quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Filosofia da Blogosfera (Um)

Estudos Preparatórios.
Num post publicado neste blogue tinha anunciado que iria publicar um texto sobre a blogosfera, cujo estudo se situa no âmbito da CyberFilosofia. Antes desse anúncio, já tinha editado outros textos que tratam de assuntos da competência deste novo ramo da investigação filosófica, dos quais destaco apenas estes:
Cultura das Interfaces, Vidas Electrónicas, GaySex on the Internet, CyberFilosofia e Teoria da Informação I, CyberFilosofia e Teoria da Informação II e O EU E A EXPERIÊNCIA MEDIADA num mundo global.
Nos dois textos sobre «CyberFilosofia e Teoria da Informação», digo claramente que «a cyberfilosofia não é uma mera teoria da informação e da comunicação e, até mesmo quando se debruça sobre esses conceitos, visa a sua ultrapassagem. Com efeito, o mundo da Internet é um mundo social e, como tal, é um mundo histórico. Esta lição de Hegel deve ser integrada na cyberfilosofia, de modo a que esta possa pensar radicalmente a revolução tecnológica do mundo moderno, cada vez mais global e mediado». E, já no final do primeiro texto, acrescento: «Qualquer um dos modelos processuais da comunicação apresentados é incapaz de explicar a comunicação mediada por computador. Esta exige um novo paradigma da comunicação, dada a sua natureza intrinsecamente interactiva, democrática e global».
Esse modelo mais apropriado ao estudo da comunicação mediada por computador é, no fundo, o modelo do diálogo, o qual mereceu a nossa atenção noutros textos editados no nosso blogue «CyberCultura e Democracia Online». (Veja n'«Os Meus Elos».) A aplicação deste modelo do diálogo ou da «conversa alargada sobre o mundo» permite distinguir a blogosfera da mediasfera, em particular do jornalismo profissional. Esta tese foi também desenvolvida por Guiseppe Granieri, Bruce Sterling, Rebecca Blood e Ross Mayfield.
Os textos em questão são dedicados ao estudo da blogosfera entendida como um novo espaço público virtual, aberto a todos e livre de constrangimentos institucionais, muito diferente da mediasfera, dos quais destaco os seguintes: Bloguismo e Jornalismo, Blogosfera Portuguesa Ameaçada?, Colonização da Blogosfera Portuguesa?, BlogoFranciscanos, Blogosfera Portuguesa, Luso-Bloggers Metabólicos, e Abrupto: Um blogue totalitário, entre outros que fazem referências breves à blogosfera portuguesa. A maior parte destes textos são polémicos, dado terem surgido de uma polémica que travei com outros bloguistas a propósito da situação actual da blogosfera portuguesa. Apesar disso, transparece neles os princípios fundamentais que orientam a nossa concepção científica da blogosfera, em geral, e da blogosfera portuguesa, em particular.
Por agora, limito-me a referir esses textos que avançam com um conjunto de hipóteses de trabalho e de princípios teóricos fundamentais para a constituição da cyberfilosofia da blogosfera. A seguir, num próximo texto (Dois), iremos apresentar um resumo desses textos, fora do contexto polémico em que surgiram, e, finalmente, apresentarei a blogscience ou, simplesmente, a filosofia política da blogosfera (Três).
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Cultura das Interfaces

