordem estabelecida e da sua cultura de autopreservação. Mas a posse desse conhecimento não constitui - por si só - a superação da totalidade antagónica existente. A dialéctica marxista é completamente distinta da dialéctica hegeliana, na medida em recusa o princípio de identidade, em nome da diferença entre o ideal e o real e entre a teoria e a praxis. O que está em jogo na situação presente é saber se no futuro irá predominar a tendência barbarizante ou a visão humanista: «A lógica da história é tão destruidora como os homens que produz: onde quer que penda a sua força de gravidade, reproduz o equivalente do infortúnio passado. O normal é a morte». Ou, como Adorno esclarece mais adiante, «a enfermidade actual consiste justamente na normalidade». A filosofia não pode determinar o rumo da história e muito menos garantir de antemão o triunfo da visão humanista, mas, ao «fazer justiça àquelas imagens e ideias que, em determinadas épocas, dominaram a realidade, exercendo o papel de absolutos, e que foram abandonadas no curso da História», pode funcionar como um correctivo da História. Como memória e consciência da espécie humana, a filosofia pode ajudar a evitar que a marcha da humanidade mergulhe na catástrofe: a sua função consiste em auxiliar as pessoas a reconhecer a desproporção entre o peso do mecanismo esmagador do poder social e o das massas atomizadas. A negação determinada, a denúncia da racionalidade instrumental que mutila a humanidade e impede o seu livre desenvolvimento, repousa, como diz Horkheimer, na confiança no homem. (Publicado aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
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