O conceito de «cultura das interfaces» foi elaborado sistematicamente por S. Johnson (1997), no seu livro «Interface Culture».
O tema central de Johnson é a fusão de arte e tecnologia no âmbito da sua concepção das interfaces.
Uma interface é o software que modela a interacção entre utilizador e computador, ou seja, a maneira como o computador «se representa a si próprio perante o utilizador», numa linguagem que o último compreende. A linguagem digital dos zeros e uns é substituída por uma metáfora, de modo a tornar-se inteligível para a maioria dos utilizadores da Internet e, nesta concepção, as interfaces incluem tanto o software como programas de web browsers e e-mail como determinados ambientes digitais a que nos ligamos usando esse mesmo software. Para Johnson, as interfaces «trabalham nessa estranha zona nova a meio caminho entre meio de comunicação e informação/mensagem». Elas são fundamentais para a maneira como os utilizadores da Internet dão sentido aos ambientes da informação moderna. As interfaces constituem componentes fundamentais das interacções online que, de resto, estruturam, funcionando como o seu meio de comunicação e informação.
Johnson destaca cinco componentes interrelacionados das interfaces modernas: a secretária, janelas, ligações, texto e agentes.
A secretária. Quando os criadores das interfaces começaram a trabalhar, foram confrontados com uma «tábua rasa», isto é, um espaço de informação vazio à espera de ser cheio, mas actualmente «as nossas próprias vidas giram à volta de um texto mais prosaico: a secretária do computador».
Janelas. A janela é a forma sintética de uma série de inovações que constituem a interface moderna. A disposição das interfaces accionadas por janelas é essencialmente fluída, podendo ser arrastadas pelo ecrã e redimensionadas com um único clique do rato, dado terem sido concebidas para serem maleáveis e abertas.
Ligações. A janela permite-nos enquadrar informações de modo flexível, enquanto «o hyperlink nos permite juntar os pedaços desse mundo e dar-lhe uma forma coerente». A ligação deve ser entendida como um «dispositivo sintético» e os utilizadores genuínos devem saber criar as suas próprias teias ou redes de associação.
Texto. Nenhum dos componentes referidos minimalizam o alcance do texto no futuro da concepção das interfaces e, neste aspecto, Johnson sugere uma mudança de paradigmas, de modo a que a informação seja organizada segundo relações semânticas baseadas em atributos como palavras-chave contidas nela.
Agentes. Os «agentes-inteligentes» são dispositivos automatizados que ajudam os utilizadores das interfaces a terminar tarefas e atingir objectivos e muitos desses agentes estão incorporados nas interfaces, como aqueles agentes incorporados em web browsers que ajudam os pais a bloquear o acesso a websites que não queiram que os filhos visitem.
Esta análise da cultura das interfaces modernas apresenta ideias extremamente valiosas para a elaboração antropológica e filosófica da cibercultura:
1. Johnson tenta fundir o mundo da tecnologia e o mundo da cultura.
2. Johnson tenta reconhecer o meio da interface como dispositivo de transmissão cultural.
3. Johnson tenta relacionar a concepção da interface com o risco e a incerteza dos nossos modernos enquadramentos informativos.
Apesar de negligenciar os aspectos sociais da cultura das interfaces, a análise de Johnson merece ser repensada, quer numa óptica ciberantropológica, quer numa perspectiva ciberfilosófica. A era do romance pode ter chegado ao seu fim: a interface é efectivamente o meio de informação e comunicação mais dominante e interessante num mundo cada vez mais mediatizado pelo computador e global.
J Francisco Saraiva de Sousa

Ortega y Gasset e a Antropologia

Ortega y Gasset é, provavelmente, o filósofo espanhol mais conhecido mundialmente e, apesar da Espanha ser nossa vizinha e partilhar connosco uma história de lutas e de amores, os portugueses nunca leram seriamente a obra de Ortega y Gasset, que, no seu tempo, soube impor-se através dos meios de comunicação escrita, quando os jornalistas faziam jornalismo sem pretensões intelectuais ilegítimas. E, mesmo quando é mencionado, os portugueses fazem-no por pensar erradamente que o seu pensamento é acessível e de fácil assimilação. No entanto, apesar da linguagem clara de Ortega y Gasset, as análises nacionais mostram-se, tal como sucede com a «apropriação» dos pensadores portugueses, incapazes de compreender a filosofia deste ilustre filósofo espanhol. Esta incapacidade nacional de pensar com conceitos revela o estado da cultura e do ensino nacionais e a razão de ser desta situação desgraçada: o sistema da luso-corrupção que também escolhe e dirige «quem ensina o quê aos portugueses, de modo a que estes continuem atrasados e a-críticos».
«La Rebelión de las Masas», obra que está por detrás da elaboração do conceito de «indústria cultural» (Horkheimer & Adorno), «La deshumanización del Arte» e «Que es Filosofia?» são obras de Ortega y Gasset editadas recentemente em português, relativamente conhecidas, mas raramente lidas e bem compreendidas. As elites nacionais falam muito da política da leitura e da necessidade da leitura, acusando os portugueses, entenda-se a ralé, de não terem hábitos de leitura, mas a verdade é que o mau exemplo parte delas: se elas lessem, compreendessem e ensinassem, os portugueses seriam mais cultivados e, depressa, compreenderiam que o que está mal em Portugal e que bloqueia o seu desenvolvimento são precisamente as elites organizadas em máfias envolvidas na teia da luso-corrupção que engorda à custa da esmagadora maioria dos portugueses.
Até aqui o meu discurso tem sido muito democrático e este tom democrático parece não estar em consonância com o estilo aristocrático de Ortega y Gasset. De facto, politicamente falando, pertencemos a «famílias» políticas muito diferentes, mas, apesar de reconhecer e criticar o conservadorismo de Ortega y Gasset, admiro a sua obra, com a qual entrei em contacto, na sua própria língua, desde praticamente bebé, como costumo dizer quando desejo destacar a minha «autoridade biológica». Ao ler Ortega y Gasset devemos ter esse cuidado: analisar as suas teses filosóficas à luz dos seus potenciais efeitos ideológicos e políticos e «apropriar» os conceitos filosófica e cientificamente relevantes, transformando-os em conceitos mais democráticos e descontaminados de conservadorismo.
Ora, um conjunto desses conceitos pertinentes encontra-se numa obra relativamente ignorada ou, pelo menos, silenciada de Ortega y Gasset: «Hombre y la Gente» (2 volumes na edição espanhola que possuo/Revista de Occidente).
«Hombre y la Gente» é uma obra de antropologia filosófica elaborada contra as ciências sociais e humanas, nomeadamente a sociologia e a linguística. A antropologia de Ortega y Gasset é essencialmente «sociológica», ou melhor, expõe uma teoria da sociedade mediada linguisticamente. Esta formulação é intencionalmente provocante, mas capta efectivamente a originalidade de Ortega y Gasset que reivindica «una nueva linguística»:
«Resulta, pues, vivimos, desde que vemos la luz, sumergidos en un océano de usos, que estos son la primera y más fuerte realidad con que nos encontramos: son sensu stricto nuestro contorno o mundo social, son la sociedad en que vivimos. Al través de ese mundo social o de usos, vemos el mundo de los hombres y de las cosas, vemos el Universo».
A partir daqui Ortega y Gasset elabora uma teoria que sabe traçar as linhas de demarcação entre as suas teses e as defendidas por outros, abrindo as portas à teoria da comunicação, enraizada no «decir de la gente» (opinião pública). De certo modo, esta obra procura fundamentar o seu pensamento político, exposto na obra «La Rebelión de las Masas». Mas onde fica o seu conservadorismo? A releitura permite neutralizá-lo, aliás já o neutralizámos quando responsabilizámos as pseudo-elites nacionais pelo estado de ofuscamento e de miséria nacionais, e com a ajuda de Ortega y Gasset:
«Conviene que el intelectual no crea demasiado en sí mismo. Después de todo, lo más bello que hay en la inteligencia, lo que la distingue de otras calidades más toscas --- como la belleza física, la fuerza, la nobleza genealógica o el dinero ---, es que siempre es problemática. (...) El hombre inteligente ve constantemente a sus pies abierto e insondable el abismo de la estulticia. Por eso es inteligente: lo ve y retiene su pie cautelosamente».
J Francisco Saraiva de Sousa

Oswald Spengler e a Antropologia

A filosofia, ou melhor, os auto-intitulados filósofos deixaram de pensar e, por isso, não estão à altura da missão da Filosofia: zelar pela Tradição Ocidental e mantê-la viva, de modo a que seja transmitida às gerações vindouras (Husserl).
Existem diversas tarefas a realizar o mais rapidamente possível, em vez de perder tempo a decifrar as vulgaridades ditas por Heidegger em linguagem difícil ou discutir as pós-modernidades, e uma dessas tarefas é retomar a antropologia filosófica, começando por recuperar as antropologias subjacentes a cada filosofia ou sistema filosófico e, deste modo, preparar o terreno para a ciber-antropologia filosófica do nosso tempo.
Uma dessas antropologias é a de Oswald Spengler, de resto bem explicita na sua obra «O Homem e a Técnica», onde, além de retomar uma teoria do homo faber, de cunho nietzchiano e marxista, tal como Hannah Arendt interpreta Marx, avança com noções válidas de filosofia da natureza, com preocupações claramente biológicas e ecológicas (política do ambiente), e de filosofia da técnica, aliás fortemente inspirada em Marx, um «pensador da técnica» (Kostas Axelos), e com uma crítica pertinente da «mentalidade de engenheiro».
Oswald Spengler tem sido marginalizado e diabolizado, por causa do seu suposto conservadorismo político, mas, tal como a Direita retoma temas da Esquerda, nós podemos, sem esforço, tirar-lhe os seus melhores pensadores e lê-los à luz do nosso compromisso social com a libertação e o esclarecimento.
É evidente que a tese antropológica principal de Spengler não é original e conhecemos muitas variantes dessa tese, nomeadamente a de Leroi-Gourhan e de Gordon Childe: «o homem fez-se homem graças à mão», formulação muito idêntica à de Engels, e o que distingue especificamente o homem dos restantes animais é a técnica. Esta concepção geral do homem é elaborada numa perspectiva de desenvolvimento, com ênfase colocada no facto do homem ser actividade -- um ser de acção -- e criador de mundos culturais, o que está muito próximo da perspectiva biofilosófica de Arnold Gehlen. Além disso, Spengler destaca a noção de homem como «animal predador», o que não deixa de ser actual nas antropologias de cunho etológico (Robert Ardrey).
Contudo, ao recuperarmos a antropologia de Spengler, devemos confrontá-la com o ciberhomem e exorcizá-la do seu fatalismo e do seu relativismo endémicos. A concepção do homem como criador de instrumentos e de mundos culturais não foi esgotada e, por isso, continua a ser uma via a explorar no estudo do ciberhomem.
J Francisco Saraiva de Sousa